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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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O princípio de insegurança

Jacques Rancière

Nesses meses passados de 2003, em que o governo americano enfrentava as consequências imprevistas de sua campanha vitoriosa no Iraque, o governo francês se via questionado por um outro inimigo imprevisto, a canícula, que num mês matou 10 mil pessoas. Qual a relação entre a fornalha político-militar iraquiana e os rigores inabituais do verão francês? A de mostrar o papel cada vez mais dominante que desempenha a obsessão securitária nos Estados ditos avançados. A campanha iraquiana tinha por objetivo declarado responder à ameaça apresentada por um Estado delinquente detentor de armas de destruição em massa, capazes de serem apontadas em menos de uma hora contra os Estados ocidentais. É pouco provável que os dirigentes americanos e ingleses tenham realmente acreditado no pretexto dessa ameaça que eles agitaram para provocar a adesão de seus concidadãos à guerra. Resta saber por que precisavam dessa guerra contra um perigo que sabiam inexistente.

Manutenção
Se não nos satisfizermos com a explicação economista tradicional, que vê por trás de todo conflito de nosso tempo a questão do petróleo, é preciso talvez inverter os termos do problema. Se a guerra é necessária, não é para responder a uma situação, real ou imaginária, de insegurança. É para manter esse sentimento de insegurança necessário ao bom funcionamento dos Estados. A coisa pode parecer absurda, diante das análises mais difundidas da relação que nossas sociedades mantêm com seus governos. Essas análises nos descrevem os Estados capitalistas contemporâneos como Estados cujo poder é cada vez mais diluído e invisível, em sincronia com os fluxos da mercadoria e da comunicação. O Estado capitalista avançado seria o Estado do consenso automático, do ajustamento sem dor entre a negociação coletiva do poder e a negociação individual dos prazeres no interior da sociedade democrática de massa. Ele funcionaria para a despassionalização dos conflitos e o desinvestimento dos valores. Evidentemente, o novo fragor das armas, os hinos renovados a Deus e à bandeira e o retorno das mentiras mais grosseiras da propaganda de Estado impõem reconsiderar essa visão dominante. Ali onde a mercadoria reina sem limite, na América pós-reaganiana e na Inglaterra pós-thatcheriana, a forma do consenso ótimo não é a do Estado gestionário, é aquela cimentada pelo medo de uma sociedade que se agrupa em torno do Estado policial protetor. Ao denunciar as ilusões do consenso, pensava-se ainda o Estado consensual na tradição do Estado-árbitro, dedicando-se a formas mínimas de redistribuição das riquezas a fim de manter a paz social. Ora, ali onde o Estado abandonou suas funções de regulação social e dá livre curso à lei do capital, o consenso adquire uma face aparentemente mais arcaica. O Estado consensual em sua forma acabada não é o Estado gestionário. É o Estado reduzido à pureza de sua essência, ou seja, o Estado policial. A comunidade de sentimento que o sustenta e que ele administra em seu proveito, com a ajuda dos meios de comunicação de massa que não têm nem sequer necessidade de pertencer ao Estado para sustentar sua propaganda, é a comunidade do medo.

Inseguranças rivais
O conflito do governo americano com a "velha" Europa poderia então perfeitamente ser o que opõe dois Estados do consenso, em que o mais "avançado" não é o que imaginamos. De resto, também na "velha" Europa a insegurança está na ordem do dia, sob formas seguramente mais difusas ou até mais tortuosas que a da grande cruzada contra o "eixo do mal". É assim que a última eleição presidencial francesa se apresentou como um singular combate ou uma singular cumplicidade entre inseguranças rivais. De um lado, havia o candidato da extrema direita, cujo discurso inteiro é construído sobre o tema da insegurança causada pela imigração. De outro, o candidato da direita, afirmando que esta era a única capaz de lutar eficazmente contra essa insegurança. Entre os dois, uma esquerda partindo em socorro do candidato de direita, visto como o último baluarte da democracia contra a causa suprema de insegurança, contra o perigo da peste totalitária. De lá para cá, a defesa da democracia ameaçada e a luta contra a insegurança ameaçadora tenderam a fazer-se mais discretas, o governo francês ocupando-se prioritariamente com a "modernização" do Estado e do país, isto é, com a diminuição do encargo social do Estado. Mas eis que então a insegurança se apresenta sob uma nova face. Durante o mês de agosto, o governo era acusado de, por falta de previdência, ter deixado perecer milhares de idosos, vítimas da canícula excepcional. Defendendo-se timidamente e encomendando uma pesquisa sobre as condições dessa negligência, ele homologou de fato a opinião de que lhe cabia, se não produzir a chuva e o tempo bom, pelo menos prever as consequências das mudanças de temperatura para as diversas categorias da população.

Vida e saúde
Aqui também nos vemos diante de uma situação aparentemente paradoxal e no entanto lógica. No momento mesmo em que o governo, segundo a boa doutrina liberal, se dedica a aliviar os impostos, reduzir as despesas de saúde pública e cortar os sistemas tradicionais de proteção social, ele se reconhece responsável por todos os acidentes que as mudanças climáticas possam provocar. No momento em que o Estado faz menos por nossa saúde, ele decide fazer mais por nossa vida.
Não é certo que essa mudança faça diminuir muito as despesas do Estado. O que ela altera é antes a relação dos indivíduos com o Estado. Ainda ontem todos os hinos oficiais cantavam os benefícios da responsabilidade e dos riscos individuais contra os "privilégios" pusilânimes oferecidos pelos sistemas de proteção social. Ora, o que se vê claramente hoje é que o enfraquecimento dos sistemas de proteção social é também o estabelecimento de uma nova relação dos indivíduos com uma força de Estado responsável pela segurança em geral, pela segurança sob todas as suas formas contra ameaças igualmente multiformes: o terrorismo e o islamismo, mas também o calor e o frio. O que restará desse verão francês é o sentimento de que o calor é em si uma ameaça à qual ainda não se dera atenção. É o sentimento de que não estamos suficientemente protegidos contra as ameaças, portanto precisamos de mais e mais proteção contra as ameaças conhecidas, mas também contra as de que ainda não suspeitamos.
As faltas que os governos reconhecem ou de que os acusam quanto à proteção de suas populações produzem então um efeito contrário. Ao não nos protegerem bem, eles provam que estão aí mais do que nunca para fazê-lo, e que devemos mais do que nunca nos abrigar em torno deles. Que o governo americano não tenha sabido proteger sua população contra um atentado longamente preparado prova ainda mais sua missão de proteção preventiva contra uma ameaça invisível e onipresente. Prevenir os perigos é uma coisa, administrar o sentimento de insegurança é outra, na qual o Estado será sempre mais perito porque é esse, talvez, o princípio mesmo de seu poder.
A opinião reinante gostaria de ver no desenvolvimento da lógica securitária a reação defensiva ocasional que fazem pesar hoje sobre as sociedades avançadas as atitudes reativas de populações desfavorecidas, impelidas pela pobreza ao fanatismo e ao terrorismo. Mas nada indica que as campanhas militar-policiais e as arregimentações securitárias atuais reduzam a distância entre ricos e pobres, em que residiria a ameaça permanente que pesa sobre os países avançados. Se o Irã for invadido após o Iraque, restarão ainda cerca de 60 "Estados-delinquentes" ameaçando a segurança dos países ricos.
E a insegurança, sobretudo, não é um conjunto de fatos, é um modo de gestão da vida coletiva. A gestão midiática ordinária de todas as formas de perigos, riscos e catástrofes, do terrorismo à canícula assim como o maremoto intelectual do discurso catastrofista e das morais do mal menor, mostra suficientemente que os recursos do tema insecuritário são ilimitados. A opinião esclarecida que se mostrou hostil à campanha iraquiana o seria certamente menos em relação a operações destinadas a derrubar governos de países capazes de provocar, por sua imprevidência, catástrofes climáticas, ecológicas, sanitárias e outras.
O sentimento de insegurança não é uma crispação arcaica devida a circunstâncias transitórias. É um modo de gestão dos Estados e do planeta para reproduzir e renovar em círculo as próprias circunstâncias que o mantêm.


Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Paulo Neves.


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