São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

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A Las Vegas da antigüidade

CONSIDERADA A 2ª MARAVILHA DO MUNDO MODERNO, EM SEGUIDA À MURALHA DA CHINA, A CIDADE DE PETRA FUNDE ESTILOS QUE VÃO DO GREGO, ROMANO E EGÍPCIO AO MESOPOTÂMICO E INDIANO

ANDREW LAWLER

Burro, cavalo ou camelo?", me pergunta o guia. Opto pelo modelo econômico, e conduzimos nossos burricos num trote tranquilo pelos vales íngremes que cercam Petra, na Jordânia, entre rochas que mudam de cor, do vermelho para o ocre e o laranja, voltando ao vermelho.
Dois mil anos atrás, a trilha hoje deserta que percorremos era uma rota de caravanas construída com habilidade e repleta de mercadores itinerantes que a percorriam a pé, soldados romanos a cavalo e comerciantes ricos que viajavam sobre camelos.
Diretamente à nossa frente há um penhasco perpendicular recoberto de entalhes elegantes que lembram os templos gregos e romanos -uma visão surreal neste vale montanhoso distante, cercado pelo deserto.
Estamos diante da porta dos fundos de Petra, cujo próprio nome significa "pedra", em grego. Em sua época áurea, que começou no primeiro século a.C. e durou 400 anos, Petra era uma das cidades mais ricas, ecléticas e notáveis. Foi nessa época que o povo nabateu talhou as mais impressionantes de suas estruturas monumentais diretamente na pedra vermelha macia. As fachadas eram só o que restava quando viajantes chegaram aqui no século 19 e concluíram que Petra era uma cidade estranha e enigmática, feita de túmulos.
Hoje, porém, arqueólogos estão descobrindo que Petra, na Antigüidade, era uma grande cidade com jardins férteis e fontes agradáveis, templos enormes e residências luxuosas em estilo romano.
Um habilidoso sistema de fornecimento de água permitia que os moradores de Petra não apenas tivessem água para beber e se banhar mas também para cultivar trigo e frutas, produzir vinho e passear à sombra de árvores altas. Durante os séculos pouco antes e depois de Cristo, Petra era o maior centro comercial do Oriente Médio, um ímã para as caravanas que percorriam os caminhos entre Egito, Arábia e o Levante.
E hoje os estudiosos já sabem que Petra floresceu por quase mil anos -muito mais tempo do que se imaginava.
Nossos burricos retardam o passo quando nos aproximamos da maior construção de Petra não escavada na rocha, o Grande Templo. Diferentemente das cavernas escavadas nos penhascos que cercam a cidade, esse complexo foi erguido sobre o chão firme e cobria uma área maior que dois campos de futebol.

"Doutora Marta"
Meu guia, Suleiman Mohammad, aponta para uma nuvem de poeira em um lado do templo, onde encontro Martha Sharp Joukowsky numa cova, com uma dúzia de trabalhadores. Conhecida como "Doutora Marta" por três gerações de trabalhadores beduínos, a arqueóloga da Universidade Brown passou os últimos 15 anos escavando e restaurando parcialmente o complexo do Grande Templo.
Erguido durante os séculos 1º a.C. e 1º d.C., ele incluía um teatro com 600 lugares, uma colunata tripla, um enorme pátio pavimentado e, abaixo dele, salas abobadadas. Centenas de milhares de artefatos foram encontrados no sítio, desde pequenas moedas dos nabateus até pedaços de estátuas.
Quando desço para a trincheira, me sinto como se estivesse entrando num campo de batalha. Em meio ao calor e à poeira, Joukowsky comanda os escavadores como se fosse uma general -impressão reforçada por suas roupas cáqui e as insígnias douradas em seu boné de beisebol.
Esta será a última temporada de Joukowsky -aos 70 anos, ela se prepara para se aposentar-, e ela não tem tempo a perder. Eles acabam de encontrar uma área de banhos construída nos séculos 2 e 3 d.C., e a descoberta está complicando seus planos de encerrar as pesquisas dessa temporada.
Um trabalhador entrega a Joukowsky um pedaço de vidro romano e uma minúscula roseta de cerâmica. Ela pára para admirá-los, coloca-os de lado para serem catalogados e então continua a gritar ordens aos escavadores, que passam de mão em mão baldes de plástico contendo terra retirada da trincheira. A tarde chega ao meio, o sol é abrasador, a poeira, sufocante, e o dia de trabalho está quase chegando ao fim.
"Pretendia ter terminado esta parte há dois dias, mas ainda estou presa no meio desta sujeira", diz Joukowsky, fingindo irritação e apontando para pilhas escuras de cinzas de lenha e outros combustíveis usados para aquecer a água dos banhos da elite de Petra. "Estou encerrando minha carreira num monte de cinzas."


Apesar de toda a publicidade e do afluxo de turistas, boa parte de Petra permanece intocada pelos arqueólogos

Quando Joukowsky iniciou seu trabalho, Petra não passava de um destino turístico exótico situado num país sem recursos para financiar escavações. Os arqueólogos, de modo geral, tinham passado ao largo do sítio -localizado na periferia do Império Romano-, e apenas 2% da cidade antiga tinha sido descoberta.
Desde então, a equipe de Joukowsky, uma equipe suíça e outra americana trouxeram à tona o que foi no passado o centro político, religioso e social da metrópole, jogando por terra a idéia de que Petra não passava de uma cidade de túmulos. Ninguém sabe de onde vieram os nabateus, mas eles desenvolveram um sistema de escrita que acabou se tornando a base do árabe escrito.
Nas décadas que se seguiram à morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C., os gregos reclamavam dos nabateus que saqueavam navios e caravanas de camelos. Os estudiosos acreditam que essas investidas acabaram por aguçar o apetite dos nabateus pela riqueza.
Com o tempo, ao invés de atacar as caravanas, começaram a protegê-las -cobrando um preço por isso. No século 2º a.C., os nabateus já dominavam o comércio de incenso saindo do sul da Arábia.
Em 100 a.C. a tribo tinha um rei, riqueza imensa e uma capital em rápido processo de expansão. Camelos chegavam a Petra carregando caixas de olíbano e mirra de Omã, sacos de especiarias da Índia e tecidos da Síria. Tanta riqueza teria atraído saqueadores, não fosse pelo fato de que as montanhas e os muros altos de Petra protegiam os mercadores quando chegavam à cidade.
Os nabateus eram incomuns no mundo antigo por seu repúdio à escravidão, pelo papel de destaque exercido pelas mulheres na vida política e pela abordagem igualitária ao governo. Joukowsky sugere que o grande teatro do Grande Templo, que ela restaurou parcialmente, pode ter sido usado para reuniões de conselho, com espaço para receber centenas de cidadãos.

Cidade liberal
Tanta riqueza acabou atraindo a atenção de Roma, grande consumidora de incenso para uso em rituais religiosos e de especiarias usadas para fins medicinais e no preparo de alimentos. Roma anexou a Nabatéia em 106 d.C., aparentemente sem combates. Em sua época áurea, Petra era uma das cidades mais liberais da história -mais Las Vegas do que Atenas. Acostumados a viver em tendas, os nabateus primitivos não tinham tradição significativa de construção, de modo que, com a renda que passaram a ter à sua disposição, copiaram estilos que variavam do grego ao egípcio, do mesopotâmico ao indiano -razão das colunas do Grande Templo coroadas com cabeças de elefantes asiáticos.
"Eles emprestavam elementos de todos", diz Christopher A. Tuttle, estudante de pós-graduação da Universidade Brown que trabalha com Joukowsky.
Um dos enigmas de Petra é a razão que levou os nabateus a empregar uma parte tão grande de sua riqueza esculpindo fachadas notáveis e cavernas, que perduraram por muito tempo depois de as construções erguidas sobre a terra terem desabado em consequência de terremotos ou do descuido.
No auge de Petra, sua população chegou a cerca de 30 mil moradores -uma densidade demográfica espantosa, que, no clima árido da região, foi possível graças à habilidade de engenharia dos nabateus. Os moradores de Petra escavaram canais na rocha sólida, armazenando as chuvas do inverno em centenas de grandes cisternas, para serem usadas durante os verões secos. Muitas dessas cisternas são usadas até hoje pelos beduínos.
As encostas montanhosas íngremes foram convertidas em vinhedos plantados em terraços, e pomares irrigados abasteciam os moradores de frutas frescas, provavelmente romãs, figos e tâmaras.
Uma equipe suíça descobriu recentemente, perto do pico da colina, uma residência impressionante em estilo romano, com casa de banhos repleta de detalhes, uma prensa para produzir azeite de oliva e afrescos no estilo dos de Pompéia.
No século 4º d.C. Petra entrou em declínio. O crescente comércio marítimo, ao sul, roubara negócios de Petra, enquanto cidades rivais ao norte que também recebiam caravanas, como Palmyra, desafiavam o domínio de Petra em terra.
Então, em 19 de maio de 363 d.C., um grande terremoto sacudiu a região, seguido por um tremor posterior também poderoso. Um bispo de Jerusalém observou numa carta que "quase a metade" de Petra foi destruída pelo abalo. Esquecida por um milênio em sua fortaleza no deserto, Petra ressurgiu no século 19 como destino exótico para viajantes ocidentais. Em tempos mais recentes, Petra vem realizando essa previsão. Hoje ela é a maior atração turística da Jordânia, atraindo centenas de milhares de visitantes por ano.
Indiana Jones, personagem hollywoodiano, procurou o Santo Graal em uma das cavernas de Petra em filme de 1989, dramatizando a cidade para o público mundial.
O tratado de paz de 1994 entre Jordânia e Israel possibilitou o turismo de massas. Estrangeiros começaram a ir a Petra, e judeus devotos começaram a fazer peregrinações até a vizinha Jebel Haroun, que, de acordo com a tradição, é o local do túmulo do profeta Aarão.
Apesar de toda a publicidade e do afluxo de turistas, boa parte de Petra permanece intocada pelos arqueólogos, escondida debaixo de espessas camadas de destroços e da areia acumulada ao longo de séculos.

A íntegra deste texto saiu na "Smithsonian". Tradução de Clara Allain.


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