São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2001

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Sociólogo francês analisa as razões do crescimento do pentecostalismo e discute as características necessárias ao estudo dos fenômenos religiosos
O enfraquecimento do protestantismo

Luiz Felipe Pondé
especial para a Folha

Jean-Paul Willaime, professor da divisão de ciências religiosas da Escola Prática de Altos Estudos da Sorbonne (Universidade de Paris 4), é sociólogo de formação e grande especialista em protestantismo na França. Durante visita ao Brasil, trazido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pela Universidade Metodista, Willaime conversou com a Folha. Um dos temas que mais preocupa Willaime é o chamado "analfabetismo religioso" que assola o Ocidente: "Como se pode compreender a história da arte, da cultura, da arquitetura, quando se é analfabeto em história das religiões? Mesmo Voltaire, inimigo máximo da religião, sabia que sem conhecer religião não se pode compreender o mundo!". O cientista da religião e professor da Universidade Metodista Antônio Gouvêia Mendonça também participou da discussão a seguir com Willaime.

O senhor escreveu uma obra definitiva acerca do protestantismo, "La Precarité du Protestantisme" (ed. Labor et Fides, França). O que vem a ser essa "fragilidade" específica do protestantismo, fragilidade que o catolicismo não teria?
O que me intrigou como sociólogo foi o fato de que ainda que o protestantismo (o luteranismo e o calvinismo) fosse desde a sua origem um fenômeno em forte sintonia com o processo moderno de secularização da sociedade ocidental, sendo muito mais aberto para as mudanças liberalizantes, como o movimento das mulheres, o aborto, o capitalismo etc., foi também a "religião" que mais se enfraqueceu na modernidade, dentro do universo cristão europeu. Minha tese é que é exatamente essa sintonia que gera a precariedade. O protestantismo histórico apresentou sempre uma preferência pelo discurso racional, pela prédica em detrimento do ritual; essa postura "racionalista" faz com que esse protestantismo esteja sempre mais aberto para as variações das concepções filosóficas em ação em uma determinada época e, se teve sucesso nos séculos 16 e 17, foi exatamente porque naquela época a teologia era uma referência fundamental dentro do panorama filosófico europeu. Na medida em que a teologia "decaiu", esse protestantismo também perdeu seu espaço. O ritual, o emocional parecem durar mais no tempo e estão mais "protegidos" do desgaste das concepções filosóficas. Na sociedade moderna essa hiperadaptação significou a perda de visibilidade na lógica psicossocial. Sua ética contextual se dissolveu no mundo secularizado. É interessante perceber que o retorno ao protestantismo se deu exatamente por meio da sua veia emocional, isto é, o pentecostalismo.

O Brasil é talvez o maior "produtor" de pentecostalismo no mundo. É comum a associação entre o fenômeno e a demagogia, a alienação e a manipulação financeira. Essa não é uma leitura redutora?
O pentecostalismo é historicamente uma produção da Reforma; já no século 16 existiam tendências emocionalistas. Ele é o cristianismo da emoção, trata-se exatamente dessa plasticidade da emoção que abre o espaço para a demagogia, mas reduzir o pentecostalismo à manipulação financeira é não compreendê-lo.

O senhor concorda com Manuel Castells sobre o essencial papel da retomada religiosa como produtora de identidade?
Claro. Nem todos os pastores são agentes "interesseiros". Tal forma de abordagem é errada. As igrejas perderam o poder público e deixaram de gerar hierarquias na sociedade. Por outro lado, é nas formas de tipo pentecostal e carismático que o cristianismo retoma seu caráter de uma religião por escolha e não por hereditariedade. Trata-se de uma religião de conversão de adultos, de construção de identidades tanto psicológicas como sociais. Isso é fundamental. Na medida em que o cristianismo perde o poder temporal, o pentecostalismo se revela como um campo por excelência da apropriação de si mesmo por parte do indivíduo. Uma religião do gesto, do corpo, um cristianismo que renasce de baixo.
O pentecostalismo dá a voz direta ao homem "simples" convertido, um acesso direto à linguagem de Deus, revela uma democracia da expressão. Se a teologia da libertação era uma teologia "para os pobres", o pentecostalismo é uma teologia "dos pobres". É claro que isso é ambivalente, tudo em religião é ambivalente. Um erro típico é supor os desdobramentos das religiões como sendo necessariamente produtores de alienação nos indivíduos: às vezes um fenômeno específico pode operar como agente de auto-alienação e às vezes pode ser exatamente o oposto, e uma religião pode ser um profundo operador de autolibertação. Retoma-se a posse da própria vida: o indivíduo pára de beber, passa a trabalhar, reconstrói a vida familiar, toma decisões-limite, é evidente que há aí um processo de apropriação de si mesmo. Existem desdobramentos interessantes do ponto de vista político...

O senhor fala do fenômeno "Benedita", no Rio?
Essa mulher é extraordinária. É bobagem concluir que pentecostalismo implica necessariamente conservadorismo político. Religiões são imprevisíveis.

É comum em ciências da religião a discussão epistemológica acerca do chamado "ateísmo metodológico". Na sua opinião, seria consistente a posição segundo a qual "cientistas da religião religiosos" só "fariam ruídos" e seriam incapazes de produzir "ciência"? Haveria um "contágio cognitivo" insuperável no fato de ser religioso?
Todo estudo científico pressupõe uma ruptura com o discurso auto-interpretativo do "crente", mas não concordo que um ateu (ainda que "apenas" metodológico) "faça" melhor as ciências da religião.

Não seria um exemplo de discurso auto-interpretativo, do tipo ao qual o senhor se refere, uma antropóloga fazer "antropologia feminista" ou um gay fazer "antropologia dos gêneros"? Não é o "ateísmo metodológico" uma exigência feita às ciências da religião que não é feita às demais ciências humanas "militantes"?
Atitudes que são permitidas aos demais cientistas sociais parecem ser proibidas aos que se dedicam ao estudo da religião, e isso é tendencioso. E concordo que militâncias de qualquer tipo podem vir a ser discursos auto-interpretativos danosos à prática científica, mas não acho que a experiência religiosa seja necessariamente danosa, e sim o contrário: a experiência do descentramento do eixo de sentido do eu e do mundo, à qual se refere Mircea Eliade, típica da pessoa religiosa, é fundamental para um cientista compreender o que se passa na religião. Não ter essa experiência pode se tornar um importante limite intelectual para compreender o sistema simbólico de sentido em jogo numa religião específica. O cientista pode perder o foco da consistência própria da religião e não ver nela nada além de um fenômeno social qualquer, no qual sua lógica intrínseca específica se dissolve nos reducionismos sociais ou econômicos. É evidente que não se trata de fazer ciência confessional. O estudo científico só pode ser construído por pluralidade e discordâncias, no diálogo se produz conhecimento, é uma experiência dialógica...

O senhor concorda com Sócrates, Dostoiésvki e Bakhtin...
É claro. Conhecimento é plural. A modernidade em que vivemos, na qual os mitos de desmitificação (como o mito do progresso e da técnica, por exemplo) foram eles mesmos desmitificados, em que os esquemas de desencantamento do mundo foram eles mesmos desencantados, a chamada "pós-modernidade" -esse relativismo autodestrutivo-, se constitui num cenário interessante para perceber como esses gigantescos sistemas produtores de sentido que são as religiões agirão e como o Estado e a sociedade pluralista reagirão a atuação dos agentes de sentido que são os indivíduos religiosos. Diria inclusive que não penso que ainda esteja na agenda a guerra contra a tutela religiosa. Esse esquema é datado. O trabalho de desconstrução está em curso avançado, agora se trata de ver como as religiões vão operar como agente reestruturante na sociedade radicalmente secularizada (no sentido de reconstruir as identidades individuais e coletivas dissolvidas), em um espaço onde elas não detêm o poder político e se em algum momento elas voltarão a se relacionar diretamente com esse poder político. Só existe o "cientista religioso", compreendido como o indivíduo "de fé e acrítico", na cabeça do não-religioso mal-informado: todo indivíduo religioso inteligente é trabalhado pela dúvida. Esse "crente" é um fantasma da cabeça do "não-crente"...

Mudando um pouco de assunto, o que o senhor pensa da obra do pensador francês Edgar Morin, que tem tido uma boa repercussão nas ciências sociais no Brasil?
Morin é um "outsider" na vida acadêmica francesa. Ele teve no início uma obra de teor empírico de valor, mas posteriormente se carregou demais em abstrações que se distanciam da realidade dos problemas científicos. É superior a outros "outsiders" da vida acadêmica francesa que têm grande penetração aqui, como Michel Maffesoli, que, acho, abusa de esquemas duvidosos quanto ao conteúdo.


Luiz Felipe Pondé é professor do programa de pós-graduação em ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica (SP) e da Fundação Armando Álvares Penteado.



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