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+ memória
Lançado em 1900, ensaio de Rodó provocou até o surgimento de sociedades alternativas
Entre Ariel e Caliban
O livro respondia às inquietudes de seu tempo, que continuam sendo em grande parte as nossas inquietudes -começava o "século americano" e essa conjuntura se reflete inevitavelmente em "Ariel"
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Moacyr Scliar
Colunista da Folha
Dificilmente um livro latino-americano alcançou
tanta repercussão quanto "Ariel", do uruguaio José Enrique Rodó (1872-1917), classificado por Roberto
Echevarría como um "ensaio fundador". Lançado em
1900, há exatamente um século, teve várias reimpressões, ensejou numerosas resenhas e críticas. Publicações foram criadas especialmente para discuti-lo, sociedades surgiram baseadas nas idéias que expressava. E
no entanto é um texto curto, escrito num estilo pomposo que dificulta a leitura.
Mas não há dúvida de que respondia às inquietudes
de seu tempo, que continuam sendo em grande parte as
nossas inquietudes. Começava o "século americano", o
século no qual os Estados Unidos imporiam sua hegemonia, e começava sob o signo de vitórias militares pelas quais os norte-americanos arrebataram à Espanha,
Cuba, Porto Rico e as Filipinas. Essa conjuntura se reflete inevitavelmente em "Ariel".
O título é claro, uma alusão a Shakespeare que, em "A
Tempestade" (inspirada no relato de um naufrágio nas
Bermudas), descreve uma mítica ilha governada pelo
sábio Próspero, que tem a seu serviço Ariel, o gênio dos
ares -um símbolo de espiritualidade-, e o grotesco
Caliban, cujo nome é um anagrama de "canibal". Numerosas obras, aliás, adotaram títulos parecidos: "O Espelho de Próspero - Cultura e Idéias na América", de Richard M. Morse, é uma; "Caliban", do cubano Roberto
Fernández Retamar, é outra. Ariel é apresentado como
se fosse uma lição moral e espiritual dada por um mestre, que fala junto a uma estátua de Ariel e que lhe serve
como "aura".
O mestre aborda vários temas. Um deles: o imenso
afluxo de emigrantes à América Latina. Aquela era a
época em que os políticos adotavam o lema proposto
pelo argentino Juan Alberdi: "Gobernar es poblar". Italianos, alemães, eslavos chegam em massa para ocupar
a imensa vastidão desértica de que falava Domingos
Faustino Sarmiento e também para "branquear" a população. Coisa que deixa Rodó temeroso: sim, diz ele,
governar é povoar, mas há que cuidar a "torrente humana": "A multidão, a massa anônima, não é nada por
si mesma", são "hordas de vulgaridade". E continua: "A
civilização de um povo adquire seu caráter não das manifestações de sua prosperidade ou grandeza material,
mas de superiores maneiras de pensar e sentir". Estamos falando, portanto, de aristocracia; aristocracia intelectual, mas aristocracia. Ele o diz: "Racionalmente
concebida, a democracia admite sempre um imprescritível elemento aristocrático, que consiste em estabelecer
a superioridade dos melhores".
Sob esta mesma ótica Rodó vê a ascensão dos norte-americanos: é o triunfo de uma filosofia, a filosofia utilitarista: "Os Estados Unidos podem ser considerados a
encarnação do discurso utilitário". O que lhe causa
apreensão: "A admiração por sua grandeza e por sua
força é um sentimento que avança no espírito dos nossos dirigentes e talvez mais ainda no das multidões, fascinadas pela impressão de vitória". Estamos, diz Rodó,
diante de uma verdadeira "nordomania", uma mania
do Norte. Reconhece méritos nos americanos, o apego à
liberdade, a valorização do trabalho e da técnica. Trata-se de uma herança recebida dos ingleses, desprovida,
porém, de espiritualidade. Isso porque "o povo inglês
tem, na instituição da aristocracia - por anacrônica e
injusta que seja politicamente-, um alto e inexpugnável baluarte ao mercantilismo".
Rodó se opõe assim a Sarmiento, que, anos antes, tinha viajado aos Estados Unidos e chegado à conclusão
de que a Argentina deveria ser mais "americana" do
que "latina", mais progresso e menos retórica. Mas se
opõe também ao cubano José Martí, a quem quis dedicar seu livro. Diz Retamar: "O repúdio de Martí ao etnocídio europeu na América é total". Martí é um defensor
da identidade latino-americana baseada inclusive na
cultura indígena. Sarmiento achava que a Martí faltava
cultura: "Gostaria que nos oferecesse menos dos americanos do sul e mais dos ianques". Martí, conclui Retamar, estava mais para Caliban do que para Ariel. E Caliban, para muitos intelectuais (como Aimé Césaire), é
uma metáfora mais apropriada para a América Latina
do que Ariel.
É fácil perceber que essa discussão permanece tão
atual como há um século. Mais que nunca, as relações
entre Estados Unidos e América Latina estão na ordem
do dia. Nessa discussão, o texto de Rodó aparece como
um curioso, mas significativo anacronismo. O final de
Ariel é muito significativo. Deslumbrados com o que
acabaram de ouvir do mestre, os alunos saem. Mas algo
lhes perturba o êxtase: a multidão que enche as ruas.
Um dos alunos, "ensimesmado reflexivo", diz, à guisa
de consolo: "A multidão não olha o céu, mas o céu olha
a multidão". Nas alturas, Rodó sem dúvida se colocou.
Mas lá se pode contar com a companhia das estrelas,
não com a companhia de seres humanos.
Moacyr Scliar é escritor, autor, entre outros, de "A Mulher que Escreveu a Bíblia" (Companhia das Letras).
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