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ECONOMIA
O déficit público é o mais novo bode expiatório de economistas de todas as áreas
O vermelho e o negro
JOÃO SAYAD
especial para a Folha
O controle do déficit público é
quase uma unanimidade entre os
economistas acadêmicos nos últimos 20 anos. Aposto que a unanimidade se estende por todo o espectro político, da direita à esquerda, apesar de nuances.
Nunca me esqueço de que o governador Brizola, no final do primeiro mandato como governador, anunciava que havia controlado o déficit público. O Plano
Trienal do ministro Celso Furtado, durante o regime parlamentarista de João Goulart, tinha o corte
do déficit público como parte fundamental. Até parlamentares do
PT defendem a privatização, o
corte de gastos e a chamada modernização do Estado. Parece que
o assunto foi julgado, e o veredicto
se baseia na maioria do voto dos
jurados. O governo é culpado. O
déficit público é culpado. A agenda política deste governo, por
exemplo, tem apenas este item negativo: reformar a Constituição
para acabar com o déficit público,
cortar gastos do governo, excluir
os investimentos públicos que seriam incômodos ao investimento
privado, e assim por diante.
Não é original. Reflete a agenda
negativa da maioria dos governos
de outros países nos últimos 20
anos. A inexistência de itens positivos e a preponderância de elementos negativos -não gastar,
não fazer- parece refletir com
clareza o momento crítico por que
passam a economia e o pensamento ocidental.
Este artigo tenta renovar a discussão. Por que o déficit público
foi eleito bode expiatório? Se o leitor já estiver cansado de economistas, pode alternativamente ler
"O Vermelho e o Negro", de
Stendhal. Argumento que vivemos
período semelhante ao de Julien
Sorel. Napoleão havia sido derrotado, os monarcas europeus haviam retomado o poder. Como a
nossa geração, que na juventude
teve sonhos de reforma e revolução e, na maturidade, viu a queda
do Muro de Berlim e o retorno da
economia ao começo do século,
Julien Sorel começou a carreira
em plena Restauração, quando o
poder havia voltado para a aristocracia. Morreu decapitado. Não
pôde ver que a Revolução Francesa, apesar do Terror e da derrota
de Napoleão, havia mudado a Europa definitivamente. A agenda
negativa dos últimos 20 anos reflete principalmente um retorno e
uma reação à pujança econômica
dos anos 40-70.
O que é déficit público
Chama-se déficit público a variação na dívida pública do governo.
Ao nível das discussões políticas,
ele aparece misturado com informações sobre o mau uso de recursos públicos, os marajás do famigerado presidente Collor, corrupção ou superfaturamento de
obras. Déficit parece prejuízo, imprevidência ou desmando. Mas
por que as discussões misturam
conceitos como gasto público, déficit público e a má administração
de recursos?
Além dessa imprecisão conceitual, existem outras. Déficit público se confunde com gasto público,
grandes organizações, centralização e burocracia. Ou seja, argumenta-se em favor de organizações descentralizadas, menores e
mais flexíveis, que teriam se tornando possíveis com o desenvolvimento da informática e dos
meios de comunicação.
A ênfase na questão do déficit
público, as propostas de reforma
da Constituição de 1988 e as propostas do Consenso de Washington ignoram as dificuldades de
uma abordagem macroeconômica
para a questão dos gastos governamentais em países com as características estruturais do Brasil. Além
disso, o país tem distribuição de
renda extremamente concentrada, com grande contingente de
pessoas com nível de renda muito
baixo. Quando cortamos gastos do
governo, afetamos mais a disponibilidade de bens e serviços para os
pobres do que para os ricos.
Outras justificativas para o horror ao gasto público se baseiam na
idéia de que o governo é menos
eficiente, o que pode ser verdade,
mas não faz parte das demonstrações consagradas na teoria econômica. Além disso, para comparar a
eficiência do setor público com a
do setor privado, seria necessário
recuperar o conceito de economias externas, ligações para frente
e para trás, "shadow prices" e desenvolvimento econômico. Todos
foram abandonados. A questão
pública perdeu relevância.
Assim, a Vale do Rio Doce não
dava lucro. Mas, baseado em que
teoria ou critério lucro, é consideração relevante para o setor público? A universidade, a escola em
geral, o Corpo de Bombeiros, o
Supremo Tribunal Federal e a estrada que liga o Acre ao Peru não
dão lucro. O que podemos concluir dessas observações? Não deveríamos ter esquecido que a
construção da nação brasileira a
partir de uma sociedade de fazendeiros e escravos sempre esteve associada a projetos de servidores
públicos. Os tenentes de 1924, a industrialização no período do Getúlio, o desenvolvimentismo de
Juscelino com os Grupos Executivos Industriais, o Plano Nacional
de Desenvolvimento do presidente Geisel foram projetos de investimentos e projetos para o país que
não se contrapunham a projetos
da sociedade civil. Seria exagero
afirmar que o Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, é uma
nação inventada pelo Estado?
Talvez a falta de energia empreendedora dos capitalistas brasileiros tenha sido a base do diagnóstico da teoria da dependência
do presidente Fernando Henrique
Cardoso. Entretanto a política que
adotou até agora apenas incentivou a substituição do capitalista
brasileiro pelo estrangeiro, ao passo que o setor público, que é agora
alvo de críticas e objeto das reformas, sempre batalhou pela organização e apoio aos empreendedores brasileiros, a partir do mesmo
diagnóstico. Entretanto, há 20
anos os economistas brasileiros
são contra o gasto público. E tudo
começa em 1974, após o primeiro
choque de petróleo.
Naquele momento, as estatais
são escolhidas pela opinião pública como origem das nossas dificuldades. O jornal "O Estado de S.
Paulo" publica longa matéria sobre os gastos dos executivos mais
importantes das estatais, que usavam aviões particulares, se hospedavam em hotéis de luxo, usavam
cartões de crédito, e divulga o conceito de "mordomias". A oposição se rebela contra as estatais,
acusadas de financiar a tortura.
Kalecki, escrevendo nos anos da
guerra contra o nazismo, poderia
ter previsto a reversão. No artigo
clássico "Aspectos Políticos do
Pleno Emprego", afirma que gastos públicos e investimentos estatais vão contra o interesse politico
dos empresários.
Empresários se opõem ao pleno
emprego, apesar da possibilidade
de aumentar vendas e lucro. O pleno emprego quebra a disciplina do
mercado de trabalho. Apoio aos
desempregados, que no início do
século ainda eram chamados de
vagabundos, é inconsistente com
a ética capitalista do trabalho. O
gasto público passa a ser abominado. Sem gasto público, o nível de
atividade e de emprego passa a depender do estado de ânimo e das
opiniões dos empresários sobre o
governo. Assim, se o governo não
atender as reivindicações e opiniões dos investidores, investimentos se reduzem, há fugas de
capitais se houver mobilidade de
capital e aumenta o desemprego.
Sem gasto público, a opinião do
capital resgata sua importância e
efetividade. Votar no PT desestabiliza a economia.
Déficit e inflação
Desde a metade dos anos 70, o
déficit público começa a assumir
papel de destaque como responsável pela instabilidade da economia
americana, que apresenta taxas de
inflação crescentes, chegando a
dois dígitos, e altas taxas de desemprego. A curva da Philips parece se deslocar para a direita, surgindo o conceito de "estagflação".
Os Estados Unidos perdem a
Guerra do Vietnã, cresce o movimento de contracultura desde
1968 e ocorrem as manifestações
de rua nas grandes cidades americanas. A política econômica conservadora se estabelece em 1979
com o presidente Reagan. Com a
retórica do "supply side", abaixa
impostos, corta gastos sociais e
aumenta o déficit público. O Federal Reserve aumenta as taxas de juros para níveis de dois dígitos, o
dólar começa a se sobrevalorizar.
Os déficits comerciais dos Estados
Unidos crescem rapidamente.
A política neoliberal se inicia.
Gastos sociais, controles de preços
e proteção tarifária são desmontados. Enquanto o déficit público
americano cresce espetacularmente, as taxas de inflação americanas começam a cair. Déficit público e déficit externo estão claramente ligados, mas a inflação cai.
Surpreendentemente, a política
antidéficit público de Reagan produz imensos déficits públicos e
obtém sucesso.
A explicação para o sucesso da
política americana de combate a
inflação pode ser formulada assim: o déficit comercial e a abertura criam desemprego e reduzem as
pressões salariais. A sobrevalorização cambial decorrente do ingresso de divisas nos Estados Unidos traz preços mais baratos do
exterior diminuindo a pressão inflacionária.
A dívida pública brasileira é peculiar. No inicio da Revolução de
64, economistas brasileiros afirmavam que o déficit público não
era inflacionário. Inflacionária era
a forma de financiamento. O déficit era financiado por empréstimos do Banco do Brasil, e não
existia um mercado de dívida pública que permitisse financiamento mais adequado.
A criação de um título da dívida
pública de longo prazo conseguiria financiamento não-inflacionário para o déficit. A indexação era
o ingrediente necessário, numa
economia como a brasileira, para
que investidores privados comprassem esses papéis. A indexação
no Brasil começa exatamente no
recolhimento de impostos e na divida pública.
Entre 1970 e 1989 a dívida pública brasileira fora do Banco Central
passa de 5 a 15% do PIB. Até 1980
ela representa parcela estável do
PIB, da ordem de 5%. Depois, podemos distinguir dois períodos:
entre 1980 e 1984, passa de 5% a
10%; no segundo período, entre
1984 e 1989, passa a 15% do PIB.
Assim, o crescimento da dívida é
maior nos anos da crise da dívida
externa, entre 1980 e 1984, do que
nos anos de superinflação. Como
associar essa evidência à proposição de que o crescimento da dívida pública, ou seja, do déficit público, seria o motor da inflação
brasileira?
Entre 1993 e 1998, a dívida pública fora do Banco Central passou
de 7,5% para 38% do PIB, crescendo 38% ao ano. A inflação no período passou de 40% ao mês para
zero ou negativa. Esses números
não são demonstrações econométricas definitivas. Mas como conciliar evidência empírica tão forte
com a unanimidade da preocupação com o déficit público na questão inflacionária?
Quando crescem os gastos do
governo, o crescimento é apresentado como decorrente de políticas
de apoio ao desenvolvimento regional, subsídios a setores ou empresas específicas, salários elevados, marajás, gastos com a previdência social, ineficiência; políticas que os neoliberais chamam de
populistas.
Entretanto qualquer análise
contábil e o fato de que a dívida
pública cresça exatamente nos períodos de crise financeira nos dão
pista diferente. Os componentes
financeiros do déficit público brasileiro sempre foram muito importantes: o pagamento da dívida
externa, os juros internacionais
elevados do período.
Antes de 1984, tínhamos um duplo orçamento, o fiscal e o monetário, o que mostrava a importância do componente financeiro no
total do déficit. A unificação orçamentária não atingiu o objetivo de
evitar a discricionariedade do governo na área monetária e, pior do
que isso, transferiu os ônus do orçamento monetário para o fiscal.
Déficit e desequilíbrio
Com o fim da inflação e o Plano
Real, o déficit público passou a ser
responsabilizado pelo déficit de
transações correntes e pela impossibilidade de permitir a mudança
da taxa cambial. Muda o problema
-de inflação para desequilíbrio
externo- e permanece o diagnóstico.
A separação entre políticas fiscal
e monetária tem objetivos didáticos e analíticos e tradicionalmente
é feita assim: chama-se política fiscal àquela política que aumenta
gastos ou impostos sem alterar a
forma de financiamento, isso é,
mantendo constante a estrutura
de propriedade dos ativos financeiros do setor privado, mais especificamente, mantendo constante
a relação ativos financeiros líquidos (moeda) e ativos financeiros
não líquidos (dívida pública). Política monetária seria a política
que afeta a estrutura dos ativos financeiros (aumentando ou diminuindo a relação divida pública-moeda) em mãos do setor privado sem afetar gastos ou impostos do governo.
Dadas essas definições, façamos
a contabilidade do governo. Se
quisermos de fato avaliar a política econômica, vale a pena iniciar
com o governo consolidado, isto
é, Banco Central e Tesouro Nacional agregadamente.
O governo realiza gastos com salários, investimentos, aposentadorias e subsídios regionais ou setoriais. Esses gastos podem se dirigir a áreas sociais, como saúde ou
educação, ou de infra-estrutura,
como energia e transportes. A reforma da Constituição pela qual se
bate o atual governo visa a reduzir
esse tipo de gasto associado ao orçamento fiscal. Entretanto o Banco Central realiza gastos investindo em reservas que são financiadas com a emissão de dívida pública, vendidas com taxas de juros
muito altas para atrair influxos de
capital estrangeiro. Entretanto o
discurso oficial do governo -e a
proposta de muitos dentre nós- é
produzir um superávit primário
para o pagamento de juros.
Sob que critérios econômicos temos que aceitar essa ordem de
prioridades -antes os juros, depois os aposentados, ou antes os
juros, depois a saúde? As propostas são arbitrárias, convencionais,
quer dizer, baseadas em convenção contábil. Sob que critérios
econômicos teríamos que
apoiá-las?
Talvez pudéssemos concordar
com elas sob a alegação de que levam à melhor alocação de recursos. Existem os marajás, as fraudes
no INSS, os credores rurais de
má-fé, o superfaturamento. Todas
essas considerações são aceitáveis.
Ninguém defende desperdício,
com ou sem equilíbrio fiscal.
Mas quais são os critérios que
justificam que o Tesouro tenha
que investir em reservas de dólares com juros de 4% ao ano, tomando empréstimos de 40% de
juros ao ano? Como se pode falar
em liberdade, não-intervenção e
fim da burocracia, se os maiores
componentes da despesa, juros e
compra de reservas são decididos
discricionariamente pelo Banco
Central, que reclama da falta de
independência?
Em resumo, a inflação não podia
ser atribuída ao excesso de demanda agregada causado pelos
gastos do governo; o déficit de
transações correntes é reflexo de
preços relativos inadequados, a
taxa de câmbio, em uma economia com imenso contingente de
desemprego; os maiores itens dos
gastos governamentais têm origem na política monetária e cambial. Assim, somos levados a discutir cortes de gastos que prejudicam os mais pobres quando existe
desemprego e com o objetivo de
financiar os juros inéditos pagos
aos compradores da dívida pública. A agenda política do governo
-reformar a Constituição, privatizar e reformar a Previdência- é
justificada nesses termos. É difícil
se conformar. A crítica é desclassificada como anacrônica ou heterodoxa quando se baseia em autores neoclássicos, ou mesmo em
bom senso, prudência política e
compaixão.
Será que os novos empresários
das empresas privatizadas terão o
espírito empreendedor e público
dos seus antecessores? Será que a
desorganização da burocracia e
dos quadros do governo depois
poderá ser corrigida? Será que o
desmanche da Previdência Social é
suportável pela população? Como
explicar tudo isso?
A partir de 1979, déficit público e
dívida pública foram apresentados como os inimigos mais importantes. Entretanto, transformaram-se nos melhores aliados
do capital. Agora a dívida pública
com juros muito altos é o refúgio
seguro do capital. Se os salários
crescerem muito rapidamente por
causa do pleno emprego, ou mais
rapidamente do que a produtividade por causa dos sindicatos, o
capital tem alternativas. Pode mudar de país, procurar país onde os
salários sejam menores, a produtividade cresça mais depressa ou
onde os impostos sejam menores.
Se não houver outro lugar melhor
no mundo, pode se refugiar em títulos públicos e crescer a taxas de
juros muito altas, às custas do
contribuinte, dos cortes de outros
gastos, da privatização e do desemprego.
O déficit público, agora, viabiliza o desemprego e garante a remuneração mínima exigida pelo capital. Agora, ele aumenta com o desemprego. Não porque a arrecadação se reduz, mas porque o capital
precisa da dívida pública para garantir a taxa de lucros que exige.
Não é de estranhar que, com tantos ganhos de produtividade e tecnologia, o crescimento seja tão
lento, e o desemprego, tão elevado. Por isto o discurso neoliberal é
contraditório. Reagan promete
controlar o déficit e o aumenta. O
Plano Real acaba com a inflação e
aumenta o déficit. Compare os déficits de Reagan e Bush com os de
Clinton, os de Covas com os de
Maluf, os do Plano Real com os da
Nova República.
A charada só pode ser resolvida
se compreendermos que o déficit
público se transformou em garantia de renda mínima para o capital.
João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e foi ministro do Planejamento (governo José Sarney).
O artigo acima é a versão reduzida de palestra proferida no 26º Encontro da Anpec (Associação dos Centros de Pós-Graduação em Economia).
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