São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2001

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"As Fúrias", recém-lançado nos EUA, investiga como as revoluções Russa e Francesa transitaram da esperança de igualdade para o terror e a delação
A cólera do destino

Eugen Weber
especial para "The NYT Book Review"

Toda história é contemporânea, refletindo questões atuais, engajada em debates tópicos. A obra maciça de Arno J. Mayer, "The Furies" (As Fúrias), aborda capítulos de um passado que ainda faz parte do nosso presente e convulsões que continuam polarizando e despertando emoção -pelo menos a do próprio autor. Em seu prefácio, Mayer se refere desdenhosamente aos "renegados ex-comunistas" e aos "historiadores ultraconservadores" que acusam as revoluções Francesa e Russa de "todos os incêndios purgatórios do século 20". A revolução, como disse Clémenceau, "é uma coisa só". É preciso aceitar as boas e as más. Mayer concorda. Seu copo revolucionário está cheio pela metade ou mais.
No entanto ele sente a necessidade de explicar a facilidade, a naturalidade com que as revoluções derrapam da esperança ao terror.
Mayer traça o caminho da reforma à ira e ao terror, que inclui ameaça e medo, vingança e contravingança, satisfação, desilusão e carnificina. Ele tem coisas sábias para dizer sobre a mistura de inimizades tradicionais e novos gritos de guerra, sobre os choques entre o imperialismo urbano e a desconfiança rural, sobre a satisfação de abater inimigos conhecidos e não completos estranhos, sobre a ascensão da denúncia como virtude cívica. Ele indica a ligação entre revolução e guerra estrangeira. Lembra-nos que tanto a França como a Rússia eram rurais em mais de quatro quintos à véspera de suas revoluções, uma justa advertência para os que atribuem a Revolução Francesa a Voltaire e Rousseau ou a russa a Marx. Há muitas maneiras de ler esse livro extenso, rico e idiossincrático. Como Mayer adverte, um estudo objetivo e isento de valores desse tema é impossível. Por isso, atirando a objetividade ao vento, acho difícil não concluir que os movimentos por reformas na França e na Rússia, assim como as revoltas contra os tempos difíceis e as condições insuportáveis, foram sequestrados por pequenos grupos de verdadeiros fiéis decididos a precipitar uma ordem social e política radicalmente nova. Ao se rebelar contra a ortodoxia e a opressão, ambas as revoluções introduziram ortodoxias e opressões muito piores do que as que rejeitavam. Ambas tentaram construir liberdade sobre montes de cadáveres, estabilidade sobre intimidação e medo, fraternidade sobre o terror sistemático. No entender de Mayer, as fúrias da revolução são "impelidas principalmente pela resistência das forças e idéias contrárias" -assim como, supostamente, a raiva de um assaltante é desencadeada por sua vítima potencial. Mayer, é claro, é mais discriminatório que isso. Tem mais disposição para a empatia do que para a fricção: é essa a maneira do historiador. O problema com sua empatia é que às vezes transforma explicações em desculpas, apresentando a agressão como defensiva -o que algumas vezes foi o caso- e tratando os agressores como vítimas das circunstâncias.

Ganhos e perdas
Isso se torna marcante quando ele fala da União Soviética de Stálin. "É difícil, se não impossível, comparar Stálin e Hitler", diz Mayer, e muito sensatamente indica que a demonização do líder soviético impede uma análise crítica. Mas a análise crítica não precisa acarretar a racionalização de políticas monstruosas. As panelas soviéticas eram tão negras quanto as chaleiras nazistas. De fato, os milhões de desumanizados e assassinados por Stálin foram mais numerosos do que as vítimas de Hitler. "Deixando de lado os custos humanos, as conquistas econômicas do primeiro plano quinquenal foram surpreendentes", escreve Mayer. Mas os custos humanos também foram surpreendentes. Como podem ser deixados de lado? É nesse espírito que os ex-comunistas se tornam "renegados" -termo que pode simplesmente denotar a rejeição do partido e dos princípios que eles consideraram insatisfatórios, mas que é mais comumente usado no sentido pejorativo de desertor ou vira-casaca. Enquanto isso, "as democracias populares" são citadas sem qualificação. Que democracias? Que povos? E embora seja verdade que "a contra-revolução não foi inocente", não é nada claro que "sem ela não teria havido as fúrias". No covil do medo de Mayer, no entanto, existem muitas mansões; e as pressões que teriam conduzido a revolução ao terror se estendem liberalmente à ameaça estrangeira, à recusa de ceder a exigências irracionais e mesmo ao fracasso em demonstrar entusiasmo no momento certo. De maneira mais geral, o argumento de Mayer paira sobre as particularidades e despreza detalhes vitais. Personalidades, por exemplo, foram centrais para as revoluções Francesa e Russa, já que os que presidiram o terror navegavam em círculos estreitos, nos quais o debate ideológico muitas vezes mascarava antipatias e ambições pessoais. Sabemos muito pouco sobre esses assuntos; mas o mínimo que podemos fazer é indicar que eles são importantes. A inexperiência nos assuntos públicos, que Mayer menciona uma vez e de passagem, foi outro ingrediente-chave, em especial na França. Os mais bem conhecidos representantes do terror eram jovens demais para não ser inexperientes. Robespierre morreu com 36 anos; Danton, com 35; Saint-Just, com apenas 27 anos.

Violência em espiral
Em seu prefácio, Mayer sugere uma comparação entre as forças revolucionárias da era moderna e as da Grécia de Ésquilo, o que leva um título maravilhosamente expressivo para território indefensável. As Fúrias de Mayer são as Erínias iradas, que emergem da escuridão do inferno com cobras nos cabelos, chicotes e tochas nas mãos para espalhar castigos. Elas estão "entrelaçadas a um ciclo interminável de violência em espiral... característico dos momentos de ruptura e (re)fundação", escreve Mayer.
Mas, continua, as Fúrias também podem ser as Eumênides, as "Gentis Senhoras", como os atenienses as chamavam, que representam a "difícil transição de um crescendo para um diminuendo de violência". Na verdade, "Eumênides" era um antônimo destinado a bajular as coléricas Erínias e assim evitar sua ira. Seja como for, a metáfora de Mayer cabe melhor à experiência francesa, que abriu caminho para uma democracia secular, do que à cleptocracia feudal da Rússia pós-comunista.
Ambas as revoluções foram impedidas por demônios ou deidades que surgiram das profundezas do inferno ou da sociedade para torturar suas vítimas e enlouquecê-las. Mas as Eumênides de Ésquilo, assim como as Erínias, existiam para proteger a família, a sociedade e o mundo contra a anarquia, para punir os crimes que perturbavam a ordem social e para conter a arrogância e, ao fazer os homens esquecerem que eram mortais, os encorajavam a desafiar a ordem e os deuses. A arrogância ficou muito evidente depois de 1789 e de 1917. Mas as Erínias foram domadas no primeiro caso; no segundo, o assassinato continua impune, o crime, não vingado. Talvez os revolucionários estivessem certos, e as velhas deidades realmente tenham perdido o vapor. Os demônios, enquanto isso, continuam irados.

The Furies
716 págs., US$ 35 de Arno J. Mayer. Princeton University Press (EUA).

Onde encomendar Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, à livraria Fnac (tel. 0/ xx/11/ 3097-0022) e, no RJ, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/ 21/533-2237).


Eugen Weber é professor de história na Universidade da Califórnia e autor de "Após o Apocalipse" (ed. Mercuryo) e "França Fin-de-Siècle" (Companhia das Letras), entre outros.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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