São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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O cineasta Jean-Luc Godard reflete sobre a relação entre a história do cinema e a do século 20 em um projeto de oito vídeos e quatro livros que ele levou 15 anos para concluir
O mistério do cinema

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Todo o projeto de "História(s) do Cinema", de Jean-Luc Godard, se sustenta basicamente no esforço de roubar uma única palavra de seu uso semântico habitual, técnico, para lhe atribuir um sentido quase místico e transformar o cinema em mistério -o cinema "não é uma arte, nem uma técnica; um mistério".
Todo o projeto, que consumiu 15 anos de reflexões do cineasta para se concluir com uma série de oito vídeos -e uma coleção de quatro volumes, com a reprodução dos textos e das imagens dos vídeos, lançada no final de 98, na França-, busca na montagem a chave desse mistério.
Nem livros de arte nem de teoria, os quatro volumes criam um novo formato de comunicação de idéias, em que uma reflexão idiossincrática, pessoal e poética brota da combinação dos textos e das imagens mais incongruentes.
O primeiro volume ("Todas as Histórias; Uma História Só") fala do nascimento do cinema -e "de como ele logo tomou conta de tudo", nas palavras do cineasta-, mas também da solidão de uma arte que diz "o sagrado na noite do mundo". O segundo volume ("Só o Cinema; Beleza Fatal") mostra como o cinema foi o único meio capaz de expor a história ao mesmo tempo em que filmava as pequenas comédias e musicais, e que a história do cinema é a história da beleza, de homens filmando a beleza da mulher. O terceiro volume ("O Troco do Absoluto; Uma Nova Onda") parte de uma citação de André Malraux para falar da guerra, das nações, da política, de Auschwitz, da Europa e da paixão e da redenção pelo cinema. O quarto volume ("O Controle do Universo; Os Signos à Nossa Volta") fala do domínio econômico e do cinema como um jogo de sinais a serem interpretados.
Godard tem uma idéia muito pessoal da montagem ("montage, mon beau souci" -montagem, minha doce obsessão-, aparece estampado na tela), uma idéia quase mágica, redentora, a verdadeira vocação do cinema, segundo ele, que se perdeu, nunca se realizou, nem pelas mãos de Eisenstein, nem de Griffith, nem de ninguém: a montagem como revelação.
No segundo volume de "Godard por Godard" (reunião de todos os textos e entrevistas do diretor entre 84 e 97), publicado pelos "Cahiers du Cinéma" simultaneamente ao lançamento de "História(s) do Cinema", há vários trechos e ocasiões em que o cineasta tenta se explicar:
"Na montagem, temos fisicamente um momento, como um objeto (...). Temos o presente, o passado e o futuro. (...) Na montagem, encontramos o destino. (...) Não sou cristão, mas quando leio, nas epístolas de São Paulo, que a imagem virá no tempo da ressurreição..., pois bem, depois de 30 anos de montagem, começo a entender. Para mim, a montagem é a ressurreição da vida". Ou: "Os alemães ignoraram a montagem, mas a procuravam à sua maneira, partindo do cenário, da iluminação, de uma filosofia do mundo, que chamam de Aufklärung".
A montagem é, assim, o momento de iluminação em que por fim se compreendem "os signos à nossa volta". E "Histórias(s) do Cinema" é, ao mesmo tempo, a montagem de uma série interminável de citações cinematográficas e literárias, e uma reflexão sobre essa idéia perdida e reveladora de montagem: "Queremos falar demais antes de ver. Desde o início do cinema, ver de nada serve a falar. Mas, em algum momento, ver tem de servir a falar", diz o cineasta.
Godard busca uma montagem entre imagens aparentemente alheias umas às outras -afinal, o que "Anjos do Pecado" (1943), de Robert Bresson, teria a ver com "Psicose" (1960), de Hitchcock? Mais do que a recente refilmagem de Gus van Sant, responderia o cineasta -e entre textos e imagens díspares-, "juntar coisas que nunca foram relacionadas", ele exorta -com o único objetivo de fazer emergir, dessas combinações inusitadas, entre os filmes e as guerras e a morte e a política e o sexo e a arte, um novo sentido que permita uma nova compreensão do mundo, que permita ver para falar.
É o próprio cineasta quem fornece os exemplos desse sentido de montagem por meio da história: "Por volta de 1540, Copérnico chega à idéia de que o sol não gira em torno da Terra. Alguns anos depois, Vesalius publica "De Corporis Humanis Fabrica", em que revela o interior do corpo humano, as entranhas, o esqueleto. Quatrocentos anos depois, o biólogo François Jacob diz: "No mesmo ano, Copérnico e Vesalius...". Pois bem, aí Jacob não está fazendo biologia: está fazendo cinema. E a história não é mais do que isso. Da mesma maneira, quando Cocteau diz: se Rimbaud tivesse vivido, teria morrido no mesmo ano em que o marechal Pétain. Então, você vê o retrato de Rimbaud jovem, você vê o retrato de Pétain em 48, e coloca os dois juntos, e você tem uma história, você tem história. É isso o cinema. Tudo o que eu gostaria de dizer às pessoas é que só há cinema...".
Para o cineasta, a vocação dos filmes teria sido projetar esse esclarecimento quase mágico: "Se filmamos um engarrafamento nas ruas de Paris e sabemos vê-lo (não apenas eu, mas eu e François Jacob), podemos descobrir -se sabemos ver- uma vacina para a Aids". Mas alguma coisa se perdeu no caminho, e o cinema tomou um outro rumo. É disso que Godard está falando ao fazer a sua "história do cinema".
A última parte da série de vídeos e da coleção de quatro volumes se chama "Os Signos à Nossa Volta", a partir do título de um romance do suíço Charles-Ferdinand Ramuz (1878-1947). No romance, um mascate chega a um vilarejo e logo fica amigo de todos, porque sabe contar mil e uma histórias. Mas vem uma tempestade que dura dias, e o mascate diz que é o fim do mundo. Quando por fim o sol reaparece, os moradores do vilarejo o expulsam. "Esse mascate é o cinema", diz Godard.
"História(s) do Cinema" é um ensaio reflexivo e, como tal, depende da boa vontade e, mais, da cumplicidade do espectador ou do leitor. É preciso que, como Godard, esse espectador ou leitor também queira ver além dos filmes a que ele aprendeu a assistir, para além das aparências, a possibilidade de um outro cinema.
"História(s) do Cinema" não precisa de um espectador crente, mas que seja capaz de ver, ver para crer nessa perspectiva quase mística da montagem. Não é à toa que o projeto termina com uma citação de Coleridge, segundo Borges: "Que dizer de um homem que atravessa o paraíso em sonho, recebe uma flor como prova de sua passagem e, ao acordar, encontra essa flor em suas mãos?". E só resta a Godard responder: "Esse homem era eu".


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