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GRAMSCI
Com "Cadernos do Cárcere", começa a ser publicada no país a obra integral de Gramsci, que renovou o pensamento marxista
O pensador hegemônico
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O pensador e político italiano Antonio Gramsci (1891-1937), autor de "Cadernos de Cárcere" |
MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação
No dia 8 de novembro de 1926, o deputado e secretário-geral do PCI (Partido Comunista Italiano), Antonio Gramsci
(1891-1937), foi preso pelas forças de Mussolini. Dois anos
mais tarde, em seu julgamento, o promotor teria afirmado: "É
preciso impedir que esse cérebro funcione por 20 anos".
Gramsci foi então condenado a uma pena pouco maior que essa, da qual cumpriu mais de dez anos. No cárcere, entre 29 e 35,
produziu uma das mais importantes obras de reflexão política
do século.
Foi numa carta de 19 de março de 27 que Gramsci manifestou pela primeira vez o desejo de escrever um estudo de fôlego.
Algo que transcendesse os artigos que publicava nos jornais de
esquerda e o ajudasse a superar a miséria da vida carcerária.
Nele, Gramsci buscou sobretudo reelaborar e ampliar as concepções marxistas sobre a sociedade, a cultura e o Estado modernos, propondo uma via democrática ao comunismo.
Entretanto Gramsci teve de esperar até fevereiro de 29, quando o diretor do presídio de Turi, na região de Bari (Itália), finalmente lhe permitiu estudar e escrever na cadeia. Com uma
grafia legível, miúda e sem emendas, ele preencheu durante
seis anos seguidos -até abril de 35, quando sua saúde se agravou- 32 cadernos de capa dura, três deles dedicados exclusivamente a exercícios de tradução.
São esses "Cadernos do Cárcere" que começam a chegar às
livrarias do país a partir de dezembro, quando a Civilização
Brasileira lançará o primeiro dos seis volumes. Além disso, estão previstos outros cinco volumes: dois reunindo os escritos
pré-carcerários e três com as cartas do cárcere. A edição e tradução das obras completas ficaram a cargo do professor titular
de teoria política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Carlos Nelson Coutinho, tradutor de Gramsci nos anos
60, e dos co-editores Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio
Nogueira. Gramsci é tema também do livro de Norberto Bobbio, "Ensaios sobre Gramsci e o Conceito de Sociedade Civil",
agora publicado pela Paz e Terra.
Movido pelo "pessimismo da inteligência e o otimismo da
vontade" -o "mote" dos "Cadernos"-, esse intelectual nascido na Sardenha, de origem proletária, medindo pouco mais
de 1,50 m, deixou uma obra que, na opinião das personalidades ouvidas pela Folha (leia na pág. ao lado), não perdeu o vigor e a atualidade -ao contrário do que ocorreu com outras
vertentes do pensamento marxista.
Além de ter reformulado as bases do pensamento político de
esquerda, Gramsci foi um criativo analista da imprensa, da literatura, do teatro, das instituições de ensino, dos intelectuais
-aos quais atribuiu um papel fundamental na transformação
da sociedade. Um pensador que, da prisão, preocupou-se com
a totalidade dos fenômenos que cercavam o homem do seu
tempo, como afirma Coutinho na entrevista abaixo.
Folha - A década de 90 assistiu ao colapso do "socialismo
real" e, também, a uma retração
do pensamento marxista. Agora
começa a ser lançada no Brasil a
edição completa dos "Cadernos
do Cárcere". Qual o sentido dessa publicação?
Carlos Nelson Coutinho - Não é
justo dizer que o pensamento
marxista sofreu uma retração. O
fim do chamado "socialismo real"
representou a crise terminal de
uma específica leitura de Marx, o
chamado "marxismo-leninismo", hábil pseudônimo de stalinismo. Essa leitura serviu de ideologia de Estado para aqueles regimes ditos "comunistas", os quais,
a meu ver, nada mais tinham a ver
com o marxismo. Mas o fato é que
alguns autores marxistas até começaram a ser lidos com mais
atenção depois do colapso do "socialismo real". Entre eles, eu destacaria os integrantes da Escola de
Frankfurt (em particular Walter
Benjamin), mas, sobretudo, Antonio Gramsci. Embora sejam
muito diferentes entre si, Benjamin e Gramsci nada têm a ver
com o "marxismo-leninismo".
Republicar Gramsci tornou-se,
assim, uma demanda real. Quando ele foi publicado aqui, parcialmente, em meados dos anos 60,
chegamos a dispor em português
de uma massa de textos que, com
exceção do italiano e do espanhol,
não estava disponível ainda em
nenhuma outra língua. Gramsci
foi lido, reeditado, utilizado dentro e fora da universidade, em vários campos, da teoria política à
antropologia, da crítica literária à
pedagogia e ao serviço social.
Penso que o sentido dessa nova
edição é torná-lo mais bem conhecido no Brasil e, desse modo,
propor um novo debate sobre
suas idéias. E isso precisamente
no momento em que parece estar
começando a ruir a hegemonia do
"pensamento único", neoliberal.
Folha - O sr. foi um dos responsáveis pela divulgação de
Gramsci no Brasil, a partir dos
anos 60. Considerando as grandes transformações que ocorreram de lá para cá, não só no
país, quais as suas expectativas
quanto à recepção dessa obra?
Coutinho - Gramsci é hoje uma
referência essencial para boa parte da esquerda e centro esquerda
brasileiras, do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) ao PPS (Partido Popular
Socialista), passando pelas várias
correntes do PT (Partido dos Trabalhadores). Não só: até mesmo o
presidente Cardoso, numa entrevista à "Veja", usou Gramsci para
justificar suas posições políticas
neoliberais. Embora os "Cadernos do Cárcere" possuam uma articulação interna sistemática, a
sua forma de apresentação é claramente fragmentária: isso parece
permitir interpretações ilimitadas, como se a obra de Gramsci
fosse uma "obra aberta".
Não creio que o seja: Gramsci
era um comunista, refletiu sobre
as condições da revolução socialista no que ele chamou de "Ocidente", propondo uma estratégia
diversa daquela dos bolcheviques
na Rússia de 1917. Mas o fato de
que sua interpretação provoque
acesos debates, que tanto o PSTU
quanto o presidente Cardoso possam citá-lo com aprovação, parece-me uma prova de que é preciso
relê-lo com atenção.
Folha - Em que condições
Gramsci escreveu os cadernos?
Coutinho - Em condições muito
difíceis. Preso pelo fascismo em
1926, só em 1929 ele teve autorização para escrever em sua cela. A
partir de então, e até 1935, quando
suas condições de saúde o impediram definitivamente de trabalhar, preencheu 32 cadernos escolares, que ocupam cerca de 3.000
páginas impressas. Três deles
eram formados por exercícios de
tradução, sobretudo do russo e do
alemão. Os outros 29 contêm
apontamentos de sua autoria. O
próprio Gramsci os dividiu em
"cadernos miscelâneos" e "cadernos especiais". Nos "miscelâneos", juntou notas sobre variadíssimos temas; nos "especiais",
em geral mais tardios, tentou
agrupar essas notas segundo temas específicos, como "Introdução ao Estudo da Filosofia", "Para
uma História dos Intelectuais",
"Americanismo e Fordismo" etc.
Folha - Nos anos 60, os marxistas mais influentes eram Louis
Althusser e Herbert Marcuse
-além do marxismo-leninismo,
orientado pelo PC soviético. Como o pensamento de Gramsci se
inseriu nesse contexto?
Coutinho - Com muita dificuldade. Antes que ocorresse a influência de Althusser e de Marcuse, alguns intelectuais comunistas
-entre os quais me incluo- tentaram renovar a cultura teórica do
PCB, que naquele momento já
competia com outras correntes
progressistas, como os cristãos de
esquerda. Fomos apoiados nessa
iniciativa por Ênio Silveira, que
então dirigia a Civilização Brasileira. Gramsci, juntamente com
Lukács e Sartre, representou na
época uma renovação do marxismo nos campos da filosofia e da
crítica literária. Deixamos de lado
o fato de que Gramsci era o maior
teórico político marxista do século 20. Não o fizemos intencionalmente, mas criamos assim uma
tácita "divisão do trabalho": a direção do PCB decidia sobre a linha política, enquanto nós tentávamos definir a linha cultural. Isso não deu e não podia dar certo:
quando a linha "moderada" do
PCB começou a ser criticada,
também foram criticados Gramsci e Lukács. É o momento em que
Marcuse esgota edições a cada
três meses e Gramsci é vendido
em estantes de saldo a preço de
banana. As coisas hoje mudaram.
Gramsci continua a ser lido, enquanto ninguém mais lê Marcuse.
Mas não digo isso com espírito revanchista: é uma pena que ninguém mais leia Marcuse. Ele, com
seu salutar radicalismo, tem muito a nos dizer.
Folha - Em fins dos anos 60,
grande parte da esquerda radicalizou suas ações contra o regime militar e partiu para a luta
armada -sob a influência de
Mao, Trótski e Fidel Castro. Isso
teria contribuído para o "pé
atrás" em relação às teorias
gramscianas?
Coutinho - Muito provavelmente. Gramsci propunha algo
diverso: para ele, em países mais
complexos socialmente, como já
era o caso do Brasil naquele momento, a estratégia era outra. Em
vez da luta armada, da "guerra de
movimento", devíamos adotar a
"guerra de posição", a luta progressiva pela hegemonia etc. O
PCB até fazia isso, mas o fazia tão
mal que era difícil convencer
quem não fosse um disciplinado
militante. Assim, num terreno
marcado pela disputa entre Mao,
Fidel e Brejnev, não havia nenhum lugar para Gramsci, o que
foi péssimo para a esquerda brasileira. Só no final dos anos 70 é que
Gramsci voltou a ser lido e a ter
influência. Isso ocorreu sobretudo porque, naquele momento,
entraram em crise tanto o "sovietismo" do PCB quanto as ilusões
da chamada "esquerda armada".
Folha - Em que medida os conceitos gramscianos de "hegemonia" e "sociedade civil" renovaram o pensamento marxista?
Coutinho - Foi principalmente
por causa deles que o marxismo
se tornou contemporâneo do século 20 e, espero, também do século 21. Gramsci percebeu que, a
partir da segunda metade do século 19, havia surgido uma nova
esfera do ser social capitalista: o
mundo das auto-organizações,
do que ele chamou de "aparelhos
privados de hegemonia". São os
partidos de massa, os sindicatos,
as diferentes associações -tudo
aquilo que resulta de uma crescente "socialização da política".
Ele deu a essa nova esfera o nome
de "sociedade civil" e insistiu em
que ela faz parte do Estado em
sentido amplo, já que nela têm
lugar evidentes relações de poder. A "sociedade civil" em
Gramsci é uma importante arena
da luta de classes: é nela que as
classes lutam para conquistar
hegemonia, ou seja, direção política, capacitando-se para a conquista e o exercício do governo.
Ela nada tem a ver com essa coisa
amorfa que hoje chamam de
"terceiro setor", pretensamente
situado para além do Estado e do
mercado.
Ao descobrir essa nova esfera,
ao dar-lhe um nome e ao definir
seu espaço, Gramsci criou uma
nova teoria do Estado. O Estado,
para ele, não é mais o simples
"comitê executivo da burguesia", como ainda é dito no "Manifesto Comunista", mas continua a ser um Estado de classe.
Contudo o modo de exercer o
poder de classe muda, já que o
Estado se amplia graças à inclusão dessa nova esfera, a "sociedade civil". Buscar hegemonia,
buscar consenso, tentar legitimar-se: tudo isso significa que o
Estado deve agora levar em conta outros interesses que não os
restritos interesses da classe dominante. Com isso, Gramsci
chegou a compreender o tipo de
Estado que é próprio dos regimes liberal-democráticos, um
Estado bem mais complexo do
que aquele de que falam Marx e
Engels no "Manifesto" ou Lênin
e os bolcheviques no conjunto de
sua obra.
Folha - O que é a chamada
"revolução passiva"?
Coutinho - Esse é outro conceito central em Gramsci. Indica
eventos concretos nos quais a
classe dominante, reprimindo ou
excluindo as demais, empreende
processos de renovação "pelo alto", autoritários ou ditatoriais. Indica também épocas históricas
em que a classe dominante, tentando excluir os "de baixo", recolhe algumas de suas demandas,
mas impedindo que eles sejam
protagonistas nos processos de
transformação.
Para Gramsci, por exemplo, foram "revoluções passivas" tanto o
fascismo quanto o "fordismo".
Parece-me um grande equívoco,
infelizmente adotado hoje por alguns autores brasileiros, ver na
"revolução passiva" uma coisa
também positiva, algo que a esquerda pode usar em sua luta pela
transformação da sociedade.
Gramsci a considerava um fenômeno negativo, já que é uma modalidade de transformação utilizada pelas classes dominantes para conservar o seu poder. Um político brasileiro, o velho mineiro
Antonio Carlos (agora imitado
pelo seu homônimo baiano), resumiu muito bem o espírito da revolução passiva, quando, em
1930, afirmou: "Façamos a revolução antes que o povo a faça". A
chamada Revolução de 30, aliás, é
um caso emblemático de "revolução passiva".
Folha - Gramsci faz uma distinção entre dois modelos básicos
de sociedade: as "orientais"
(pouco diversificadas) e as "ocidentais" (muito complexas). Como situar o Brasil nesse quadro?
Coutinho - Para Gramsci, no
"Oriente" (e ele está pensando
principalmente na Rússia czarista), o Estado em sentido estrito é
tudo e a sociedade civil é primitiva e gelatinosa; no "Ocidente" (e
ele está pensando na Europa Ocidental e nos EUA), há um equilíbrio entre as duas esferas. Foi a
partir dessa distinção que ele não
só renovou a teoria do Estado,
mas também se empenhou em
criar um novo paradigma de revolução socialista, adequado ao
"Ocidente", diverso daquele dos
bolcheviques, que seria válido
apenas para países "orientais".
O Brasil foi claramente "oriental" durante o Império e a República Velha. A partir de 30, com
interrupções, houve um processo
de "ocidentalização", de crescimento e complexificação da sociedade civil. Hoje, penso que já
somos uma sociedade "ocidental". Claro, um "Ocidente" periférico e tardio, que contém em seu
interior vastas zonas "orientais".
Mas esse era também o caso da
Itália nos anos 30, e Gramsci não
hesitou em considerá-la "Ocidente".
Por isso, um caminho viável para o socialismo no Brasil não pode
ser concebido a partir do que existe aqui de "orientalidade", mas
deve respeitar essa "ocidentalidade" e se basear numa paciente batalha pela hegemonia, pela conquista de espaços na sociedade civil. Embora a expressão não seja
de Gramsci, agrada-me chamar
esse caminho de "reformismo revolucionário".
Folha - Gramsci atribuía à cultura, à superestrutura, uma dimensão política que foi subestimada pelo marxismo ortodoxo
-muito preso ao determinismo
econômico. Quais as implicações dessa abordagem?
Coutinho - Certamente, entre os
marxistas, Gramsci foi um dos
que mais valorizaram a cultura e
seu papel não só na transformação da sociedade, mas também na
sua conservação. Essa valorização
é um dos momentos constitutivos
do seu conceito de hegemonia.
Em Gramsci, hegemonia não é
apenas direção política, mas também cultural, isto é, obtenção de
consenso para um universo de valores, de normas morais, de regras
de conduta. Mas é preciso observar o seguinte: embora tenha ligado a cultura à "grande política",
que definia como um momento
de liberdade e de universalização,
Gramsci sempre combateu a instrumentalização política da cultura, sempre respeitou sua autonomia, sua especificidade. Ou seja: a
arte, assim como a cultura em geral, não se faz apenas com boas intenções políticas.
Folha - Os cadernos foram escritos antes que houvesse TV,
Internet, mídia eletrônica -o
que se tem chamado de "quarto
poder". Como um gramsciano
avaliaria a emergência desse
novo fenômeno?
Coutinho - Na medida em que o
mundo da mídia continua a ser
propriedade privada de pequenos
grupos da classe dominante, isso
provoca um indiscutível desequilíbrio na disputa pela hegemonia.
A nova mídia eletrônica, sobretudo a TV, tem um peso inegável na
formação da opinião pública, na
construção da cultura que está na
base das relações de hegemonia.
Mas essa nova mídia também está
imersa na sociedade civil e sofre
sua influência. Lembro que, na
campanha pelas Diretas-já, em
84, a Globo começou simplesmente ignorando o movimento.
Mas, a partir de um certo momento, à medida que a campanha
se tornava de massa, não só foi
pressionada a "repercutir" a campanha, mas até mesmo assumiu
um tom simpático a ela.
Também aqui, portanto, trata-se de lutar pela conquista de espaços no interior da mídia, o que
significa lutar por sua efetiva democratização. Isso implica não só
uma pressão da opinião pública,
mas também a elaboração de uma
legislação adequada, que desprivatize o controle da mídia e o torne efetivamente público. Isso não
é sinônimo de estatização, mas
sim de controle efetivo pela sociedade civil. Se o rádio e a televisão
são uma concessão pública, devem evidentemente ser publicamente controlados. Em suma, um
gramsciano veria o mundo da mídia como mais um espaço de luta
pela hegemonia. Nesse sentido,
ele estaria mais próximo de Benjamin, que supunha ser possível
utilizar revolucionariamente a
"reprodutibilidade técnica" da
cultura, do que de Adorno e Horkheimer, que condenam em bloco o que chamam de "indústria
cultural".
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