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Um dos mais influentes antropólogos da atualidade, Clifford Geertz analisa
em "Obras e Vidas" o legado de predecessores como Malinóvski e Lévi-Strauss
Prosa de fato e ficção
Nem os fatos
nem a teoria, mas sim o artifício retórico é o que estaria por trás da importância que conferimos a esses clássicos da antropologia, diz Geertz
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
Autor do clássico "A Interpretação das Culturas" (ed. Jorge Zahar, 1973), Clifford Geertz é um
dos mais influentes antropólogos da atualidade. Mas é quase na qualidade de crítico literário que, neste
"Obras e Vidas", Geertz analisa as obras
de alguns dos seus mais ilustres predecessores, como Claude Lévi-Strauss,
Ruth Benedict, E.E. Evans-Pritchard e
Bronislaw Malinóvski. No seu livro, baseado em conferências proferidas na
Universidade Stanford (EUA), as manifestações de respeito convencional aos
"monstros sagrados" da disciplina não
são tão visíveis quanto a sem-cerimônia
irrequieta das entrelinhas.
Por que levamos tão a sério os clássicos
da antropologia? Pela solidez da pesquisa empírica? Mas não é a quantidade de
informações confiáveis, diz Geertz, o que
torna atraentes os estudos de Edmund
Leach sobre a Birmânia ou de Margaret
Mead sobre os balineses. Pelo rigor da
construção teórica? Mas os esquemas explicativos de Evans-Pritchard e Malinóvski já não convencem ninguém, e isso não abala em nada o poder de livros
como "Os Nuer" e "Os Argonautas do
Pacífico Ocidental".
Nem os fatos nem a teoria, mas sim o
artifício retórico é o que estaria por trás
da importância que conferimos a esses
clássicos. "A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que dizem
tem menos a ver com uma aparência factual ou com um ar de elegância conceitual do que com sua capacidade de nos
convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente penetrado numa outra forma de vida (...), de realmente haverem, de um modo ou de outro,
"estado lá". E é aí, ao nos convencer de
que esse milagre dos bastidores ocorreu,
que entra a escrita."
Nesse tipo de frase, termos como "escrita", "retórica", ou "artifício discursivo" correm o risco de funcionar como fetiches (do mesmo modo que a palavra
"cultura", aliás). Invoca-se a palavra não
pelo que tenha de explicativo, mas pelo
seu poder bruto de congregar assentimento, de encerrar a discussão.
Mecânica do estilo
Seja como for,
Geertz ressalta com grande argúcia as características do estilo de cada antropólogo estudado. Mais do que os cansativos
debates em torno da autoridade textual e
do pós-modernismo antropológico (o
original do livro é de 1988), é um clássico
da teoria literária, "Mímesis", de Erich
Auerbach, o que parece ter inspirado as
análises do autor. Como Auerbach,
Geertz transcreve longos trechos do livro
a ser comentado, atentando para a estrutura e a mecânica das frases, antes de ampliar o foco do estudo.
A admiração minuciosa rapidamente
dá ocasião para divertidas crueldades.
Em Ruth Benedict, "a mesma coisa é dita
e redita, até parecer tão inegável quanto
as leis do movimento". A autora "tem
apenas uma verdade para revelar, mas
uma verdade fundamental -os índios
das grandes planícies caracterizam-se
pelo transe, os zunhis são cerimoniosos,
os japoneses são adeptos da hierarquia".
A homogeneidade oxfordiana de Evans-Pritchard, seu "encanto em preto-e-branco", observa Geertz, caminha pelo
terreno seguro de uma comunidade de
leitores treinados, capazes de perceber os
menores subentendidos e inflexões.
"Mito sobre mitos"
No caso de Lévi-Strauss, Geertz analisa seu texto menos "científico", "Tristes Trópicos", notando como ali se entrelaçam a poesia
simbolista, o guia de viagem, o discurso
filosófico e o panfleto anticolonialista, de
modo a criar nada mais, nada menos, do
que um mito: um mito do antropólogo,
"um mito sobre mitos".
Também no caso de Malinóvski a opção de Geertz é por um texto mais autobiográfico, seu diário póstumo, que é
contrastado com versões recentes do autoquestionamento antropológico. O legado de Malinóvski para os antropólogos atuais, observa Geertz provocadoramente, é menos um método de pesquisa,
a "observação participante", mas sim
"um dilema literário", o de "como representar o processo de pesquisa no produto da pesquisa".
De algum modo, o espírito da crítica literária vai-se debatendo com os problemas teóricos de Geertz ao longo do próprio livro. Se os livros clássicos da antropologia acabam se tornando textos "fundadores", capazes de inspirar outros textos antropológicos, e se isso se deve ao
poder persuasivo da escrita de cada autor, não deixa de ser curioso que a análise
de Geertz prefira incidir sobre as páginas
mais pessoais, mais "soft", de cada mestre, em vez de tratar de suas obras mais
influentes.
O risco de considerar todo escrito antropológico mera "literatura" é entretanto afastado por Geertz. Se escrever antropologia significa "contar histórias, criar
imagens, conceber simbolismos", não se
trata, diz o autor, de cair na confusão "do
imaginado com o imaginário, do ficcional com o falso, da compreensão das coisas com a invenção delas". Há, portanto,
certas ficções que são mais verdadeiras
do que outras. Atentar para essa diferença é essencial; mas é como se o livro resistisse um pouco a isso, por medo de perder a graça.
Obras e Vidas
204 págs., R$ 36,00
de Clifford Geertz. Tradução de Vera Ribeiro. Ed.
UFRJ (av. Pasteur, 250, sala 107, CEP 2290-902, Rio
de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2295-1595).
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