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O princípio de insegurança
Jacques Rancière
Nesses meses passados de 2003,
em que o governo americano
enfrentava as consequências
imprevistas de sua campanha
vitoriosa no Iraque, o governo francês se
via questionado por um outro inimigo
imprevisto, a canícula, que num mês
matou 10 mil pessoas. Qual a relação entre a fornalha político-militar iraquiana e
os rigores inabituais do verão francês? A
de mostrar o papel cada vez mais dominante que desempenha a obsessão securitária nos Estados ditos avançados.
A campanha iraquiana tinha por objetivo declarado responder à ameaça apresentada por um Estado delinquente detentor de armas de destruição em massa,
capazes de serem apontadas em menos
de uma hora contra os Estados ocidentais. É pouco provável que os dirigentes
americanos e ingleses tenham realmente
acreditado no pretexto dessa ameaça que
eles agitaram para provocar a adesão de
seus concidadãos à guerra. Resta saber
por que precisavam dessa guerra contra
um perigo que sabiam inexistente.
Manutenção
Se não nos satisfizermos com a explicação economista tradicional, que vê por trás de todo conflito de
nosso tempo a questão do petróleo, é
preciso talvez inverter os termos do problema. Se a guerra é necessária, não é para responder a uma situação, real ou
imaginária, de insegurança. É para manter esse sentimento de insegurança necessário ao bom funcionamento dos Estados. A coisa pode parecer absurda,
diante das análises mais difundidas da
relação que nossas sociedades mantêm
com seus governos.
Essas análises nos descrevem os Estados capitalistas contemporâneos como
Estados cujo poder é cada vez mais diluído e invisível, em sincronia com os fluxos da mercadoria e da comunicação. O
Estado capitalista avançado seria o Estado do consenso automático, do ajustamento sem dor entre a negociação coletiva do poder e a negociação individual
dos prazeres no interior da sociedade democrática de massa. Ele funcionaria para
a despassionalização dos conflitos e o desinvestimento dos valores.
Evidentemente, o novo fragor das armas, os hinos renovados a Deus e à bandeira e o retorno das mentiras mais grosseiras da propaganda de Estado impõem
reconsiderar essa visão dominante. Ali
onde a mercadoria reina sem limite, na
América pós-reaganiana e na Inglaterra
pós-thatcheriana, a forma do consenso
ótimo não é a do Estado gestionário, é
aquela cimentada pelo medo de uma sociedade que se agrupa em torno do Estado policial protetor.
Ao denunciar as ilusões do consenso,
pensava-se ainda o Estado consensual na
tradição do Estado-árbitro, dedicando-se a formas mínimas de redistribuição
das riquezas a fim de manter a paz social.
Ora, ali onde o Estado abandonou suas
funções de regulação social e dá livre curso à lei do capital, o consenso adquire
uma face aparentemente mais arcaica. O
Estado consensual em sua forma acabada não é o Estado gestionário. É o Estado
reduzido à pureza de sua essência, ou seja, o Estado policial. A comunidade de
sentimento que o sustenta e que ele administra em seu proveito, com a ajuda
dos meios de comunicação de massa que
não têm nem sequer necessidade de pertencer ao Estado para sustentar sua propaganda, é a comunidade do medo.
Inseguranças rivais
O conflito do
governo americano com a "velha" Europa poderia então perfeitamente ser o que
opõe dois Estados do consenso, em que o
mais "avançado" não é o que imaginamos. De resto, também na "velha" Europa a insegurança está na ordem do dia,
sob formas seguramente mais difusas ou
até mais tortuosas que a da grande cruzada contra o "eixo do mal". É assim que
a última eleição presidencial francesa se
apresentou como um singular combate
ou uma singular cumplicidade entre inseguranças rivais. De um lado, havia o
candidato da extrema direita, cujo discurso inteiro é construído sobre o tema
da insegurança causada pela imigração.
De outro, o candidato da direita, afirmando que esta era a única capaz de lutar eficazmente contra essa insegurança.
Entre os dois, uma esquerda partindo
em socorro do candidato de direita, visto
como o último baluarte da democracia
contra a causa suprema de insegurança,
contra o perigo da peste totalitária.
De lá para cá, a defesa da democracia
ameaçada e a luta contra a insegurança
ameaçadora tenderam a fazer-se mais
discretas, o governo francês ocupando-se prioritariamente com a "modernização" do Estado e do país, isto é, com a diminuição do encargo social do Estado.
Mas eis que então a insegurança se
apresenta sob uma nova face. Durante o
mês de agosto, o governo era acusado de,
por falta de previdência, ter deixado perecer milhares de idosos, vítimas da canícula excepcional. Defendendo-se timidamente e encomendando uma pesquisa sobre as condições dessa negligência,
ele homologou de fato a opinião de que
lhe cabia, se não produzir a chuva e o
tempo bom, pelo menos prever as consequências das mudanças de temperatura
para as diversas categorias da população.
Vida e saúde
Aqui também nos vemos diante de uma situação aparentemente paradoxal e no entanto lógica. No
momento mesmo em que o governo, segundo a boa doutrina liberal, se dedica a
aliviar os impostos, reduzir as despesas
de saúde pública e cortar os sistemas tradicionais de proteção social, ele se reconhece responsável por todos os acidentes que as mudanças climáticas possam
provocar. No momento em que o Estado
faz menos por nossa saúde, ele decide fazer mais por nossa vida.
Não é certo que essa mudança faça diminuir muito as despesas do Estado. O
que ela altera é antes a relação dos indivíduos com o Estado. Ainda ontem todos
os hinos oficiais cantavam os benefícios
da responsabilidade e dos riscos individuais contra os "privilégios" pusilânimes oferecidos pelos sistemas de proteção social. Ora, o que se vê claramente
hoje é que o enfraquecimento dos sistemas de proteção social é também o estabelecimento de uma nova relação dos indivíduos com uma força de Estado responsável pela segurança em geral, pela
segurança sob todas as suas formas contra ameaças igualmente multiformes: o
terrorismo e o islamismo, mas também o
calor e o frio. O que restará desse verão
francês é o sentimento de que o calor é
em si uma ameaça à qual ainda não se
dera atenção. É o sentimento de que não
estamos suficientemente protegidos
contra as ameaças, portanto precisamos
de mais e mais proteção contra as ameaças conhecidas, mas também contra as
de que ainda não suspeitamos.
As faltas que os governos reconhecem
ou de que os acusam quanto à proteção
de suas populações produzem então um
efeito contrário. Ao não nos protegerem bem, eles provam que estão aí mais
do que nunca para fazê-lo, e que devemos mais do que nunca nos abrigar em
torno deles. Que o governo americano
não tenha sabido proteger sua população contra um atentado longamente
preparado prova ainda mais sua missão
de proteção preventiva contra uma
ameaça invisível e onipresente. Prevenir os perigos é uma coisa, administrar
o sentimento de insegurança é outra, na
qual o Estado será sempre mais perito
porque é esse, talvez, o princípio mesmo de seu poder.
A opinião reinante gostaria de ver no
desenvolvimento da lógica securitária a
reação defensiva ocasional que fazem
pesar hoje sobre as sociedades avançadas as atitudes reativas de populações
desfavorecidas, impelidas pela pobreza
ao fanatismo e ao terrorismo. Mas nada
indica que as campanhas militar-policiais e as arregimentações securitárias
atuais reduzam a distância entre ricos e
pobres, em que residiria a ameaça permanente que pesa sobre os países avançados. Se o Irã for invadido após o Iraque, restarão ainda cerca de 60 "Estados-delinquentes" ameaçando a segurança dos países ricos.
E a insegurança, sobretudo, não é um
conjunto de fatos, é um modo de gestão
da vida coletiva. A gestão midiática ordinária de todas as formas de perigos,
riscos e catástrofes, do terrorismo à canícula assim como o maremoto intelectual do discurso catastrofista e das morais do mal menor, mostra suficientemente que os recursos do tema insecuritário são ilimitados. A opinião esclarecida que se mostrou hostil à campanha iraquiana o seria certamente menos em relação a operações destinadas
a derrubar governos de países capazes
de provocar, por sua imprevidência, catástrofes climáticas, ecológicas, sanitárias e outras.
O sentimento de insegurança não é
uma crispação arcaica devida a circunstâncias transitórias. É um modo de gestão dos Estados e do planeta para reproduzir e renovar em círculo as próprias circunstâncias que o mantêm.
Jacques Rancière é professor na Universidade
de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Ele
escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Paulo Neves.
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