São Paulo, Domingo, 21 de Fevereiro de 1999
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ECONOMIA
O déficit público é o mais novo bode expiatório de economistas de todas as áreas
O vermelho e o negro

JOÃO SAYAD
especial para a Folha

O controle do déficit público é quase uma unanimidade entre os economistas acadêmicos nos últimos 20 anos. Aposto que a unanimidade se estende por todo o espectro político, da direita à esquerda, apesar de nuances.
Nunca me esqueço de que o governador Brizola, no final do primeiro mandato como governador, anunciava que havia controlado o déficit público. O Plano Trienal do ministro Celso Furtado, durante o regime parlamentarista de João Goulart, tinha o corte do déficit público como parte fundamental. Até parlamentares do PT defendem a privatização, o corte de gastos e a chamada modernização do Estado. Parece que o assunto foi julgado, e o veredicto se baseia na maioria do voto dos jurados. O governo é culpado. O déficit público é culpado. A agenda política deste governo, por exemplo, tem apenas este item negativo: reformar a Constituição para acabar com o déficit público, cortar gastos do governo, excluir os investimentos públicos que seriam incômodos ao investimento privado, e assim por diante.
Não é original. Reflete a agenda negativa da maioria dos governos de outros países nos últimos 20 anos. A inexistência de itens positivos e a preponderância de elementos negativos -não gastar, não fazer- parece refletir com clareza o momento crítico por que passam a economia e o pensamento ocidental.
Este artigo tenta renovar a discussão. Por que o déficit público foi eleito bode expiatório? Se o leitor já estiver cansado de economistas, pode alternativamente ler "O Vermelho e o Negro", de Stendhal. Argumento que vivemos período semelhante ao de Julien Sorel. Napoleão havia sido derrotado, os monarcas europeus haviam retomado o poder. Como a nossa geração, que na juventude teve sonhos de reforma e revolução e, na maturidade, viu a queda do Muro de Berlim e o retorno da economia ao começo do século, Julien Sorel começou a carreira em plena Restauração, quando o poder havia voltado para a aristocracia. Morreu decapitado. Não pôde ver que a Revolução Francesa, apesar do Terror e da derrota de Napoleão, havia mudado a Europa definitivamente. A agenda negativa dos últimos 20 anos reflete principalmente um retorno e uma reação à pujança econômica dos anos 40-70.

O que é déficit público
Chama-se déficit público a variação na dívida pública do governo. Ao nível das discussões políticas, ele aparece misturado com informações sobre o mau uso de recursos públicos, os marajás do famigerado presidente Collor, corrupção ou superfaturamento de obras. Déficit parece prejuízo, imprevidência ou desmando. Mas por que as discussões misturam conceitos como gasto público, déficit público e a má administração de recursos?
Além dessa imprecisão conceitual, existem outras. Déficit público se confunde com gasto público, grandes organizações, centralização e burocracia. Ou seja, argumenta-se em favor de organizações descentralizadas, menores e mais flexíveis, que teriam se tornando possíveis com o desenvolvimento da informática e dos meios de comunicação.
A ênfase na questão do déficit público, as propostas de reforma da Constituição de 1988 e as propostas do Consenso de Washington ignoram as dificuldades de uma abordagem macroeconômica para a questão dos gastos governamentais em países com as características estruturais do Brasil. Além disso, o país tem distribuição de renda extremamente concentrada, com grande contingente de pessoas com nível de renda muito baixo. Quando cortamos gastos do governo, afetamos mais a disponibilidade de bens e serviços para os pobres do que para os ricos.
Outras justificativas para o horror ao gasto público se baseiam na idéia de que o governo é menos eficiente, o que pode ser verdade, mas não faz parte das demonstrações consagradas na teoria econômica. Além disso, para comparar a eficiência do setor público com a do setor privado, seria necessário recuperar o conceito de economias externas, ligações para frente e para trás, "shadow prices" e desenvolvimento econômico. Todos foram abandonados. A questão pública perdeu relevância.
Assim, a Vale do Rio Doce não dava lucro. Mas, baseado em que teoria ou critério lucro, é consideração relevante para o setor público? A universidade, a escola em geral, o Corpo de Bombeiros, o Supremo Tribunal Federal e a estrada que liga o Acre ao Peru não dão lucro. O que podemos concluir dessas observações? Não deveríamos ter esquecido que a construção da nação brasileira a partir de uma sociedade de fazendeiros e escravos sempre esteve associada a projetos de servidores públicos. Os tenentes de 1924, a industrialização no período do Getúlio, o desenvolvimentismo de Juscelino com os Grupos Executivos Industriais, o Plano Nacional de Desenvolvimento do presidente Geisel foram projetos de investimentos e projetos para o país que não se contrapunham a projetos da sociedade civil. Seria exagero afirmar que o Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, é uma nação inventada pelo Estado?
Talvez a falta de energia empreendedora dos capitalistas brasileiros tenha sido a base do diagnóstico da teoria da dependência do presidente Fernando Henrique Cardoso. Entretanto a política que adotou até agora apenas incentivou a substituição do capitalista brasileiro pelo estrangeiro, ao passo que o setor público, que é agora alvo de críticas e objeto das reformas, sempre batalhou pela organização e apoio aos empreendedores brasileiros, a partir do mesmo diagnóstico. Entretanto, há 20 anos os economistas brasileiros são contra o gasto público. E tudo começa em 1974, após o primeiro choque de petróleo.
Naquele momento, as estatais são escolhidas pela opinião pública como origem das nossas dificuldades. O jornal "O Estado de S. Paulo" publica longa matéria sobre os gastos dos executivos mais importantes das estatais, que usavam aviões particulares, se hospedavam em hotéis de luxo, usavam cartões de crédito, e divulga o conceito de "mordomias". A oposição se rebela contra as estatais, acusadas de financiar a tortura. Kalecki, escrevendo nos anos da guerra contra o nazismo, poderia ter previsto a reversão. No artigo clássico "Aspectos Políticos do Pleno Emprego", afirma que gastos públicos e investimentos estatais vão contra o interesse politico dos empresários.
Empresários se opõem ao pleno emprego, apesar da possibilidade de aumentar vendas e lucro. O pleno emprego quebra a disciplina do mercado de trabalho. Apoio aos desempregados, que no início do século ainda eram chamados de vagabundos, é inconsistente com a ética capitalista do trabalho. O gasto público passa a ser abominado. Sem gasto público, o nível de atividade e de emprego passa a depender do estado de ânimo e das opiniões dos empresários sobre o governo. Assim, se o governo não atender as reivindicações e opiniões dos investidores, investimentos se reduzem, há fugas de capitais se houver mobilidade de capital e aumenta o desemprego. Sem gasto público, a opinião do capital resgata sua importância e efetividade. Votar no PT desestabiliza a economia.

Déficit e inflação
Desde a metade dos anos 70, o déficit público começa a assumir papel de destaque como responsável pela instabilidade da economia americana, que apresenta taxas de inflação crescentes, chegando a dois dígitos, e altas taxas de desemprego. A curva da Philips parece se deslocar para a direita, surgindo o conceito de "estagflação".
Os Estados Unidos perdem a Guerra do Vietnã, cresce o movimento de contracultura desde 1968 e ocorrem as manifestações de rua nas grandes cidades americanas. A política econômica conservadora se estabelece em 1979 com o presidente Reagan. Com a retórica do "supply side", abaixa impostos, corta gastos sociais e aumenta o déficit público. O Federal Reserve aumenta as taxas de juros para níveis de dois dígitos, o dólar começa a se sobrevalorizar. Os déficits comerciais dos Estados Unidos crescem rapidamente.
A política neoliberal se inicia. Gastos sociais, controles de preços e proteção tarifária são desmontados. Enquanto o déficit público americano cresce espetacularmente, as taxas de inflação americanas começam a cair. Déficit público e déficit externo estão claramente ligados, mas a inflação cai. Surpreendentemente, a política antidéficit público de Reagan produz imensos déficits públicos e obtém sucesso.
A explicação para o sucesso da política americana de combate a inflação pode ser formulada assim: o déficit comercial e a abertura criam desemprego e reduzem as pressões salariais. A sobrevalorização cambial decorrente do ingresso de divisas nos Estados Unidos traz preços mais baratos do exterior diminuindo a pressão inflacionária.
A dívida pública brasileira é peculiar. No inicio da Revolução de 64, economistas brasileiros afirmavam que o déficit público não era inflacionário. Inflacionária era a forma de financiamento. O déficit era financiado por empréstimos do Banco do Brasil, e não existia um mercado de dívida pública que permitisse financiamento mais adequado.
A criação de um título da dívida pública de longo prazo conseguiria financiamento não-inflacionário para o déficit. A indexação era o ingrediente necessário, numa economia como a brasileira, para que investidores privados comprassem esses papéis. A indexação no Brasil começa exatamente no recolhimento de impostos e na divida pública.
Entre 1970 e 1989 a dívida pública brasileira fora do Banco Central passa de 5 a 15% do PIB. Até 1980 ela representa parcela estável do PIB, da ordem de 5%. Depois, podemos distinguir dois períodos: entre 1980 e 1984, passa de 5% a 10%; no segundo período, entre 1984 e 1989, passa a 15% do PIB. Assim, o crescimento da dívida é maior nos anos da crise da dívida externa, entre 1980 e 1984, do que nos anos de superinflação. Como associar essa evidência à proposição de que o crescimento da dívida pública, ou seja, do déficit público, seria o motor da inflação brasileira?
Entre 1993 e 1998, a dívida pública fora do Banco Central passou de 7,5% para 38% do PIB, crescendo 38% ao ano. A inflação no período passou de 40% ao mês para zero ou negativa. Esses números não são demonstrações econométricas definitivas. Mas como conciliar evidência empírica tão forte com a unanimidade da preocupação com o déficit público na questão inflacionária?
Quando crescem os gastos do governo, o crescimento é apresentado como decorrente de políticas de apoio ao desenvolvimento regional, subsídios a setores ou empresas específicas, salários elevados, marajás, gastos com a previdência social, ineficiência; políticas que os neoliberais chamam de populistas.
Entretanto qualquer análise contábil e o fato de que a dívida pública cresça exatamente nos períodos de crise financeira nos dão pista diferente. Os componentes financeiros do déficit público brasileiro sempre foram muito importantes: o pagamento da dívida externa, os juros internacionais elevados do período.
Antes de 1984, tínhamos um duplo orçamento, o fiscal e o monetário, o que mostrava a importância do componente financeiro no total do déficit. A unificação orçamentária não atingiu o objetivo de evitar a discricionariedade do governo na área monetária e, pior do que isso, transferiu os ônus do orçamento monetário para o fiscal.

Déficit e desequilíbrio
Com o fim da inflação e o Plano Real, o déficit público passou a ser responsabilizado pelo déficit de transações correntes e pela impossibilidade de permitir a mudança da taxa cambial. Muda o problema -de inflação para desequilíbrio externo- e permanece o diagnóstico.
A separação entre políticas fiscal e monetária tem objetivos didáticos e analíticos e tradicionalmente é feita assim: chama-se política fiscal àquela política que aumenta gastos ou impostos sem alterar a forma de financiamento, isso é, mantendo constante a estrutura de propriedade dos ativos financeiros do setor privado, mais especificamente, mantendo constante a relação ativos financeiros líquidos (moeda) e ativos financeiros não líquidos (dívida pública). Política monetária seria a política que afeta a estrutura dos ativos financeiros (aumentando ou diminuindo a relação divida pública-moeda) em mãos do setor privado sem afetar gastos ou impostos do governo.
Dadas essas definições, façamos a contabilidade do governo. Se quisermos de fato avaliar a política econômica, vale a pena iniciar com o governo consolidado, isto é, Banco Central e Tesouro Nacional agregadamente.
O governo realiza gastos com salários, investimentos, aposentadorias e subsídios regionais ou setoriais. Esses gastos podem se dirigir a áreas sociais, como saúde ou educação, ou de infra-estrutura, como energia e transportes. A reforma da Constituição pela qual se bate o atual governo visa a reduzir esse tipo de gasto associado ao orçamento fiscal. Entretanto o Banco Central realiza gastos investindo em reservas que são financiadas com a emissão de dívida pública, vendidas com taxas de juros muito altas para atrair influxos de capital estrangeiro. Entretanto o discurso oficial do governo -e a proposta de muitos dentre nós- é produzir um superávit primário para o pagamento de juros.
Sob que critérios econômicos temos que aceitar essa ordem de prioridades -antes os juros, depois os aposentados, ou antes os juros, depois a saúde? As propostas são arbitrárias, convencionais, quer dizer, baseadas em convenção contábil. Sob que critérios econômicos teríamos que apoiá-las?
Talvez pudéssemos concordar com elas sob a alegação de que levam à melhor alocação de recursos. Existem os marajás, as fraudes no INSS, os credores rurais de má-fé, o superfaturamento. Todas essas considerações são aceitáveis. Ninguém defende desperdício, com ou sem equilíbrio fiscal.
Mas quais são os critérios que justificam que o Tesouro tenha que investir em reservas de dólares com juros de 4% ao ano, tomando empréstimos de 40% de juros ao ano? Como se pode falar em liberdade, não-intervenção e fim da burocracia, se os maiores componentes da despesa, juros e compra de reservas são decididos discricionariamente pelo Banco Central, que reclama da falta de independência?
Em resumo, a inflação não podia ser atribuída ao excesso de demanda agregada causado pelos gastos do governo; o déficit de transações correntes é reflexo de preços relativos inadequados, a taxa de câmbio, em uma economia com imenso contingente de desemprego; os maiores itens dos gastos governamentais têm origem na política monetária e cambial. Assim, somos levados a discutir cortes de gastos que prejudicam os mais pobres quando existe desemprego e com o objetivo de financiar os juros inéditos pagos aos compradores da dívida pública. A agenda política do governo -reformar a Constituição, privatizar e reformar a Previdência- é justificada nesses termos. É difícil se conformar. A crítica é desclassificada como anacrônica ou heterodoxa quando se baseia em autores neoclássicos, ou mesmo em bom senso, prudência política e compaixão.
Será que os novos empresários das empresas privatizadas terão o espírito empreendedor e público dos seus antecessores? Será que a desorganização da burocracia e dos quadros do governo depois poderá ser corrigida? Será que o desmanche da Previdência Social é suportável pela população? Como explicar tudo isso?
A partir de 1979, déficit público e dívida pública foram apresentados como os inimigos mais importantes. Entretanto, transformaram-se nos melhores aliados do capital. Agora a dívida pública com juros muito altos é o refúgio seguro do capital. Se os salários crescerem muito rapidamente por causa do pleno emprego, ou mais rapidamente do que a produtividade por causa dos sindicatos, o capital tem alternativas. Pode mudar de país, procurar país onde os salários sejam menores, a produtividade cresça mais depressa ou onde os impostos sejam menores. Se não houver outro lugar melhor no mundo, pode se refugiar em títulos públicos e crescer a taxas de juros muito altas, às custas do contribuinte, dos cortes de outros gastos, da privatização e do desemprego.
O déficit público, agora, viabiliza o desemprego e garante a remuneração mínima exigida pelo capital. Agora, ele aumenta com o desemprego. Não porque a arrecadação se reduz, mas porque o capital precisa da dívida pública para garantir a taxa de lucros que exige. Não é de estranhar que, com tantos ganhos de produtividade e tecnologia, o crescimento seja tão lento, e o desemprego, tão elevado. Por isto o discurso neoliberal é contraditório. Reagan promete controlar o déficit e o aumenta. O Plano Real acaba com a inflação e aumenta o déficit. Compare os déficits de Reagan e Bush com os de Clinton, os de Covas com os de Maluf, os do Plano Real com os da Nova República.
A charada só pode ser resolvida se compreendermos que o déficit público se transformou em garantia de renda mínima para o capital.


João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e foi ministro do Planejamento (governo José Sarney).
O artigo acima é a versão reduzida de palestra proferida no 26º Encontro da Anpec (Associação dos Centros de Pós-Graduação em Economia).




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