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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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Um dos mais influentes antropólogos da atualidade, Clifford Geertz analisa em "Obras e Vidas" o legado de predecessores como Malinóvski e Lévi-Strauss

Prosa de fato e ficção

Nem os fatos nem a teoria, mas sim o artifício retórico é o que estaria por trás da importância que conferimos a esses clássicos da antropologia, diz Geertz

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Autor do clássico "A Interpretação das Culturas" (ed. Jorge Zahar, 1973), Clifford Geertz é um dos mais influentes antropólogos da atualidade. Mas é quase na qualidade de crítico literário que, neste "Obras e Vidas", Geertz analisa as obras de alguns dos seus mais ilustres predecessores, como Claude Lévi-Strauss, Ruth Benedict, E.E. Evans-Pritchard e Bronislaw Malinóvski. No seu livro, baseado em conferências proferidas na Universidade Stanford (EUA), as manifestações de respeito convencional aos "monstros sagrados" da disciplina não são tão visíveis quanto a sem-cerimônia irrequieta das entrelinhas. Por que levamos tão a sério os clássicos da antropologia? Pela solidez da pesquisa empírica? Mas não é a quantidade de informações confiáveis, diz Geertz, o que torna atraentes os estudos de Edmund Leach sobre a Birmânia ou de Margaret Mead sobre os balineses. Pelo rigor da construção teórica? Mas os esquemas explicativos de Evans-Pritchard e Malinóvski já não convencem ninguém, e isso não abala em nada o poder de livros como "Os Nuer" e "Os Argonautas do Pacífico Ocidental". Nem os fatos nem a teoria, mas sim o artifício retórico é o que estaria por trás da importância que conferimos a esses clássicos. "A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que dizem tem menos a ver com uma aparência factual ou com um ar de elegância conceitual do que com sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente penetrado numa outra forma de vida (...), de realmente haverem, de um modo ou de outro, "estado lá". E é aí, ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu, que entra a escrita." Nesse tipo de frase, termos como "escrita", "retórica", ou "artifício discursivo" correm o risco de funcionar como fetiches (do mesmo modo que a palavra "cultura", aliás). Invoca-se a palavra não pelo que tenha de explicativo, mas pelo seu poder bruto de congregar assentimento, de encerrar a discussão.

Mecânica do estilo
Seja como for, Geertz ressalta com grande argúcia as características do estilo de cada antropólogo estudado. Mais do que os cansativos debates em torno da autoridade textual e do pós-modernismo antropológico (o original do livro é de 1988), é um clássico da teoria literária, "Mímesis", de Erich Auerbach, o que parece ter inspirado as análises do autor. Como Auerbach, Geertz transcreve longos trechos do livro a ser comentado, atentando para a estrutura e a mecânica das frases, antes de ampliar o foco do estudo. A admiração minuciosa rapidamente dá ocasião para divertidas crueldades. Em Ruth Benedict, "a mesma coisa é dita e redita, até parecer tão inegável quanto as leis do movimento". A autora "tem apenas uma verdade para revelar, mas uma verdade fundamental -os índios das grandes planícies caracterizam-se pelo transe, os zunhis são cerimoniosos, os japoneses são adeptos da hierarquia". A homogeneidade oxfordiana de Evans-Pritchard, seu "encanto em preto-e-branco", observa Geertz, caminha pelo terreno seguro de uma comunidade de leitores treinados, capazes de perceber os menores subentendidos e inflexões.

"Mito sobre mitos"
No caso de Lévi-Strauss, Geertz analisa seu texto menos "científico", "Tristes Trópicos", notando como ali se entrelaçam a poesia simbolista, o guia de viagem, o discurso filosófico e o panfleto anticolonialista, de modo a criar nada mais, nada menos, do que um mito: um mito do antropólogo, "um mito sobre mitos".
Também no caso de Malinóvski a opção de Geertz é por um texto mais autobiográfico, seu diário póstumo, que é contrastado com versões recentes do autoquestionamento antropológico. O legado de Malinóvski para os antropólogos atuais, observa Geertz provocadoramente, é menos um método de pesquisa, a "observação participante", mas sim "um dilema literário", o de "como representar o processo de pesquisa no produto da pesquisa".
De algum modo, o espírito da crítica literária vai-se debatendo com os problemas teóricos de Geertz ao longo do próprio livro. Se os livros clássicos da antropologia acabam se tornando textos "fundadores", capazes de inspirar outros textos antropológicos, e se isso se deve ao poder persuasivo da escrita de cada autor, não deixa de ser curioso que a análise de Geertz prefira incidir sobre as páginas mais pessoais, mais "soft", de cada mestre, em vez de tratar de suas obras mais influentes.
O risco de considerar todo escrito antropológico mera "literatura" é entretanto afastado por Geertz. Se escrever antropologia significa "contar histórias, criar imagens, conceber simbolismos", não se trata, diz o autor, de cair na confusão "do imaginado com o imaginário, do ficcional com o falso, da compreensão das coisas com a invenção delas". Há, portanto, certas ficções que são mais verdadeiras do que outras. Atentar para essa diferença é essencial; mas é como se o livro resistisse um pouco a isso, por medo de perder a graça.


Obras e Vidas
204 págs., R$ 36,00 de Clifford Geertz. Tradução de Vera Ribeiro. Ed. UFRJ (av. Pasteur, 250, sala 107, CEP 2290-902, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2295-1595).



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