|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Voga de Gramsci pertence ao passado, mas suas idéias podem inspirar o projeto de um sistema político global
A democracia cosmopolita
SERGIO PAULO ROUANET
especial para a Folha
No início dos anos 60, um conhecido filósofo marxista disse
que era preciso "gramscianizar" o
Brasil. Pouco tempo depois, seus
sonhos mais ambiciosos tinham
sido ultrapassados pela realidade.
Seria um exagero dizer que o Brasil tinha se "gramscianizado",
mas o certo é que da noite para o
dia quase toda a esquerda brasileira começou a usar expressões
como "intelectual orgânico",
"bloco histórico" e "hegemonia".
O que havia passado? Muito
simplesmente, a esquerda independente sentira a necessidade de
um marxismo mais aberto. Lukács oferecera uma alternativa estética. Não faltaram alternativas
filosóficas, como a Escola de
Frankfurt e Walter Benjamin. Havia uma alternativa política, o
maoísmo. Com sua autoridade de
ex-secretário-geral do Partido
Comunista Italiano e de pensador
que analisara todas as esferas da
cultura, Gramsci foi num certo
sentido a síntese de todas essas alternativas.
Em seus "Cadernos do Cárcere", ele mostrara que o determinismo econômico era uma doutrina grosseira, comparável à atitude do adolescente "satânico",
no período romântico, que via,
numa bela mulher, apenas o invólucro de um esqueleto. Sem a instância ideológica, dizia Gramsci, a
base econômica era inerte, desprovida de qualquer dinamismo
histórico.
Tudo isso era altamente bem-vindo para uma dissidência em
busca de legitimidade teórica. A
geração anterior tinha aprendido
com Karl Mannheim que a "intelligentsia" era um estrato social
flutuante ("eine freischwebende
Intelligenz"), sem nenhuma vinculação com grupos sociais específicos. Ora, os intelectuais se consideravam ligados aos interesses
da classe operária. Por outro lado,
o partido que supostamente defendia esses interesses tinha uma
desconfiança instintiva contra os
intelectuais, em sua quase totalidade de origem burguesa.
É nesse momento que aparece
Gramsci, dizendo que a classe
operária só poderia chegar ao poder depois que os intelectuais tivessem logrado dissolver a hegemonia existente. Graças a Gramsci, os intelectuais recebiam uma
missão, a de difundir uma nova
concepção do mundo; um cargo,
o de "funcionários da superestrutura"; e um espaço de atuação, a
sociedade civil, atravessada por
instituições como a família, a
Igreja, a escola, a universidade, o
jornalismo, o rádio e a televisão.
A voga de Gramsci pertence em
grande parte ao passado. Ela deixou apenas alguns vestígios, como a expressão "sociedade civil",
que em geral é usada hoje no Brasil por pessoas que nunca ouviram falar em Gramsci.
Esse declínio é explicável pela
redemocratização do país e pela
perda de prestígio do marxismo,
em todas as suas variantes. Preferimos hoje ver a sociedade civil
como um espaço de argumentação e debate, e não como a arena
em que se trava uma luta de morte
entre classes antagônicas. Ficamos um pouco constrangidos
com a truculência de certas metáforas militares, como a que fala
em "guerra de movimento", em
contraste com a "guerra de posição", ou a que considera o Estado
como uma "trincheira avançada"
e a sociedade civil como "uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas". E há que reconhecer hoje,
em retrospecto, que Althusser teve alguma razão, nos anos 60, em
preocupar-se com o "historicismo" de Gramsci, que o levou a
considerar "verdadeiras" todas as
concepções de mundo que se tivessem objetivado historicamente.
E, no entanto, é preciso reler
Gramsci. Sob vários aspectos sua
atualidade é indiscutível.
Veja-se, por exemplo, o que ele
disse sobre a degradação da mulher na sociedade moderna, que a
reduz à condição de "mamífero
de luxo". Para Gramsci, "a formação de um nova personalidade feminina é a questão mais importante, de caráter ético e civil, relacionada com a questão sexual.
Enquanto as mulheres não puderem atingir uma independência
genuína em relação aos homens,
uma nova maneira de refletirem
sobre si mesmas e sobre seu papel
nas relações sexuais, a questão sexual permanecerá rica em características mórbidas".
Em termos mais gerais, nenhuma teoria política que se respeite
pode ignorar certas intuições de
Gramsci, como a visão ampliada
de Estado, incluindo não somente
a sociedade política (instituições
governamentais), mas também a
sociedade civil, constituída pelas
associações ditas privadas. Essa
idéia é de grande importância na
concepção atual de democracia,
que pressupõe a livre interação
entre a esfera estatal e a social e vê
em cada órgão da sociedade civil
o lugar de um confronto entre posições contraditórias.
Mas, ao lado desses temas tradicionais, creio que o pensamento
gramsciano pode comprovar sua
vitalidade defrontando-se com
um tema novo, que ultimamente
vem merecendo a atenção de
cientistas sociais como David
Held e Daniele Archibugi: o da
"democracia cosmopolita". A democracia cosmopolita é uma forma de organização política que
complementa as democracias nacionais, estabelecendo, com a participação e o assentimento expresso dos diretamente interessados, formas transnacionais de governo e de cidadania.
Podemos reformular na linguagem de Gramsci a estrutura da democracia cosmopolita. Ela seria
composta de dois estratos: uma
"sociedade política", com instituições governamentais de âmbito
mundial, cujos integrantes seriam
eleitos diretamente pelos indivíduos, qualquer que fosse sua nacionalidade, e uma "sociedade civil", também de âmbito mundial,
composta de organizações não-governamentais, sindicatos, partidos políticos, igrejas e movimentos sociais.
Os atores que Gramsci mais valorizava -os intelectuais- desempenhariam um papel estratégico na democracia cosmopolita.
Eles atuariam na sociedade civil
universal, assim como os intelectuais de Gramsci atuavam nas sociedades civis nacionais. Estariam
também a serviço de um "Príncipe", com a diferença de que ele
não seria nem um déspota, como
no tempo de Maquiavel, nem um
partido totalitário, mas sim um
sistema democrático global. E teriam um programa, voltado para
os interesses mais gerais da humanidade: a luta contra as violações dos direitos humanos, contra as assimetrias internacionais
de riqueza e de poder, contra as
aberrações do capitalismo globalizado e contra os particularismos
selvagens que estão levando à retribalização do mundo.
Finalmente, a matriz gramsciana pode contribuir para essa reflexão com uma utopia: a de uma
nova "civiltà", que seria algo como a "idéia reguladora" da democracia cosmopolita. É o projeto,
inalcançável, mas irrenunciável,
de uma civilização planetária, que
segundo Gramsci teria "as características de massa da Reforma
protestante e do Iluminismo francês e as características de classicismo da cultura grega e do Renascimento italiano, uma cultura que
sintetize Kant e Robespierre, em
uma dialética intrínseca a um grupo social, não só francês ou alemão, mas europeu e mundial".
Sergio Paulo Rouanet é filósofo e diplomata, autor de "O Espectador Noturno", entre outros; atualmente exerce o cargo de embaixador do Brasil na República Tcheca.
Texto Anterior: Guido Liguori: Um comunista democrático Próximo Texto: Trecho Índice
|