|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O cineasta Jean-Luc Godard reflete sobre a relação entre a história do cinema e a do século 20 em um projeto de oito vídeos e quatro livros que ele levou 15
anos para concluir
O mistério do cinema
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
Todo o projeto de "História(s)
do Cinema", de Jean-Luc Godard,
se sustenta basicamente no esforço de roubar uma única palavra de
seu uso semântico habitual, técnico, para lhe atribuir um sentido
quase místico e transformar o cinema em mistério -o cinema
"não é uma arte, nem uma técnica; um mistério".
Todo o projeto, que consumiu
15 anos de reflexões do cineasta
para se concluir com uma série de
oito vídeos -e uma coleção de
quatro volumes, com a reprodução dos textos e das imagens dos
vídeos, lançada no final de 98, na
França-, busca na montagem a
chave desse mistério.
Nem livros de arte nem de teoria, os quatro volumes criam um
novo formato de comunicação de
idéias, em que uma reflexão idiossincrática, pessoal e poética brota
da combinação dos textos e das
imagens mais incongruentes.
O primeiro volume ("Todas as
Histórias; Uma História Só") fala
do nascimento do cinema -e "de
como ele logo tomou conta de tudo", nas palavras do cineasta-,
mas também da solidão de uma
arte que diz "o sagrado na noite
do mundo". O segundo volume
("Só o Cinema; Beleza Fatal")
mostra como o cinema foi o único
meio capaz de expor a história ao
mesmo tempo em que filmava as
pequenas comédias e musicais, e
que a história do cinema é a história da beleza, de homens filmando
a beleza da mulher. O terceiro volume ("O Troco do Absoluto;
Uma Nova Onda") parte de uma
citação de André Malraux para falar da guerra, das nações, da política, de Auschwitz, da Europa e da
paixão e da redenção pelo cinema.
O quarto volume ("O Controle do
Universo; Os Signos à Nossa Volta") fala do domínio econômico e
do cinema como um jogo de sinais
a serem interpretados.
Godard tem uma idéia muito
pessoal da montagem ("montage,
mon beau souci" -montagem,
minha doce obsessão-, aparece
estampado na tela), uma idéia
quase mágica, redentora, a verdadeira vocação do cinema, segundo
ele, que se perdeu, nunca se realizou, nem pelas mãos de Eisenstein, nem de Griffith, nem de ninguém: a montagem como revelação.
No segundo volume de "Godard por Godard" (reunião de todos os textos e entrevistas do diretor entre 84 e 97), publicado pelos
"Cahiers du Cinéma" simultaneamente ao lançamento de
"História(s) do Cinema", há vários trechos e ocasiões em que o
cineasta tenta se explicar:
"Na montagem, temos fisicamente um momento, como um
objeto (...). Temos o presente, o
passado e o futuro. (...) Na montagem, encontramos o destino. (...)
Não sou cristão, mas quando leio,
nas epístolas de São Paulo, que a
imagem virá no tempo da ressurreição..., pois bem, depois de 30
anos de montagem, começo a entender. Para mim, a montagem é a
ressurreição da vida". Ou: "Os
alemães ignoraram a montagem,
mas a procuravam à sua maneira,
partindo do cenário, da iluminação, de uma filosofia do mundo,
que chamam de Aufklärung".
A montagem é, assim, o momento de iluminação em que por
fim se compreendem "os signos à
nossa volta". E "Histórias(s) do
Cinema" é, ao mesmo tempo, a
montagem de uma série interminável de citações cinematográficas
e literárias, e uma reflexão sobre
essa idéia perdida e reveladora de
montagem: "Queremos falar demais antes de ver. Desde o início
do cinema, ver de nada serve a falar. Mas, em algum momento, ver
tem de servir a falar", diz o cineasta.
Godard busca uma montagem
entre imagens aparentemente
alheias umas às outras -afinal, o
que "Anjos do Pecado" (1943),
de Robert Bresson, teria a ver com
"Psicose" (1960), de Hitchcock?
Mais do que a recente refilmagem
de Gus van Sant, responderia o cineasta -e entre textos e imagens
díspares-, "juntar coisas que
nunca foram relacionadas", ele
exorta -com o único objetivo de
fazer emergir, dessas combinações
inusitadas, entre os filmes e as
guerras e a morte e a política e o
sexo e a arte, um novo sentido que
permita uma nova compreensão
do mundo, que permita ver para
falar.
É o próprio cineasta quem fornece os exemplos desse sentido de
montagem por meio da história:
"Por volta de 1540, Copérnico
chega à idéia de que o sol não gira
em torno da Terra. Alguns anos
depois, Vesalius publica "De Corporis Humanis Fabrica", em que
revela o interior do corpo humano, as entranhas, o esqueleto.
Quatrocentos anos depois, o biólogo François Jacob diz: "No mesmo ano, Copérnico e Vesalius...".
Pois bem, aí Jacob não está fazendo biologia: está fazendo cinema.
E a história não é mais do que isso.
Da mesma maneira, quando Cocteau diz: se Rimbaud tivesse vivido, teria morrido no mesmo ano
em que o marechal Pétain. Então,
você vê o retrato de Rimbaud jovem, você vê o retrato de Pétain
em 48, e coloca os dois juntos, e
você tem uma história, você tem
história. É isso o cinema. Tudo o
que eu gostaria de dizer às pessoas
é que só há cinema...".
Para o cineasta, a vocação dos
filmes teria sido projetar esse esclarecimento quase mágico: "Se
filmamos um engarrafamento nas
ruas de Paris e sabemos vê-lo (não
apenas eu, mas eu e François Jacob), podemos descobrir -se sabemos ver- uma vacina para a
Aids". Mas alguma coisa se perdeu no caminho, e o cinema tomou um outro rumo. É disso que
Godard está falando ao fazer a sua
"história do cinema".
A última parte da série de vídeos
e da coleção de quatro volumes se
chama "Os Signos à Nossa Volta", a partir do título de um romance do suíço Charles-Ferdinand Ramuz (1878-1947). No romance, um mascate chega a um
vilarejo e logo fica amigo de todos,
porque sabe contar mil e uma histórias. Mas vem uma tempestade
que dura dias, e o mascate diz que
é o fim do mundo. Quando por
fim o sol reaparece, os moradores
do vilarejo o expulsam. "Esse
mascate é o cinema", diz Godard.
"História(s) do Cinema" é um
ensaio reflexivo e, como tal, depende da boa vontade e, mais, da
cumplicidade do espectador ou do
leitor. É preciso que, como Godard, esse espectador ou leitor
também queira ver além dos filmes a que ele aprendeu a assistir,
para além das aparências, a possibilidade de um outro cinema.
"História(s) do Cinema" não
precisa de um espectador crente,
mas que seja capaz de ver, ver para
crer nessa perspectiva quase mística da montagem. Não é à toa que o
projeto termina com uma citação
de Coleridge, segundo Borges:
"Que dizer de um homem que
atravessa o paraíso em sonho, recebe uma flor como prova de sua
passagem e, ao acordar, encontra
essa flor em suas mãos?". E só resta a Godard responder: "Esse homem era eu".
Texto Anterior: Brasil 500 d.c. - Jurandir Freire Costa: Estratégia de avestruz Próximo Texto: JLG por JLG Índice
|