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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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Ponto de fuga

Radical trash

Divulgação
Murilo Benício em cena do filme "O Homem do Ano"


Falar palavrão pode ter intento de transgredir. Mas, como entre a intenção e o ato vai um abismo, o palavrão acaba, no mais das vezes, apenas como sinal exterior da revolta, inócuo e insignificante.
Quando se trata de criar uma obra qualquer, o problema com as intenções é que elas terminam sendo mais espertas do que deveriam. Às vezes, neutralizam o que há de talento verdadeiro dentro da criação. "Amarelo Manga", de Cláudio Assis, quer ser um filme "gore", sujo, repugnante, à brasileira, marcado por um pouco de humor. Em alguns momentos, o interesse se sustenta. Há um erotismo certeiro. Mas os personagens não cessam de monologar, longamente, com angústias existenciais, sobre o destino do universo e da vida; os diálogos são artificiais. Há uma decisão pedagógica de ressaltar a miséria da cidade, em expor a crueldade nojenta do matadouro, em posição de voyeur intelectual, superior ao seu objeto.
Como no caso do palavrão, a sujeira não é sujeira, mas sinal exterior dela própria. A fotografia de Walter Carvalho confirma o descompasso: é a mesma de "Central do Brasil", de "Carandiru", ou seja, sistemática, embeleza tudo o que capta. Lixo embelezado não é lixo, é arte chique. A câmera se quer dominada com maestria, no evidente desejo de exibir agilidade. Apesar disso, a fatura resulta involuntariamente tosca. Poderia ser uma vantagem: o gênio de Zé do Caixão demonstrou, por sua rugosidade primitiva, a força do "mal acabado". Mas Zé do Caixão é um mestre que faz filmes sem recuos, distâncias ou pés-atrás.

Poréns - "Amarelo Manga" é o primeiro longa-metragem de Cláudio Assis. Há energia no filme e clara vontade de sair do ramerrão da violência social pitoresca ou do exotismo sentimental que vêm marcando o cinema brasileiro dos últimos anos. São méritos que se atenuam pelas intenções sublinhadas. Um filme que se compraz em indicar o quanto está sendo violento, poético ou trash dará sempre a impressão de um exercício de estilo um tanto falsificado.

Noir - "O Homem do Ano", do diretor José Henrique Fonseca, marca, na memória do espectador, por bastante tempo, sequências, cenas, imagens. Seu mundo é o do mal-estar, onde valores e ações escorregam, incertos, entre bem e mal. Para além das diversidades e das energias mais ou menos intensas há pontos de encontro com "O Invasor", de Beto Brant e "Cronicamente Inviável", de Sérgio Bianchi. Os três se distinguem de outros filmes brasileiros no sentido em que, neles, a classe média, que vai ao cinema, não contempla a violência do lado de fora, oferecida como um pitéu exótico, apimentado pelas diferenças sociais. Sem indulgências, eles tornam a platéia cúmplice.
Enquanto "Central do Brasil", "Carandiru", "Cidade de Deus", entre outros, guardam, no fundo das misérias, uma certa cordialidade tão "brasileira", o trio de Fonseca, Brant e Bianchi extermina as fantasias consoladoras próprias às identidades nacionais, fáceis de explorar e destinadas ao sucesso. Ou, caso se queira encontrar, por eles, alguma identidade, será a de uma violência moralmente sórdida. Mas isso não faria muito sentido, já que as identidades afirmam crenças positivas para construir um ser coletivo.
Apesar do ceticismo extremado em "Cronicamente Inviável", do cinismo dramático em "O Invasor", das ambiguidades ameaçadoras em "O Homem do Ano", é melhor pensar que nós não somos como esses filmes nos mostram, mas que estamos assim.

Moço - Eric Rohmer, com 83 anos, termina de montar "Triple Argent", um longa-metragem. Numa entrevista à revista francesa "Télérama", diz: "O cinema encontrou seu classicismo, mas não seu modernismo. A modernidade do cinema não pode ser buscada na modernidade literária de um tema". "Trabalhar com pequeno orçamento é uma garantia contra o academismo. A qualidade artística de um filme está, por vezes, em proporção inversa aos meios empregados. Se filmar num mercado, no meio da multidão, minha imagem balança, passantes dão uma olhada para a câmera, há um monte de imperfeições técnicas. Mas capta-se, ao vivo, coisas extraordinárias."

Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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