São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
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Todo o esforço do pensador italiano foi o de libertar o marxismo da herança cientificista e positivista
O pensamento heterodoxo

MICHAEL LÖWY
especial para a Folha

Entre as várias razões que estimularam a recepção de Gramsci no Brasil a partir dos anos 60, uma das mais importantes foi sem dúvida o desejo de levantar a chapa de chumbo do positivismo, que pesava com várias toneladas não só sobre a cultura "republicana" brasileira desde o fim do século 19, mas também sobre a cultura política da esquerda marxista.
Mais conjunturalmente, se tratava de encontrar pontos de apoio político-filosóficos para resistir à onda de marxo-positivismo estruturalista promovida por Althusser e seus discípulos, que vinha tendo grande impacto na França e no Brasil. É nesse contexto que vários pensadores marxistas brasileiros -entre os quais Carlos Nelson Coutinho tem um papel pioneiro- vão começar a introduzir o pensamento de Gramsci no Brasil, traduzindo suas obras e utilizando seus conceitos para interpretar a realidade brasileira.
A obra de Antonio Gramsci representa, com efeito, uma das tentativas mais radicais de libertar o marxismo da herança cientificista e positivista que predominou na versão "ortodoxa", tanto da Segunda Internacional (Plekhanov, Kautsky) como da Terceira (Bukharin, Stálin).
Na obra de juventude de Gramsci (1916-19) a referência ao idealismo hegeliano de Croce e Labriola ou ao voluntarismo ético de Bergson e Sorel é essencialmente um meio para lutar contra a ortodoxia "científica" e o determinismo economicista dos representantes oficiais do marxismo à cabeça do movimento socialista italiano: Claudio Treves e Filippo Turati. Esse "bergsonismo" de Gramsci, para citar um termo ambíguo utilizado com frequência por seus adversários positivistas, será progressivamente superado ("aufgehoben") no curso de sua evolução política e filosófica como dirigente comunista italiano.
O famoso artigo de 1917, celebrando a insurreição de outubro como "uma revolução contra o capital", deve também ser visto nesse contexto, isto é, como uma tentativa de romper com o que Gramsci chamava "as escórias positivistas e naturalistas" do marxismo.
Encarcerado pela polícia fascista em 1926, Gramsci vai redigir na prisão, no curso dos anos 1929-35, uma série de notas sobre temas filosóficos, políticos e culturais que constituem um dos pontos altos na historia do pensamento crítico no século 20. Ao definir o marxismo como filosofia da práxis e como um método ao mesmo tempo radicalmente humanista e radicalmente historicista, ele se situa num plano infinitamente superior ao "diamat" (materialismo dialético) soviético e suas inúmeras tentativas de "aplicação". Isso também se traduz, no plano político, por um "esfriamento", no curso dos anos 30, das relações entre Gramsci encarcerado e a direção do Partido Comunista Italiano (Palmiro Togliatti).
O historicismo radical implica, antes de tudo, a negação de qualquer tentativa de interpretar a realidade social segundo o método materialista científico-natural, buscando descobrir "leis naturais" da sociedade que permitam "prever cientificamente" o curso dos acontecimentos. Ele exige também que o materialismo histórico seja aplicado a si mesmo, definindo assim seus próprios limites histórico-sociais. Segundo Gramsci, compreender a historicidade do marxismo significa reconhecer que ele pode -ou melhor, deve- ser superado pelo desenvolvimento histórico, com a passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade, da sociedade divida em classes à sociedade (comunista) sem classes. Evidentemente, não é possível dizer, sem cair no utopismo, qual será o conteúdo dessa nova forma de pensamento. Isso também significa, inversamente, que, enquanto vivemos num mundo dominado pelo capitalismo e pelas classes exploradoras, o marxismo continua sendo a forma mais avançada de ação/interpretação social.
Polemizando contra o historicismo, Louis Althusser insistia que Marx era "um homem de ciência como os outros", comparável, em seu terreno, a Lavoisier ou Galileu. Sem o dizer de forma explícita, ele se opunha diretamente a uma tese de Gramsci, que escrevia: "Graziadei (...) coloca Marx como unidade em uma série de grandes cientistas. Erro fundamental: nenhum dos outros produziu uma concepção original e integral do mundo". Essa visão-do-mundo, a filosofia da práxis, não pode ser decomposta em uma ciência positiva de um lado e uma ética do outro: ela supera, em uma síntese dialética, a oposição tradicional entre "fatos" e "valores", ser e dever-ser, conhecimento e ação, teoria e prática.
Na sua tentativa de reconstrução do marxismo e do comunismo, Gramsci submete a uma crítica radical a doutrina predominante na Terceira Internacional, que tem uma de suas manifestações mais inteligentes no livro de Nikolai Bukharin sobre o materialismo histórico, o "Manual Popular de Sociologia Marxista" (1922). Trata-se, para o autor dos "Cadernos", de uma obra totalmente prisioneira de um conceito de ciência copiado das ciências naturais -segundo o princípio fixado pelo positivismo de que estas são a única forma possível de ciência. O resultado é que a compreensão de Bukharin da história não é dialética, mas inspirada por um "chato e vulgar evolucionismo" que pretende fazer "previsões científicas" análogas às que buscam as "ciências exatas".
É interessante observar que alguns anos antes Georg Lukács havia criticado o manual de Bukharin em termos bastante semelhantes na revista "Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der Arbeiterbewegung" (1925). É muito pouco provável que Gramsci tivesse lido esse ensaio: simplesmente os dois partilhavam uma mesma orientação filosófica, historicista/dialética, humanista revolucionária e antipositivista, da qual participavam também outros pensadores marxistas como Karl Korsch ou -desconhecido na Europa- o peruano José Carlos Mariátegui.
Gramsci praticamente não conhecia os trabalhos de Lukács; e este último só descobriu o marxista italiano a partir dos anos 60. Mas, numa entrevista de julho de 1971 -pouco antes de sua morte- para a revista inglesa "New Left Review", o filósofo húngaro reconhece que ele, Karl Korsch e Antonio Gramsci haviam tentado lutar, cada um à sua maneira, contra o positivismo e o mecanicismo que o movimento comunista havia herdado da Segunda Internacional. Lukács acrescenta o seguinte comentário retrospectivo: "Gramsci era o melhor entre nós".


Michael Löwy é cientista político, professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, e autor de "Evolução Política de Lukács" (Cortez) e "Redenção e Utopia" (Companhia das Letras), entre outros.


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