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BRASIL 500 D.C.
Há cem anos, o presidente Campos Sales decretou uma moratória, criou impostos,
submeteu-se ao controle estrangeiro e hipotecou sua maior fonte de renda
Aconteceu em um fim de século
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
especial para a Folha
Há cem anos, em 15 de novembro de 1898, Campos Sales assumiu a Presidência da República,
segundo presidente civil eleito pelo voto popular após os governos
militares do início do novo regime. A situação financeira do país
era calamitosa. Caracterizava-se
pelo grande déficit orçamentário,
pela alta inflação (desde 1889, o
mil-réis se desvalorizara em 73%),
pela crise cambial (o valor do
mil-réis perante a libra esterlina
caíra de 27 dinheiros em 1889 para
menos de 8 em 1898) e pela queda
dos preços internacionais do café.
O déficit tinha levado à acumulação de grande dívida externa. A
desvalorização do mil-réis e a queda do preço do café tinham tornado essa dívida impagável. A insolvência materializou-se em junho
de 1898. O governo de Prudente de
Morais não tinha dinheiro para
pagar as prestações que venciam
naquele mês. Em Londres, negociando em nome do governo,
Campos Sales, já eleito, assinou
rapidamente o acordo da moratória com os Rothschild, há longo
tempo banqueiros oficiais do Brasil. Refletindo o descrédito do
país, os homens da City exigiram
do presidente eleito um compromisso escrito de que honraria os
termos do contrato.
O acordo incluía um empréstimo de 10 milhões de libras esterlinas destinado ao pagamento dos
juros da dívida. Adiava-se até 1911
o início do pagamento da amortização do principal. Em troca, o
governo brasileiro hipotecava as
rendas da alfândega do Rio, sua
principal fonte de receita, e, subsidiariamente, a das outras alfândegas. Além disso, comprometia-se
a executar um programa de valorização do mil-réis, de corte de gastos públicos e de aumento de impostos e submetia-se à fiscalização
dos representantes no Rio do London and River Plate Bank, do London and Brazilian Bank e do Brazilianishe Bank für Deutschland.
No Manifesto Inaugural, o novo
presidente apontara, entre outras,
as seguintes causas do desequilíbrio orçamentário: a quantidade
exagerada de funcionários públicos, o aumento contínuo do número dos inativos, as indenizações
que o governo se via obrigado a
pagar em decorrência de sentenças judiciais, os gastos com despesas de caráter puramente local votadas pelo Congresso e o protecionismo a indústrias artificiais. No
Manifesto Eleitoral, já prometera
cuidar apenas das finanças: cortar
despesas, aumentar receitas, reduzir a inflação, valorizar o câmbio. Seu objetivo final, afirmou no
Manifesto, era recuperar a confiança dos banqueiros e investidores internacionais no país e trazer
de volta os capitais externos.
Assim o disse, assim o fez, contando com a eficiente ajuda do ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, um liberal convicto, que tachava de socialista a tradição brasileira de interferência do Estado
na economia. Pelo lado do gasto,
as despesas do governo foram reduzidas ao mínimo, as obras públicas foram suspensas, as estradas de ferro da União foram arrendadas. Pelo lado da receita,
10% das tarifas alfandegárias passaram a ser cobrados em ouro e foi
criada uma infinidade de novos
impostos sobre o consumo. Salientou-se entre eles o imposto do
selo, que atingia vários produtos.
Alvo predileto da ira popular, esse
imposto foi a origem do apelido de
Campos Selos dado ao presidente.
Política fiscal tão draconiana
não podia ser implementada sem
apoio maciço do Congresso e sem
o fim dos distúrbios políticos que
tinham marcado os primeiros
anos da República. O presidente,
afirmando pela primeira vez entre
nós a natureza presidencialista do
regime, assumiu plenamente o comando da política, negociou o
apoio dos principais governadores
e, por meio deles, conseguiu domesticar o Congresso, instaurando o que o sociólogo Fernando
Henrique Cardoso, em artigo de
1975, publicado na "História Geral da Civilização Brasileira", chamou muito apropriadamente de
Pax oligarquica.
As consequências de tal política
foram as que se podiam esperar:
inúmeras falências no comércio,
na indústria, nos bancos e mesmo
em setores da agricultura, seguidas do inevitável desemprego. Representantes da praça do Rio foram ao presidente expor suas
queixas. Ouviram dele que não
lhes podia ensinar patriotismo,
mas podia fazer com que cumprissem a lei. Houve corrida a vários
bancos. Nem mesmo a instituição
oficial, o Banco da República, escapou. Teve que teve que ser protegido pela polícia, o que não o livrou da falência.
Do lado positivo, o governo conseguiu boa parte de seus objetivos.
O mil-réis subiu de 8 dinheiros em
1898 para 12 em 1902; 100 mil contos em papel-moeda foram retirados de circulação, valorizando o
mil-réis; a execução do orçamento
passou a apresentar excedentes;
foram acumulados fundos em
Londres para futuro pagamento
da dívida externa. Por esses êxitos,
o presidente recebeu telegrama de
congratulações dos Rothschild ao
final de seu governo, sinal inequívoco da recuperação da confiança
dos banqueiros no país.
Outra foi a reação dos brasileiros. O industrial Vieira Souto afirmou que Murtinho salvara o câmbio, mas reduzira o país à miséria.
O desemprego, os impostos, o encarecimento dos produtos de importação geraram imensa insatisfação popular. Segundo José Maria dos Santos, o brasileiro tornou-se um desiludido de seu país e
de si mesmo e passou a injuriar até
a crueldade seus homens de governo. O presidente teve que ser
protegido pela cavalaria quando
compareceu ao banquete que lhe
foi oferecido ao final do governo.
Ao partir para São Paulo, após
transmitir o governo a Rodrigues
Alves, em 15 de novembro de 1902,
foi recebido por uma multidão
reunida na Praça da República,
em frente à Central do Brasil. O
povo se despediu dele com imensa
vaia e rica variedade de projéteis.
Nos dez primeiros quilômetros de
percurso do trem da Central, até
Cascadura, a população dos subúrbios se aglomerou nas estações
para repetir as vaias.
Fonte de acirradas e intermináveis controvérsias, o governo de
Campos Sales teve de esperar pela
história para que um julgamento
menos apaixonado de seus êxitos e
dos custos que acarretou para a
população e para o país fosse feito.
Em sua defesa alegou-se, entre outras coisas, que ele não tinha sido
responsável pelos problemas que
teve de enfrentar.
José Murilo de Carvalho é professor titular do
departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor, entre outros, de "Construção da Ordem" e "Teatro das Sombras" (Relume-Dumará).
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