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RELIGIÃO
O escritor Carlos Heitor Cony analisa o Evangelho escrito por São João
O apóstolo sentimental
da Redação
Leia a seguir o prefácio do escritor Carlos Heitor Cony a "O Evangelho Segundo São João", que está
sendo lançado nesta semana pela
Editora Objetiva (R$ 13,00, 116
págs., tel. 0/xx/21/556-7824), dentro da coleção "Livros da Bíblia"
(leia texto nesta página).
CARLOS HEITOR CONY
No princípio era o Verbo. Verbo
significa ao mesmo tempo palavra e ação. É pelo verbo que a
ação passa do sujeito para os predicados. Logo, verbo também significa movimento, trânsito da potência para o ato -foi assim que
Aristóteles definiu o movimento,
definindo num certo sentido a
própria vida, que é movimento
autônomo e constante.
Esses conceitos, que mais pertencem à filosofia do que à religião, estão no pórtico de dois dos
mais importantes livros da Bíblia
judaico-cristã: o Gênesis e o Evangelho segundo São João. Bem verdade que o evangelho de Marcos
começa com a palavra princípio,
mas aqui o discípulo de Paulo a
emprega apenas como sinônimo
de início, de divisão cronológica
de um relato.
Não se trata da mesma expressão usada pelo redator do Gênesis, atribuído a Moisés, e do evangelho atribuído a João, filho de
Zebedeu e irmão de Tiago. Nesses
dois casos, no princípio remete a
uma categoria filosófica, a um estágio do tempo teológico anterior
à matéria da Revelação. E bastaria
essas duas palavras para situar o
relato joânico à parte de todo o
contexto que
fundamentou,
explicou e divulgou o cristianismo.
Por isso mesmo, o quarto
evangelho considerado canônico, isto é, absorvido pelo
cânone da liturgia cristã,
não é sinóptico, como os
três que o antecederam, o de
Mateus, Marcos e Lucas. Estes três primeiros são breves
sinopses de
uma história
maravilhosa,
que pode ser
considerada
um auto pastoril cujo encanto comove a alma do crente e
nele insere a
poderosa mensagem que alteraria a história do homem
e do mundo.
Não é o caso
do último
evangelho, último não apenas na ordem
em que foram
escritos os demais, mas último
porque já absorveu as primeiras
tentativas de desagregar o poderoso núcleo que se iniciara como
uma seita dissidente do judaísmo.
E iniciava sua propagação pelo
universo banhado pelo Mediterrâneo -imensa caldeira de bolhas religiosas que emigravam de
diversas origens, dos caldeus aos
egípcios, e encontrando o seu texto final no helenismo que se infiltrara, já no tempo de Jesus, no
seio do judaísmo mais conservador.
A redação dos evangelhos permanece nebulosa até hoje, sendo
poucas as certezas e muitas as hipóteses. Evidente que foi um feliz
achado a expressão adotada pelos
condensadores dos primeiros
textos cristãos: "katá", em grego, e
"secundum", em latim. Ou seja,
relatos de acordo com quatro testemunhas consideradas idôneas,
dois deles apóstolos de Jesus (Mateus e João), participantes da vida
pública do Mestre; e dois discípulos de Pedro e Paulo, que colheram em segunda mão os ensinamentos e as lendas que formam a
biografia oficial de quem dividiria
a história em antes e depois dele.
Se há imprecisão, se existe densa neblina em torno dos três primeiros evangelhos, o quarto é o
mais complexo e, ao mesmo tempo, o mais explícito no cotidiano
daqueles três anos em que Jesus
pregou a sua mensagem.
A começar pela própria definição do tempo histórico. Os relatos
de Mateus, Marcos e Lucas, apesar de suas características próprias, situam a ação evangélica
em apenas um ano, servindo mais
ou menos de base e inspiração para o ano litúrgico cristão que obedece a uma sequência de festas
móveis e fixas, do Natal à Ressurreição, sempre no espaço de um
ano.
João ampliou esse território
temporal para os três anos que
hoje reconhecemos como os da
vida pública de Jesus. São dele as
marcações prosaicas da ação, só
possíveis a quem a presenciou como testemunha. Exemplos: Madalena enxugando com os cabelos
os pés de Jesus; o centurião romano ferido pela espada de Pedro e
que se chamava Malcus; os numerosos detalhes que acentuam a
presença do apóstolo nos diversos passos da
Paixão: "Eles
tinham acendido um braseiro
porque fazia
frio", "essa túnica era sem
costura"
-pormenor
que serve apenas para provar que João
estava no Calvário, acompanhando, ao lado de Maria, o
momento final
da Redenção.
Outra característica do texto atribuído a
João revela
uma formação
literária difícil
de ser aceita
num ex-pescador do mar da
Galiléia. É o caso da sofisticada colagem
num só personagem de uma
categoria complexa de pessoas com aspirações em comum: a samaritana representando todos os que têm
sede de justiça;
o cego de nascença representando os que necessitam da luz verdadeira; Lázaro anunciando a vitória sobre a
morte; Tomé representando os
incrédulos que precisam ver para
crer; Madalena concentrando, em
sua carne de pecadora, a interrogação sobre o significado daquele
túmulo vazio.
Se isso ocorre na parte episódica
da vida de Jesus, está em João o
embrião de uma gnose que falta
aos demais evangelistas canônicos, desprezando-se aqui os numerosos evangelhos apócrifos
que continuaram a ser escritos
antes e depois do texto joânico.
Exemplo disso é a simetria com
que ele fala na "água viva" do batismo, que substituiria o ritual
cruento da circuncisão; e no "pão
vivo", que seria a eucaristia, o corpo do próprio Cristo, cordeiro de
Deus imolado em substituição
aos animais do culto oficial do judaísmo daquela época.
O autor do quarto evangelho
não apenas presenciou, mas
atuou em diversas passagens. Foi
a ele que Jesus indicou o discípulo
que o trairia. Do alto da cruz, consagrou-o como seu substituto na
vida e no coração de Maria, sua
mãe.
Muitos criticam em João as pequenas inserções pessoais, como
"aquele a quem Jesus amava". De
seu relato, deduz-se que o narrador foi o discípulo preferido, o
confidente, o escolhido. Sem poder negar a tradição e o relato dos
evangelhos anteriores, que davam
primazia a Pedro como príncipe
dos Apóstolos e pedra sobre a
qual seria fundada a Igreja cristã,
João colocou-se como alternativa
sentimental para o cristianismo
nascente.
Seu evangelho foi escrito quando toda a primeira geração de discípulos já havia morrido, sobrando aquele que ainda em vida virou lenda, sendo confundido com
o misterioso personagem conhecido como o Presbítero João, que
vivia ora em Éfeso, ora em Patmos
-sendo que em Éfeso a crítica
moderna situa o local em que o
evangelho de João teria sido escrito; e, em Patmos, a tradição apostólica coloca o vidente que escreveria o Apocalipse, também atribuído ao apóstolo João. Coincidência ou não, assim como o
quarto evangelho fecha o relato
biográfico de Jesus, o Apocalipe
fecha o primeiro e fundamental
ciclo da Revelação cristã.
Cada evangelho tem suas características e, não raras vezes, trechos imprecisos e irrelevantes
contradições. Renan dá uma explicação para essas diferenças. Se
quatro veteranos dos exércitos
napoleônicos, 20 ou 30 anos após
a morte de seu comandante, fossem depor numa pesquisa sobre a
vida do imperador, fatalmente
cometeriam erros de cronologia e
interpretação. Um deles colocaria
Wagram (batalha travada em
1809) antes de Marengo (1800),
discordariam entre si sobre indumentária e situação, mas deles se
obteria em primeira mão um testemunho valioso para compor a
figura histórica de Bonaparte, a
força de seu carisma, o sentido geral de sua presença na época e no
cenário que ele dominou.
Outro exemplo dado por Renan
é uma analogia entre os "Diálogos" de Platão e as "Práticas" de
Xenofonte. Em ambos, existe a
preocupação de transmitir os ensinamentos de Sócrates, que tal
como Jesus nada deixou escrito.
Em Platão, há a evidente intenção
de criar uma filosofia, enquanto
em Xenofonte se percebe a singeleza de somente transmitir ensinamentos de um Mestre. Dentro
da analogia, os evangelhos sinópticos se aproximam das "Práticas"
de Xenofonte, enquanto o evangelho de João obedece ao esquema adotado por Platão em seus
"Diálogos". Até aqui, procuramos
analisar o quarto evangelho sob
considerações estritamente históricas ou literárias. Contudo os
evangelhos e demais livros do Velho e do Novo Testamento, transcendem à história e à literatura.
São livros religiosos, que falam diretamente a alma dos crentes e
neles infunde um sentimento que
se ergue sobre todos os outros impulsos do coração.
Assim, os judeus acreditam que
os livros constantes do Velho Testamento, apesar de escritos ou
atribuídos a personagens de sua
história ou de sua lenda, foram ditados pelo próprio Deus. Os cristãos, que acrescentaram o Novo
Testamento ao Velho, creditam
ao Espírito Santo a inspiração de
todos os livros que formam a Bíblia.
Sendo assim, são irrelevantes as
considerações críticas de estilo,
cronologia, lógica ou verosimilhança existentes nos relatos bíblicos. Eles são o fundamento de
uma crença que sobrevive aos séculos, às perseguições, aos usos e
abusos de alguns de seus crentes.
E é neste particular que o texto
de João ganha em profundidade o
que já havia ganho em autenticidade. Para isso, basta retornar ao
seu primeiro capítulo, àquele
enigmático intróito que é quase
uma violentação de forma e conteúdo se o compararmos ao começo dos outros evangelhos: "No
princípio era o Verbo e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era
Deus (...). Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens ( ...). E a
luz resplandece nas trevas e as trevas não a compreenderam".
Esse mesmo intróito termina
com as duas palavras-chave da
pregação cristã: Graça e Verdade.
Nada têm em comum com a graça
e a verdade da história, da lenda
ou da filosofia. Graça e Verdade
são os dois caminhos que se
abrem para o mistério da fé. E tornam o homem mais próximo de
Deus.
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