São Paulo, Domingo, 21 de Fevereiro de 1999
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PONTO DE FUGA

She walks in beauty

JORGE COLI
em Nova York

Uma atual exposição do MoMA conduz a pensar que o mais genial fotógrafo do século passado foi uma mulher. Ela era inglesa, foi tia-avó de Virginia Woolf e se chamava Julia Margaret Cameron. Ganhou uma câmera de sua filha em 1863, aos 48 anos, e suas fotografias resultaram tão notáveis que imediatamente atingiu a celebridade e um público de colecionadores. Fez retratos de importantes intelectuais, de Darwin a Tennyson, mas a atual mostra concentra-se em imagens femininas. Julia Cameron estava mergulhada num clima pré-rafaelita, e suas fotos pertencem tão legitimamente àquela sensibilidade quanto um quadro de Millais ou um texto de Ruskin. Busca um diálogo com a pintura, como o fizeram tantos fotógrafos da época, mas esquiva-se da imitação involuntariamente paródica e um pouco grotesca que ocorria sempre -basta pensarmos nas tentativas do Barão von Gloeden. Em vez disso, sabe manter a fotografia dentro de sua natureza específica para alcançar, miraculosamente, a finura e a qualidade dos grandes quadros. Utiliza brilhos, transparências e o "sfumato", que leves distorções de foco ou de movimento dos modelos podem produzir. Suas tiragens são verdadeiros "originais"; demonstram uma tal definição que mesmo as boas reproduções dos melhores catálogos não fazem jus à qualidade primitiva. O título de uma de suas obras vem de Byron: "Ela caminha na beleza, em climas sem nuvens e sob céus cheios de estrelas".


O título do artigo remete ao primeiro verso de Byron citado acima

DÉCADA - Nas relações entre o homem e Deus, Robert Bresson interroga-se sobre o temporal, o efêmero e o eterno. Para tanto, penetra nas características de um meio social e capta uma época. Rever, 20 anos depois, "Le Diable Probablement" na retrospectiva do diretor oferecida pelo MoMa é voltar aos tempos das calças boca-de-sino, à elegância displicente das roupas moldando corpos longilíneos e andróginos. É perceber também o caráter profético de um olhar desconfiado, que se confirma cada vez mais neste fim de milênio. Bresson desespera-se diante do desrespeito à natureza. Também acerta contas com as grandes ilusões interpretativas de nosso século, o marxismo e a psicanálise, esta última, por sinal, com uma justa crueldade. Isso, num tempo em que elas vigoravam como novos evangelhos, nos quais, é claro, o jansenista Bresson não podia acreditar. Ele atacaria mais tarde o capitalismo, em "L'Argent". Bresson evita os símbolos e as alusões culturais complexas de um Tarkovsky, por exemplo, que se aproxima dele pela postura espiritual. Bresson prefere a vertigem da simplicidade.

FEMININO - As mulheres retratadas por Julia Cameron não sorriem. Encerram-se numa grave e sensual melancolia, como a dos modelos de Burne-Jones ou de Rossetti, profunda e sem artifícios. Algo de essencial encontra-se prisioneiro dentro desses corpos e desses rostos, por trás dos olhos muito abertos, dos lábios imóveis, traduzindo impossível plenitude. Sem afetações, sem pose romântica, os temas literários que a inspiraram adquirem uma verdade nem sempre obtida pela pintura.

COPO - É como nos velhos filmes em que, a partir das biografias de Zola ou de Rembrandt, brotava uma trama maravilhosa e biruta. "Shakespeare in Love" imagina uma jovem rica, obrigada a se disfarçar de homem para poder amar o bardo. "O amor que não ousa dizer seu nome", cantado por Shakespeare, explica-se assim pelo disfarce, o que não deixa de ser uma certa forma de covardia. Mas instilar algum amargo nessa refrescante água-com-açúcar é que seria um pecado.



Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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