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O elo perdido
RELATÓRIO CONFIDENCIAL DO DOPS, DE 30 DE AGOSTO DE 1971, REFORÇA LIGAÇÃO COM O ARTISTA
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DA SUCURSAL DO RIO
Relatório interno do
Departamento de
Ordem Política e Social da Guanabara,
com carimbo "confidencial", resumiu em 30 de
agosto de 1971 a relação com
Wilson Simonal:
"É elemento ligado não só ao
Dops, como a outros órgãos de
informação, sendo atualmente
o elemento de ligação entre o
governo, as autoridades e as
Forças Armadas com o povo,
participando de atos públicos e
festividades, fazendo de seu
verbo e prosa a comunicação
que há tanto tempo faltava".
O signatário foi o chefe da
Seção de Buscas Ostensivas,
Mário Borges. O destinatário, o
chefe do Serviço de Buscas, José Pereira de Vasconcellos.
No mesmo dia, o diretor da
Divisão de Operações, Zonildo
Castello Branco, endereçou
aquele relatório sigiloso ao diretor do departamento, coronel do Exército Gastão Barbosa
Fernandez. O coronel encaminhou-o à Justiça, que o anexou
ao processo 3.540/72.
Seu conteúdo não foi contestado por ninguém.
Produzido no calor da repercussão em torno da detenção
de Raphael Viviani, o documento evoca episódio em que o
Dops deu proteção a Simonal
por três meses contra supostos
"subversivos" que teriam prometido estourar bombas no
teatro em que o artista estava
em cartaz.
Ele ajuda a entender o grau
da intimidade que permitiu,
para resolver pendenga privada, surrar um cidadão em prédio público onde funcionários
se dedicavam a questões de Estado: combater oposicionistas,
em particular os de grupos armados.
Menos de quatro semanas
antes da chegada de Viviani, o
engenheiro Raul Amaro Nin
Ferreira foi preso e levado para
o Dops, onde o torturaram.
Seu martírio prosseguiu na
instalação do Exército em que
funcionava o DOI (Departamento de Operações de Informações). Raul Amaro saiu de lá
para o hospital, onde morreu.
No comando da radiopatrulha que o transportou entre o
Dops e o DOI estava Mário
Borges, conforme a edição
2009 do "Dossiê Ditadura
-Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1974-1985)",
organizado pela Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Borges foi um dos cinco réus
no processo decorrente da tortura contra Viviani. Acabou absolvido porque não participou
das sevícias e tinha álibi de que
estava ausente -em missão
contra a "subversão".
Em 1985, o Projeto Brasil:
Nunca Mais, coordenado pela
Arquidiocese de São Paulo, inventariou a tortura durante a
ditadura. Foram numerosas as
denúncias de presos políticos
apontando Mário Borges e José Pereira de Vasconcellos como torturadores.
Forças Armadas
O relatório do Dops que descreve a colaboração de Simonal
com outros órgãos ganhou
mais verossimilhança com o interrogatório do tenente-coronel do Exército Expedito de
Souza Pereira, na 23ª Vara Criminal, em 29 de julho de 1974.
Testemunha de defesa do
cantor, ele afirmou: "Conhece o
primeiro acusado [Simonal]
porque após a revolução de 64 o
primeiro réu sempre colaborou
com as Forças Armadas".
Em 1974, o oficial estava lotado na Escola Superior de Guerra. Em 1971, era relações públicas do 1º Exército, comando da
Força na Guanabara (que hoje
equivale ao município do Rio
de Janeiro) e em outros Estados. Pereira disse ter sido procurado por Simonal, que lhe falou sobre ameaças que estaria
sofrendo. O militar sugeriu que
recorresse ao Dops.
Nos anos 1990, Simonal obteve um atestado da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos) assegurando que ele nunca
foi seu informante.
A SAE sucedeu o SNI (Serviço Nacional de Informações)
da ditadura.
O nome do SNI não aparece,
entretanto, no processo 3.540,
no qual Simonal é reconhecido
como informante do Dops e colaborador do 1º Exército.
Em 1972, o cantor contextualizou em juízo a origem da intimidação: "[...] Desde que participou de uma Olimpíada do
Exército fazendo um show, e de
fazer [sic] um disco da Shell de
propaganda do governo, isto é,
fazia indiretamente propaganda do governo, passou a receber
telefonemas anônimos que lhe
faziam [sic] ameaças a si e a sua
família".
"Comunistas"
Ele repetidamente proclamou a camaradagem com integrantes da polícia política. Em
1971, de acordo com o "Correio
da Manhã", mencionou José
Pereira de Vasconcellos como
"meu grande amigo".
Logo depois do mandado de
prisão expedido em 1974, entregou-se ao Dops de São Paulo. "O delegado Sérgio Fleury é
meu chapinha e tudo vai correr
dentro do figurino", disse, conforme o "Última Hora".
Responsável por dezenas de
assassinatos, Fleury foi o mais
destacado policial no combate
à luta armada durante o governo do general Emilio Garrastazu Médici (1969-74).
Em seus últimos anos, Simonal reclamou do que considerava um viés persecutório do jornalismo contra ele. Mas, em seguida à surra em Raphael Viviani, a versão do artista foi encampada por parcela expressiva da imprensa.
Reportagens céticas em relação aos relatos de Simonal provocaram irritação, sugere nota
do colunista Ibrahim Sued na
edição de "O Globo" de 4 de setembro de 1971.
A nota: "As autoridades militares estão começando a ficar
de olho em certa imprensa
marrom, principalmente no
que se refere aos artistas... Eu
estou apenas advertindo.
Quem avisa amigo é... O mar
não está pra peixe...".
O semanário "O Pasquim" foi
o primeiro que tratou Simonal
como "dedo-duro". Com a sentença de 1974, a revista "Veja"
publicou que a operação contra
Viviani "foi facilitada pelo fato
de Simonal também ser informante da polícia".
A fama de delator custou-lhe
vaias e xingamentos em shows.
Em agosto de 1982, ainda na
ditadura, a Folha circulou com
entrevista de Simonal em que
ele afirmou:
"Dizer que eu dedurei os
cantores comunistas é meio calhorda. Eles próprios nunca
negaram que eram comunistas.
Chico Buarque, Caetano Veloso jamais disseram o inverso. E
qualquer criança sabe o que
eles são..."
Depois, Simonal disse que
suas declarações foram distorcidas. O jornal respondeu que
nada havia alterado.
(MÁRIO MAGALHÃES)
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