São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

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Caça ao tesouro

"Os Deuses de Freud" analisa a coleção de 2.000 peças da Antigüidade que o psicanalista vienense reuniu ao longo da vida

BRENDA MADDOX

Sigmund Freud era econômico com os insights sobre sua própria psique e não oferecia nenhuma explicação sobre seu hábito compulsivo de colecionar antigüidades, exceto por descrever-se como arqueólogo da mente. Ele descrevia seu trabalho como um trazer à tona aquilo que estivera enterrado por muito tempo. A foto dele diante de sua escrivaninha repleta de pequenas estatuetas, jarras e esculturas é quase tão conhecida quanto a imagem de seu divã, que virou ícone.
A australiana Janine Burke, especializada em história da arte, escreveu um livro ["The Gods of Freud - Sigmund Freud's Art Collection", Os Deuses de Freud - A Coleção de Arte de Sigmund Freud, Knopf Australia, 455 págs., 49,95 dólares australianos, R$ 80,22] que precisava ser escrito.
Nele, detalha a história e a importância das 2.000 peças colecionadas por Freud ao longo de décadas. Muitas delas estão expostas hoje no Museu Freud na rua Maresfield Gardens, 20, em Hampstead [em Londres], onde o consultório e a sala de estudos de Freud em Viena foram remontados praticamente como eram quando Freud fugiu de lá, em junho de 1938.
De acordo com Burke, a capa do célebre divã é um tapete iraniano qashqai tecido em tons quentes de vermelho e ocre, formando um desenho geométrico complexo que mostra um jardim no paraíso. Freud comprou a peça em 1891 numa exposição no Museu imperial do Comércio Austríaco.
Em seu consultório em Viena, na rua Berggasse, 19, sentado atrás de seus pacientes, ouvindo as livres associações que faziam, seus olhos ficavam livres para vagar. "Preciso sempre ter um objeto para amar", ele disse a Jung antes do rompimento entre eles, em 1912.
A maioria dos objetos que Freud colecionou não é de grande valor em si, exceto para os historiadores da arte clássica. O que Janine Burke revela é a compulsão absoluta de Freud por adquirir objetos diversos das antigüidades grega, romana e egípcia; ele tinha em grande estima, especialmente, as representações da Esfinge.
A arte moderna não lhe interessava, nem mesmo os impressionistas.

Arteterapia
Sua terapia consistia em sair à compra de seus tesouros. Nenhuma viagem -especialmente se fosse à sua amada Roma- era completa sem a aquisição de um pequeno troféu da Antigüidade. Em Nova York, em 1909, durante sua única viagem aos EUA, Freud não apenas visitou a coleção de vasos gregos do Metropolitan como foi às compras na Tiffany's, de onde levou uma tigela de jade e um busto de bronze de Buda.
Com o passar dos anos, mal conseguia levantar-se de trás de sua escrivaninha, tão apertado ficara o espaço devido à profusão de objetos, que ele rearrumava constantemente. Mesmo quando deixava Viena para passar algum tempo em suas casas de veraneio, levava a maior parte da coleção com ele.
Mas que efeito aquela coleção enorme de minúsculos objetos escavados exercia sobre os pacientes, enquanto eram conduzidos diante dela, com Freud explicando um ou dois deles a caminho do divã? Uma explicação foi dada pela escritora e poeta Hilda Doolittle, "H.D.", que foi analisada por Freud em 1933.
"Eu não esperara me deparar com um museu, um templo", ela escreveu mais tarde, sugerindo que Freud mostrava a coleção como maneira de induzir seus pacientes a relaxar. Em sua primeira consulta, ela olhou tão intensamente que Freud fez uma interpretação instantânea: que ela preferia "os resquícios mortos da Antigüidade a sua presença viva".
Quando Freud estava prestes a deixar Viena, em 1938, um amigo convocou o fotógrafo Edmund Engelman para ir à Berggasse, 19, e fotografar a coleção, o consultório e Freud sentado diante de sua escrivaninha. As fotos sobreviveram para dar às gerações posteriores uma idéia de como era o consultório de Freud.
Freud começou a colecionar na época em que estava escrevendo "A Interpretação dos Sonhos", no período que se seguiu à morte de seu pai, em 1896, acontecimento que o fez sentir-se desarraigado. Em sua infância, ele nutrira uma adoração ardente por figuras heróicas, desde Alexandre, o Grande, até Napoleão.
Como adulto, na visão de Burke, ele precisava cercar-se de imagens de grandeza masculina para sentir-se inspirado e encorajado. Ao todo, diz a autora, a coleção parece encarnar as teorias que ele estava desenvolvendo: uma investigação e celebração do passado, uma recordação de jornadas reais e imaginadas e um catálogo de desejos.
As estátuas e esculturas escolhidas por Freud também expressam sua ambivalência em relação às mulheres: deusas para serem adoradas, mas mantidas passivas -como sua atitude em relação a sua mãe, Amalia, e a sua mulher, Martha.
Sua peça favorita na coleção era uma pequena estátua em bronze de Atena, uma cópia romana de um bronze grego do século 5º. "Ela é perfeita", disse Freud a H.D., "só que perdeu sua lança". A Atena agora ocupa o lugar central na escrivaninha no Museu Freud.
Burke relata muito bem a história fascinante da fuga de Freud de Viena, em 1938, com muitas pessoas de sua família, além de seu médico e da família do médico, organizada pela Dr. Ernest Jones, em Londres, e pela princesa Maria Bonaparte, em Paris.

Avaliação baixa
Ela descreve com detalhes as negociações exaustivas e difíceis com os nazistas, que exigiam uma avaliação de todos os bens tributáveis antes que alguém pudesse partir.
Felizmente, para Freud, o homem escolhido para avaliar sua coleção e fornecer a declaração de "sem impedimentos" foi Hans von Demel, curador e amigo pessoal de Freud.
Demel avaliou a coleção em 500 "Reichsmarks", muito abaixo de seu valor real e muito abaixo do limite permitido para refugiados sem o pagamento de impostos, com isso possibilitando que Freud a levasse a Londres com ele.
Para atenuar ainda mais o golpe do exílio forçado, a curadora vienense de Freud, Paula Fischl, que tinha memorizado a ordem das obras principais sobre a mesa de Freud em Viena, organizou os objetos exatamente como ficavam em Viena -uma visão bem-vinda para saudar Freud, já adoentado, quando ele entrou em sua casa em Maresfield Gardens.
Considerava essa casa a mais agradável que já tivera, e seus últimos meses de vida foram passados num sofá de balanço no jardim, de onde podia ver seus amados objetos. Quando morreu, em setembro de 1939, suas cinzas foram colocadas numa urna grega com figuras vermelhas do século 4º a.C. que lhe fora presenteada pela princesa Marie Bonaparte.


A íntegra deste texto foi publicada no "Times Literay Supplement". Tradução de Clara Allain . .

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