São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997.



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AUTORES
Todos dizem 'eu estou aqui'


Pierry Levy escreve sobre sua experiência em um 'grupo de discussão' na Internet


PIERRE LEVY
especial para a Folha

Trata-se de uma história verdadeira.
Como todas as noites, eu consulto o meu correio eletrônico. Abro uma mensagem que vem dos organizadores de um importante colóquio internacional sobre as artes virtuais, do qual devo participar.
Dizem-me, em inglês, que uma "mailing list" será constituída para permitir o início da discussão, antes do encontro físico. Para se inscrever, basta enviar a mensagem "I subscribe" a um certo endereço eletrônico. Interessado, eu me conformo ao procedimento indicado. Na noite seguinte, além do correio expedido por meus correspondentes habituais, descubro as primeiras mensagens da "mailing list" sobre as artes numéricas.
Um professor de uma escola de arte de Minneapolis explica a incompreensão de que dão prova os seus colegas diante de seus ensinamentos sobre a "multimídia".
Uma artista holandesa fala dos aparelhos de captação do som do mar que ela instala nas praias... E das enormes conchas artificiais que repercutem este som em lugares escolhidos, no interior do continente. Um estudante de Detroit teme que a indústria da multimídia, por razões comerciais, padronize as interfaces visuais, sonoras ou táteis que os artistas, ao contrário, gostariam de deixar abertas, para explorar livremente as possibilidades alternativas.
No dia seguinte, minha caixa de entrada já contém respostas às mensagens precedentes. Alguns vão além dos primeiros, outros os contradizem. Muitos artistas lamentam não ter sido convidados a expor as suas obras no colóquio, embora tenham apresentado um projeto.
Eles aproveitam a "mailing list" para indicar à comunidade o endereço na web em que se pode obter uma descrição ou uma amostra de seu trabalho. Um dos responsáveis pelo colóquio responde, no dia seguinte, que ele lamenta, mas que o orçamento era limitado, que 80 artistas do mundo inteiro poderão mostrar as suas instalações e que isso, afinal, já é muito!
No correr dos dias, alguns temas parecem estabilizar-se: questões institucionais e pedagógicas, problemas estéticos, informações sobre os programas etc. A maioria das mensagens são etiquetadas como respostas a uma mensagem precedente, que é, muitas vezes, também uma resposta, e assim por diante.
Podemos, com isso, reconstituir as linhas de conversa relativamente independentes. Com o tempo, algumas trocas sobre o mesmo tema alcançam 20, 30 ou mais "cartas". Outras mensagens não ensejam mais do que 5 ou 6 respostas, e a conversa esgota-se por si mesma.
Os cibernautas costumam retomar, em suas próprias mensagens, a mensagem a que eles dão resposta, de tal forma que uma correspondência assemelha-se, muitas vezes, a uma espécie de comentário à carta precedente.
Podemos, assim, ter várias (talvez quatro ou cinco) "camadas" de texto no interior de uma mensagem, cada "carta" tornando-se, de alguma forma, o "envelope" da precedente. Os programas de correio eletrônico favorecem essa prática, ao reproduzir na réplica, automaticamente (com uma marca especial no início de cada linha), a mensagem que se responde.
Alguns dos assinantes da "mailing list" protestam contra os excessos dessa prática, que incha artificialmente as mensagens como bolas de neve descendo uma colina, o que lhes atravanca as caixas de entrada.
As missivas vêm de todos os cantos do mundo, com uma nítida predominância da América do Norte e da Europa. Como costuma ocorrer nas conferências eletrônicas, mesmo se 250 pessoas estão inscritas (e, portanto, recebem as mensagens), somente umas 30 participam ativamente da conversa, alimentando regularmente a conferência.
Pouco a pouco, os destinatários da "mailing list" descobrem o estilo de seus naturais animadores, que reflete provavelmente o seu caráter. Uns ostentam uma maneira espontânea, emotiva, e redigem num inglês desleixado, quase fonético. Outros respondem ponto por ponto, de maneira quase maníaca, às declarações de seus correspondentes, ou então compõem, numa linguagem clássica, verdadeiros tratados em diversos capítulos e subcapítulos. Quando a discussão sobe de tom, os moderadores (os imagino "mais velhos") revelam-se e tentam acalmar o jogo.
Por vezes, quando o rumor de uma Paris poluída vem bater as vidraças de meu apartamento e quando os meus olhos cansados custam a ler os caracteres na tela, um correspondente se afasta do tema da conferência para falar do tempo que faz em Oslo ou do retiro sem computador nem acesso à net que ele acaba de desfrutar nas montanhas do Colorado. Deitado nos aclives floridos, ele saboreou o frescor do vento dos cumes, que aportava os eflúvios dos abetos, e abismou-se na pura profundeza azul do céu.
A rotina da conferência é quebrada pelo correio de um músico australiano, um certo Wesson (não reproduzo, aqui, o seu verdadeiro nome), que protesta violentamente contra os testes atômicos franceses no Pacífico. Essa mensagem desencadeia numerosas repostas nos dias que se seguem. Alguns simpatizam com a causa de Wesson.
Outros lhe recordam que esse não é o tema associado a "mailing list" e que existem vários fóruns na net nos quais ele poderá falar sobre o assunto com as pessoas interessadas. Outros respondem a estes últimos que os artistas não podem excluir a priori um tema de discussão: os artistas sempre se envolveram nos assuntos da cidade, que se estende, hoje, às dimensões do planeta. A discussão se acirra. Alguns participantes ameaçam retirar-se da conferência se o fluxo de mensagens sobre o tema dos testes atômicos não diminuir.
Wesson, cada vez mais excitado, arrisca uma mensagem em que confessa ter começado aprender francês, mas arrepende-se, agora, do interesse por esta língua. Dessa vez, ninguém mais está do seu lado. Ele tem de enfrentar o que os cibernautas chamam uma "flame", isto é, uma salva de mensagens vindas de todos os cantos do mundo. Franceses, belgas, suíços e canadenses de Quebec respondem a Wesson na língua de Molière. Uma alemã, um inglês e um dinamarquês respondem igualmente em francês, solidários a uma língua minoritária insultada.
Professores americanos tentam chamar Wesson à razão, censurando-lhe por ter faltado à ética da net. Como muitos outros, que antes se contentavam em ler as mensagens, saio de minha reserva para dirigir-me a Wesson (em inglês). Explico-lhe que ele comete pelo menos duas confusões: a entre uma língua e um povo, e a entre um povo e um governo.
Ele, que se pretende pacifista, devia se dar conta de que esse tipo de confusão grosseira e de identificação de seres humanos com categorias nacionais, étnicas, linguísticas ou religiosas é o que torna as guerras possíveis.
Wesson entrega-se, então, a uma espécie de confissão pública. Ele arrepende-se de sua mensagem sobre a língua francesa e pede a cada um que o desculpe. Ao redigir essa malfadada mensagem, ele estava só diante de sua tela. Quase pensava em voz alta, sem perceber que havia pessoas do outro lado da rede. Indivíduos vivos, animados por sentimentos, que poderiam sentir-se feridos pelas palavras, assim como ele.
E, entre esses indivíduos, alguns, justamente, que a televisão e os jornais designavam somente em conjunto, em bloco e em geral à execração pública dos australianos. Ele fora incendiado pelo bombardeio antifrancês da mídia que o rodeava. Mas a rede lhe propiciara uma consciência planetária muito mais concreta do que ele pensava ter -a do contato direto com pessoas que exprimem suas emoções e seus pensamentos.
Além dessa mensagem enviada a todos os destinatários, surpreendo-me ao encontrar, em minha caixa de correio eletrônica, uma mensagem privada de Wesson, que não pode ser lida por outros membros da "mailing list". Ele me declara que ficou comovido pela sinceridade e a clareza de minha resposta e que deseja conhecer-me. Trocamos, então, algumas mensagens pessoais, que terminam com uma promessa recíproca de nos encontrarmos no colóquio.
O verão passa. Numa manhã de setembro, na sala de imprensa do simpósio internacional, um jovem barbudo e sorridente me aborda.
"Senhor Lévy?"
"Sim"
"Eu sou Paul Wesson..."


Pierre Levy é sociólogo e historiador da ciência, professor do departamento de hipermídia da Universidade de Paris 8, autor de "As Tecnologias da Inteligência" e "O Que É o Virtual" (Ed. 34). Ele escreve mensalmente na série "Autores".
Tradução de José Marcos Macedo.



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