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Uma urbe tropical
Para o historiador Nicolau Sevcenko, São Paulo vive desde a semana passada uma nova etapa de sua evolução histórica e social
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
O
castelo de cartas
ruiu." Isolada em
um centro resguardado pela autoridade pública e
encravado na maior cidade do
país, a "elite branca" de São
Paulo a que se referiu o governador do Estado, Cláudio Lembo (em entrevista à Folha de
18/5), viu ruir na semana passada os limites físicos e mentais que a separavam dos bolsões de miséria da periferia.
É o que pensa o historiador
Nicolau Sevcenko em declaração à Folha.
Para ele, que leciona na USP,
a cidade finalmente se aproximou de forma evidente do padrão de outras metrópoles brasileiras, como Salvador, Recife
e Rio, onde miséria e pobreza
se justapõem e transigem.
Os ataques
põem abaixo
a ilusão
que São Paulo
sempre produziu:
de que
era diferente
das outras
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Autor de "Orfeu Extático na
Metrópole" (Cia. das Letras), importante estudo sobre o impacto das novas tecnologias
nos processos de urbanização
da São Paulo dos anos 20, Sevcenko também avalia a ética individual na formação das sociedades brasileira e americana.
Na entrevista abaixo, concedida por telefone dos EUA, onde é professor convidado de
culturas latino-americana e
hispânica em Harvard, Sevcenko reivindica para o Brasil uma
"operação mãos limpas" e uma
revolução educacional, nos
moldes da feita pela Índia e pela Coréia do Sul.
FOLHA - Os ataques da semana
passada são um ponto de inflexão
no desenvolvimento social e histórico de São Paulo?
NICOLAU SEVCENKO - Sim. A característica de cidades como
Rio, Salvador ou Recife é de
convívio muito próximo entre
os bolsões de privilégio e os de
miséria, de tal modo que se
configura uma situação de porosidade entre as diferentes
áreas e condições sociais.
Do ponto de vista histórico, o
que diferenciava São Paulo era
seu modo de expansão urbana,
que empurrou a população para as periferias, criando uma
espécie de área de privilégio
central mantida sob o controle
da autoridade pública e para a
qual a periferia é invisível.
Os ataques do PCC configuram uma situação inédita e
põem abaixo a ilusão que São
Paulo sempre produziu: a de
que era diferente das outras. Na
verdade, ela é exatamente a
mesma coisa, diferindo-se apenas pela disposição territorial e
o controle do espaço público.
Esse castelo de cartas iria
ruir mais cedo ou mais tarde,
sobretudo porque a expansão
desse centro privilegiado foi tocando cada vez mais nos bolsões de pobreza. O que antes
era um contato raro foi se tornando cada vez mais inevitável.
Essa espécie de mistificação
paulista foi sendo corroída nas
últimas décadas e não se sustenta mais. São Paulo é exatamente como todo o restante do
país, feita de uma brutal desigualdade, que concentra e não
distribui riqueza.
FOLHA - Mas essa segregação não
é um fenômeno comum às demais
metrópoles, como as dos EUA?
SEVCENKO - O caso brasileiro é
de fato muito parecido com o
americano. Também há descompensação, e não por acaso
os EUA são o país com a maior
população carcerária do planeta. Os pobres ficam concentrados no centro da cidade, as "no
go areas" ["áreas aonde não se
vai"], enquanto a classe média
se espalha pelos subúrbios.
Mas a diferença em relação
ao Brasil é que nos EUA a autoridade pública ainda tem o controle espacial. O Brasil, ao contrário, vive uma situação de
corrupção que se tornou orgânica, estrutural. Nesse sentido,
o que ocorre no nível "baixo" da
criminalidade é uma reprodução do que acontece no nível
"superior" da corrupção política e financeira do país.
FOLHA - As soluções para o problema da violências nas metrópoles do
Brasil e dos EUA são similares?
SEVCENKO - Não, justamente
porque, nos EUA, a corrupção
não está no controle.
Mas, acima de tudo, o que
prevalece é a obsessão nacional
pelo rigor da lei, que começa no
quarteirão onde se mora, no
bairro, no subdistrito, até chegar ao governo federal.
Já no Brasil ocorre um desinvestimento do poder em relação à população, que deveria
assumir o gerenciamento da cidadania. Nesse vácuo, cria-se
um ambiente propício a todas
as formas de incivilidade, das
pequenas fraudes cotidianas
até a alta criminalidade.
FOLHA - Mas aqui não caímos na
velha tese da volatilidade entre os
espaços público e privado no Brasil?
Seguindo esse raciocínio, não estaríamos sobrecarregando demais o
cidadão em detrimento das instâncias públicas, que, afinal, estão lá representadas democraticamente?
SEVCENKO - Acho que não, acho
que se trata de uma situação sinérgica, em que um dos elementos da equação rebate sobre o outro e assim sucessivamente. Toda essa tolerância
pelo desrespeito às normas está incorporado ao modo de viver. É aquilo que os romanos
chamavam de uma "república
celerada", que se dá devido ao
ambiente de impunidade.
FOLHA - Mas, insisto, não existiria
aí uma exacerbação de uma ética individual em detrimento da responsabilidade do poder público?
SEVCENKO - Assim seria se você
olhasse o sistema segundo os
padrões de regra com que se articula. Mas o problema é que as
regras estão sendo burladas o
tempo inteiro, e as instâncias
políticas são as primeiras a se
beneficiar dos privilégios.
FOLHA - Levando ao limite sua linha de análise, poderíamos concluir
que, bem, a democracia não funciona no Brasil?
SEVCENKO - Não é que ela não
funciona: ela tem certos elementos viciosos no Brasil que
precisam ser aperfeiçoados,
particularmente no modo como se articula em partidos que
não apresentam coesão orgânica com as comunidades. Aliás,
talvez seja essa a diferença essencial entre Brasil e EUA: a
política que nasce no bairro. Na
escola do bairro, na biblioteca,
no corpo de bombeiros, desdobrando-se de baixo para cima.
No Brasil, o que há são grupos organizados que não têm
nenhum compromisso com a
base social do país, que não têm
nenhuma outra intenção que
não sua própria perpetuação,
em uma situação de privilégio.
Todo o conjunto do sistema
passa a ser contaminado pela
idéia de privilégio, em um país
que é imensamente desigual.
FOLHA - Como reverter a falta de
participação ativa do cidadão em
um país hostil a tal tradição? E, caso
isso não seja possível, a democracia
no Brasil está fadada a ser uma definição meramente formal?
SEVCENKO - Sim, lamento dizer,
mas, no momento, é o que ela é:
uma fraude com uma fachada
institucional. Mas penso em
soluções em dois níveis. A primeira seria uma "operação
mãos limpas", como a adotada
na Itália, algo que poderia atingir todos os níveis do poder político e econômico e, assim, mudar a história do Brasil.
Outra providência seria deter a degradação do ensino público. Essa é uma área crítica e
estratégica, essencial para reverter a dissolução entrópica
da norma pública e social. Uma
revolução educacional foi feita
em sociedades muito mais populosas e complexas que o Brasil -como a chinesa, a indiana e
a sul-coreana- e que saíram de
patamares de subdesenvolvimento muito mais drásticos.
FOLHA - Para o sr., então, a questão
da violência é sobretudo social, e
não jurídico-criminal?
SEVCENKO - Há duas formas de
analisar a questão. Certamente
que há medidas pontuais a serem tomadas em várias áreas.
Mas, se você se restringir a isso,
estará apenas tentando conter
um dique à beira de estourar.
Para entender o fundamento
da questão, é preciso entender
o desnível do dique, a maneira
como a água extrapola o limite
que a estrutura pode suportar.
Ou você olha o problema dessa forma ou vai tentar consertar com bandeide e esparadrapo. Acho que politicamente é
mais fácil conduzir na base do
bandeide e esparadrapo, pois
são imediatamente visíveis.
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