São Paulo, Domingo, 21 de Fevereiro de 1999
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BRASIL 500 D.C.
Há cem anos, o presidente Campos Sales decretou uma moratória, criou impostos, submeteu-se ao controle estrangeiro e hipotecou sua maior fonte de renda
Aconteceu em um fim de século

JOSÉ MURILO DE CARVALHO
especial para a Folha

Há cem anos, em 15 de novembro de 1898, Campos Sales assumiu a Presidência da República, segundo presidente civil eleito pelo voto popular após os governos militares do início do novo regime. A situação financeira do país era calamitosa. Caracterizava-se pelo grande déficit orçamentário, pela alta inflação (desde 1889, o mil-réis se desvalorizara em 73%), pela crise cambial (o valor do mil-réis perante a libra esterlina caíra de 27 dinheiros em 1889 para menos de 8 em 1898) e pela queda dos preços internacionais do café.
O déficit tinha levado à acumulação de grande dívida externa. A desvalorização do mil-réis e a queda do preço do café tinham tornado essa dívida impagável. A insolvência materializou-se em junho de 1898. O governo de Prudente de Morais não tinha dinheiro para pagar as prestações que venciam naquele mês. Em Londres, negociando em nome do governo, Campos Sales, já eleito, assinou rapidamente o acordo da moratória com os Rothschild, há longo tempo banqueiros oficiais do Brasil. Refletindo o descrédito do país, os homens da City exigiram do presidente eleito um compromisso escrito de que honraria os termos do contrato.
O acordo incluía um empréstimo de 10 milhões de libras esterlinas destinado ao pagamento dos juros da dívida. Adiava-se até 1911 o início do pagamento da amortização do principal. Em troca, o governo brasileiro hipotecava as rendas da alfândega do Rio, sua principal fonte de receita, e, subsidiariamente, a das outras alfândegas. Além disso, comprometia-se a executar um programa de valorização do mil-réis, de corte de gastos públicos e de aumento de impostos e submetia-se à fiscalização dos representantes no Rio do London and River Plate Bank, do London and Brazilian Bank e do Brazilianishe Bank für Deutschland.
No Manifesto Inaugural, o novo presidente apontara, entre outras, as seguintes causas do desequilíbrio orçamentário: a quantidade exagerada de funcionários públicos, o aumento contínuo do número dos inativos, as indenizações que o governo se via obrigado a pagar em decorrência de sentenças judiciais, os gastos com despesas de caráter puramente local votadas pelo Congresso e o protecionismo a indústrias artificiais. No Manifesto Eleitoral, já prometera cuidar apenas das finanças: cortar despesas, aumentar receitas, reduzir a inflação, valorizar o câmbio. Seu objetivo final, afirmou no Manifesto, era recuperar a confiança dos banqueiros e investidores internacionais no país e trazer de volta os capitais externos.
Assim o disse, assim o fez, contando com a eficiente ajuda do ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, um liberal convicto, que tachava de socialista a tradição brasileira de interferência do Estado na economia. Pelo lado do gasto, as despesas do governo foram reduzidas ao mínimo, as obras públicas foram suspensas, as estradas de ferro da União foram arrendadas. Pelo lado da receita, 10% das tarifas alfandegárias passaram a ser cobrados em ouro e foi criada uma infinidade de novos impostos sobre o consumo. Salientou-se entre eles o imposto do selo, que atingia vários produtos. Alvo predileto da ira popular, esse imposto foi a origem do apelido de Campos Selos dado ao presidente.
Política fiscal tão draconiana não podia ser implementada sem apoio maciço do Congresso e sem o fim dos distúrbios políticos que tinham marcado os primeiros anos da República. O presidente, afirmando pela primeira vez entre nós a natureza presidencialista do regime, assumiu plenamente o comando da política, negociou o apoio dos principais governadores e, por meio deles, conseguiu domesticar o Congresso, instaurando o que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, em artigo de 1975, publicado na "História Geral da Civilização Brasileira", chamou muito apropriadamente de Pax oligarquica.
As consequências de tal política foram as que se podiam esperar: inúmeras falências no comércio, na indústria, nos bancos e mesmo em setores da agricultura, seguidas do inevitável desemprego. Representantes da praça do Rio foram ao presidente expor suas queixas. Ouviram dele que não lhes podia ensinar patriotismo, mas podia fazer com que cumprissem a lei. Houve corrida a vários bancos. Nem mesmo a instituição oficial, o Banco da República, escapou. Teve que teve que ser protegido pela polícia, o que não o livrou da falência.
Do lado positivo, o governo conseguiu boa parte de seus objetivos. O mil-réis subiu de 8 dinheiros em 1898 para 12 em 1902; 100 mil contos em papel-moeda foram retirados de circulação, valorizando o mil-réis; a execução do orçamento passou a apresentar excedentes; foram acumulados fundos em Londres para futuro pagamento da dívida externa. Por esses êxitos, o presidente recebeu telegrama de congratulações dos Rothschild ao final de seu governo, sinal inequívoco da recuperação da confiança dos banqueiros no país.
Outra foi a reação dos brasileiros. O industrial Vieira Souto afirmou que Murtinho salvara o câmbio, mas reduzira o país à miséria. O desemprego, os impostos, o encarecimento dos produtos de importação geraram imensa insatisfação popular. Segundo José Maria dos Santos, o brasileiro tornou-se um desiludido de seu país e de si mesmo e passou a injuriar até a crueldade seus homens de governo. O presidente teve que ser protegido pela cavalaria quando compareceu ao banquete que lhe foi oferecido ao final do governo. Ao partir para São Paulo, após transmitir o governo a Rodrigues Alves, em 15 de novembro de 1902, foi recebido por uma multidão reunida na Praça da República, em frente à Central do Brasil. O povo se despediu dele com imensa vaia e rica variedade de projéteis. Nos dez primeiros quilômetros de percurso do trem da Central, até Cascadura, a população dos subúrbios se aglomerou nas estações para repetir as vaias.
Fonte de acirradas e intermináveis controvérsias, o governo de Campos Sales teve de esperar pela história para que um julgamento menos apaixonado de seus êxitos e dos custos que acarretou para a população e para o país fosse feito. Em sua defesa alegou-se, entre outras coisas, que ele não tinha sido responsável pelos problemas que teve de enfrentar.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor, entre outros, de "Construção da Ordem" e "Teatro das Sombras" (Relume-Dumará).



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