São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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"Autores Brasileiros", que dá sequência à publicação das obras completas de Sílvio Romero, traz um ataque virulento a Machado de Assis por um dos pioneiros da crítica no país

O MÉTODO DO DESTEMPERO

Roberto Ventura
especial para a Folha

As obras de Sílvio Romero, o crítico polêmico e apaixonado do final do século 19 e início do 20, que lutava contra tudo e contra todos, têm finalmente uma edição à altura de sua importância e do barulho que causaram à época. A editora Imago e a Universidade Federal de Sergipe estão lançando "Autores Brasileiros", sexto volume das "Obras Completas" de um dos pioneiros da crítica literária, cujos escritos se encontravam praticamente esquecidos.
A monumental edição em 21 volumes, a cargo de Luiz Antonio Barreto, reúne mais de 60 títulos do autor, publicados entre 1875 e 1914, ano de sua morte. Deixou uma espécie de livro-testamento, "Minhas Contradições", em que respondia às inúmeras incoerências em suas idéias literárias e políticas apontadas por Laudelino Freire [jornalista, 1873-1937", contra o qual chegou a compor os versos satíricos: "Em ser lógica ciência,/ E ser arte -, paspalhão,/ Põe a mão na consciência,/ Haverá contradição?".
Antonio Candido observou, em "Sílvio Romero" (Edusp, 1978), sobre o ritmo de turbilhão do crítico sergipano, que foi trocando de posição ao longo da vida: "A contradição era o seu próprio modo de viver o pensamento, tanto assim que, em vez de paralisá-lo ou fazê-lo voltar atrás, ela o fazia ir para a frente". Romero adotou inúmeros modelos críticos e filosóficos, como o materialismo, o positivismo, o evolucionismo, o naturalismo e a etnologia, mas defendia suas mudanças de ponto de vista como sinal da "evolução" das idéias.
Para entender e mesmo apreciar sua verve, é preciso voltar o feitiço contra o feiticeiro, como acontece com o camundongo Mickey no desenho animado "Fantasia", de Walt Disney, que acaba engolido pela poção mágica que Romero atacava a falta de engajamento político de Machado, que adotava um tom cético e irônico em relação ao progresso preparava. Suas engajadas obras de críticas literária e filosófica, sempre marcadas pela controvérsia, devem ser entendidas no contexto histórico do combate ao romantismo, cujo indianismo identificava a uma alienada cultura da corte, e da luta contra a escravidão e a monarquia, tendo sido um entusiasmado propagandista da Abolição e da república. Nascido em 1851 em Lagarto, Sergipe, filho de um comerciante português com uma brasileira, introduziu a abordagem histórico-social nos estudos literários com a "História da Literatura Brasileira" (Imago), de 1888, e foi um dos primeiros pesquisadores do folclore e da poesia popular com os "Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil", as coletâneas "Cantos Populares do Brasil" (Itatiaia) e os "Contos Populares do Brasil" (Landy).

Bate-boca folclórico
Curiosamente, acabou por incorporar a linguagem virulenta dos cantadores nos desafios poéticos às ruidosas polêmicas que travou com seus contemporâneos, como os críticos Araripe Júnior e José Veríssimo, os historiadores Manuel Bonfim e Teófilo Braga, o jornalista Francisco de Assis Chateaubriand, depois conhecido como Chatô, e até o escritor Machado de Assis, que provocou para debate, mas encontrou apenas da parte deste o silêncio do desdém.
Dotado de uma impressionante erudição, que mobilizava para esmagar o adversário, Romero era atrevido e exagerado. Foi protagonista em 1875 de uma célebre defesa de tese na Faculdade de Direito de Recife, cujas portas se fecharam para o abusado candidato, que xingou a banca de "corja de ignorantes", por terem questionado o enfoque histórico que propunha para o direito.


Romero atacava a falta de engajamento político de Machado, que adotava um tom cético e irônico em relação ao progresso


preparava. Suas engajadas obras de críticas literária e filosófica, sempre marcadas pela controvérsia, devem ser entendidas no contexto histórico do combate ao romantismo, cujo indianismo identificava a uma alienada cultura da corte, e da luta contra a escravidão e a monarquia, tendo sido um entusiasmado propagandista da Abolição e da república. Nascido em 1851 em Lagarto, Sergipe, filho de um comerciante português com uma brasileira, introduziu a abordagem histórico-social nos estudos literários com a "História da Literatura Brasileira" (Imago), de 1888, e foi um dos primeiros pesquisadores do folclore e da poesia popular com os "Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil", as coletâneas "Cantos Populares do Brasil" (Itatiaia) e os "Contos Populares do Brasil" (Landy). Bate-boca folclórico Curiosamente, acabou por incorporar a linguagem virulenta dos cantadores nos desafios poéticos às ruidosas polêmicas que travou com seus contemporâneos, como os críticos Araripe Júnior e José Veríssimo, os historiadores Manuel Bonfim e Teófilo Braga, o jornalista Francisco de Assis Chateaubriand, depois conhecido como Chatô, e até o escritor Machado de Assis, que provocou para debate, mas encontrou apenas da parte deste o silêncio do desdém.
Dotado de uma impressionante erudição, que mobilizava para esmagar o adversário, Romero era atrevido e exagerado. Foi protagonista em 1875 de uma célebre defesa de tese na Faculdade de Direito de Recife, cujas portas se fecharam para o abusado candidato, que xingou a banca de "corja de ignorantes", por terem questionado o enfoque histórico que propunha para o direito.
O bate-boca, embora folclórico, tinha implicações políticas, pois decorria de sua tese o corolário de que as instituições deveriam "evoluir" junto com os costumes e a sociedade, o que tornava possível a crítica à ordem política e econômica, amparada na coroa lusitana e no braço escravo.
"Autores Brasileiros", agora publicado, traz a mais gritante prova de suas ousadias: o tão absurdo quanto divertido livro "Machado de Assis - Estudo Comparativo de Literatura Brasileira". Romero lançou tal estudo em 1897, no mesmo ano em que o escritor fluminense (1839-1908), já consagrado por romances como as "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba", era eleito por unanimidade presidente da recém-fundada Academia Brasileira de Letras. Escreve assim o livro na inglória tentativa de detonar a reputação de Machado, cuja obra seria, em sua opinião, falha pela ausência de retratos dos costumes e paisagens, além de "atrasada" pela incapacidade deste "filho retardatário do romantismo" de acompanhar a "marcha das idéias modernas"!
Ataca também a falta de engajamento político do escritor, que adotava um tom cético e irônico em relação ao progresso. Em uma maldosa alusão à gagueira e à epilepsia de Machado, conclui que seu estilo pouco original e pessoal, com frase e vocabulário travados, era a "fotografia exata" de sua "índole psicológica indecisa": "Vê-se que apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra".
Afirma ainda, como referência à sua pele escura, que o escritor era um "genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada", cujo humor e pessimismo, em desacordo com o caráter nacional brasileiro, não passaria de imitação afetada de autores ingleses, como o Laurence Sterne de "A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy"!
A origem de sua diatribe contra Machado foi o artigo deste em 1879 sobre a "nova geração" de poetas adeptos dos novos credos científicos, dentre eles o próprio Romero, que exercitara sua verve poética nos "Cantos do Fim do Século". O escritor percebeu a fragilidade de tal programa literário, baseado na propagação do ideário naturalista, e observou que faltava estilo aos escritos do poeta-crítico. Comentou ainda, com genial ironia, sobre a fé no progresso de seus contemporâneos: "É o inverso da tradição bíblica, pois o paraíso é sempre colocado no fim...".
Romero nunca perdoou a fina ironia machadiana a respeito da nova geração. Tomado pela idéia fixa de provar a precedência da Escola do Recife na renovação cultural brasileira a partir de 1870, dedicou "Machado de Assis" aos companheiros do grupo e se propôs a fazer um estudo "comparativo" entre o escritor fluminense, seu desafeto, e o poeta, jurista e filósofo Tobias Barreto de Meneses (1839-1889), seu contemporâneo, conterrâneo, condiscípulo e compadre, a quem julgava superior a Machado como prosador e a Castro Alves como poeta!
"Autores Brasileiros" traz ainda os estudos dedicados aos poetas Valentim Magalhães (1859-1903) e Luís Murat (1861-1920), ao dramaturgo Martins Pena (1815-1848) e ao ficcionista Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), além do impagável "Zeverissimações Ineptas da Crítica", escrito contra o seu arquiinimigo, José Veríssimo, que xinga de tudo, até de "tucano empalhado", "basbaque literário" e "pardo irrecusável"!
Estes estudos revelam o calcanhar-de-aquiles de seu método crítico, que continha implícita uma teoria da imitação, que negava o caráter específico da literatura, valorizada à medida que reproduzia aspectos da vida nacional. Tal paradoxo da crítica romeriana foi observado por Luiz Costa Lima em "Dispersa Demanda" (ed. Francisco Alves, 1981): "A literatura deveria ser como achamos que somos". Torna-se assim vicioso o círculo hermenêutico entre crítico e obra, já que esta fica reduzida à confirmação de suas certezas prévias.
A edição de Luiz Antonio Barreto apresenta porém dois pequenos descuidos. No estudo introdutório de Salete de Almeida Cara, reproduz-se um erro da edição anterior de "Machado de Assis", publicada pela editora da Unicamp em 1992, mas corrigida nesta em errata, quando a crítica afirma que Sílvio Romero relançou em 1935 o estudo sobre Machado, edição que foi de fato lançada em 1936 por seu filho Nelson Romero. Mais grave ainda é a supressão, na presente edição, da dedicatória de Romero aos seus companheiros da Escola do Recife e do subtítulo "Estudo Comparativo de Literatura Brasileira", que revelam que seu verdadeiro objetivo era valorizar a obra de Tobias Barreto, em detrimento da de Machado. Mas, como tão bem sintetizou Antonio Candido sobre as ambiguidades do crítico: "O que se tira de Sílvio Romero com uma das mãos, é preciso dar de volta com a outra".
O bate-boca, embora folclórico, tinha implicações políticas, pois decorria de sua tese o corolário de que as instituições deveriam "evoluir" junto com os costumes e a sociedade, o que tornava possível a crítica à ordem política e econômica, amparada na coroa lusitana e no braço escravo.
"Autores Brasileiros", agora publicado, traz a mais gritante prova de suas ousadias: o tão absurdo quanto divertido livro "Machado de Assis - Estudo Comparativo de Literatura Brasileira". Romero lançou tal estudo em 1897, no mesmo ano em que o escritor fluminense (1839-1908), já consagrado por romances como as "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba", era eleito por unanimidade presidente da recém-fundada Academia Brasileira de Letras. Escreve assim o livro na inglória tentativa de detonar a reputação de Machado, cuja obra seria, em sua opinião, falha pela ausência de retratos dos costumes e paisagens, além de "atrasada" pela incapacidade deste "filho retardatário do romantismo" de acompanhar a "marcha das idéias modernas"!
Ataca também a falta de engajamento político do escritor, que adotava um tom cético e irônico em relação ao progresso. Em uma maldosa alusão à gagueira e à epilepsia de Machado, conclui que seu estilo pouco original e pessoal, com frase e vocabulário travados, era a "fotografia exata" de sua "índole psicológica indecisa": "Vê-se que apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra".
Afirma ainda, como referência à sua pele escura, que o escritor era um "genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada", cujo humor e pessimismo, em desacordo com o caráter nacional brasileiro, não passaria de imitação afetada de autores ingleses, como o Laurence Sterne de "A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy"!
A origem de sua diatribe contra Machado foi o artigo deste em 1879 sobre a "nova geração" de poetas adeptos dos novos credos científicos, dentre eles o próprio Romero, que exercitara sua verve poética nos "Cantos do Fim do Século". O escritor percebeu a fragilidade de tal programa literário, baseado na propagação do ideário naturalista, e observou que faltava estilo aos escritos do poeta-crítico. Comentou ainda, com genial ironia, sobre a fé no progresso de seus contemporâneos: "É o inverso da tradição bíblica, pois o paraíso é sempre colocado no fim...".
Romero nunca perdoou a fina ironia machadiana a respeito da nova geração. Tomado pela idéia fixa de provar a precedência da Escola do Recife na renovação cultural brasileira a partir de 1870, dedicou "Machado de Assis" aos companheiros do grupo e se propôs a fazer um estudo "comparativo" entre o escritor fluminense, seu desafeto, e o poeta, jurista e filósofo Tobias Barreto de Meneses (1839-1889), seu contemporâneo, conterrâneo, condiscípulo e compadre, a quem julgava superior a Machado como prosador e a Castro Alves como poeta!
"Autores Brasileiros" traz ainda os estudos dedicados aos poetas Valentim Magalhães (1859-1903) e Luís Murat (1861-1920), ao dramaturgo Martins Pena (1815-1848) e ao ficcionista Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), além do impagável "Zeverissimações Ineptas da Crítica", escrito contra o seu arquiinimigo, José Veríssimo, que xinga de tudo, até de "tucano empalhado", "basbaque literário" e "pardo irrecusável"!
Estes estudos revelam o calcanhar-de-aquiles de seu método crítico, que continha implícita uma teoria da imitação, que negava o caráter específico da literatura, valorizada à medida que reproduzia aspectos da vida nacional. Tal paradoxo da crítica romeriana foi observado por Luiz Costa Lima em "Dispersa Demanda" (ed. Francisco Alves, 1981): "A literatura deveria ser como achamos que somos". Torna-se assim vicioso o círculo hermenêutico entre crítico e obra, já que esta fica reduzida à confirmação de suas certezas prévias.
A edição de Luiz Antonio Barreto apresenta porém dois pequenos descuidos. No estudo introdutório de Salete de Almeida Cara, reproduz-se um erro da edição anterior de "Machado de Assis", publicada pela editora da Unicamp em 1992, mas corrigida nesta em errata, quando a crítica afirma que Sílvio Romero relançou em 1935 o estudo sobre Machado, edição que foi de fato lançada em 1936 por seu filho Nelson Romero. Mais grave ainda é a supressão, na presente edição, da dedicatória de Romero aos seus companheiros da Escola do Recife e do subtítulo "Estudo Comparativo de Literatura Brasileira", que revelam que seu verdadeiro objetivo era valorizar a obra de Tobias Barreto, em detrimento da de Machado. Mas, como tão bem sintetizou Antonio Candido sobre as ambiguidades do crítico: "O que se tira de Sílvio Romero com uma das mãos, é preciso dar de volta com a outra".

Roberto Ventura é professor de teoria literária e literatura comparada na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras) e "Folha Explica Casa-Grande & Senzala" (Publifolha).


Autores Brasileiros
644 págs., R$ 65,00 de Sílvio Romero. Org. de Luiz Antonio Barreto. Editora Imago (r. Santos Rodrigues, 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 0/xx/21/2502-9092).



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