São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
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RELIGIÃO
O escritor Carlos Heitor Cony analisa o Evangelho escrito por São João
O apóstolo sentimental

da Redação

Leia a seguir o prefácio do escritor Carlos Heitor Cony a "O Evangelho Segundo São João", que está sendo lançado nesta semana pela Editora Objetiva (R$ 13,00, 116 págs., tel. 0/xx/21/556-7824), dentro da coleção "Livros da Bíblia" (leia texto nesta página).

CARLOS HEITOR CONY

No princípio era o Verbo. Verbo significa ao mesmo tempo palavra e ação. É pelo verbo que a ação passa do sujeito para os predicados. Logo, verbo também significa movimento, trânsito da potência para o ato -foi assim que Aristóteles definiu o movimento, definindo num certo sentido a própria vida, que é movimento autônomo e constante.
Esses conceitos, que mais pertencem à filosofia do que à religião, estão no pórtico de dois dos mais importantes livros da Bíblia judaico-cristã: o Gênesis e o Evangelho segundo São João. Bem verdade que o evangelho de Marcos começa com a palavra princípio, mas aqui o discípulo de Paulo a emprega apenas como sinônimo de início, de divisão cronológica de um relato.
Não se trata da mesma expressão usada pelo redator do Gênesis, atribuído a Moisés, e do evangelho atribuído a João, filho de Zebedeu e irmão de Tiago. Nesses dois casos, no princípio remete a uma categoria filosófica, a um estágio do tempo teológico anterior à matéria da Revelação. E bastaria essas duas palavras para situar o relato joânico à parte de todo o contexto que fundamentou, explicou e divulgou o cristianismo.
Por isso mesmo, o quarto evangelho considerado canônico, isto é, absorvido pelo cânone da liturgia cristã, não é sinóptico, como os três que o antecederam, o de Mateus, Marcos e Lucas. Estes três primeiros são breves sinopses de uma história maravilhosa, que pode ser considerada um auto pastoril cujo encanto comove a alma do crente e nele insere a poderosa mensagem que alteraria a história do homem e do mundo.
Não é o caso do último evangelho, último não apenas na ordem em que foram escritos os demais, mas último porque já absorveu as primeiras tentativas de desagregar o poderoso núcleo que se iniciara como uma seita dissidente do judaísmo. E iniciava sua propagação pelo universo banhado pelo Mediterrâneo -imensa caldeira de bolhas religiosas que emigravam de diversas origens, dos caldeus aos egípcios, e encontrando o seu texto final no helenismo que se infiltrara, já no tempo de Jesus, no seio do judaísmo mais conservador.
A redação dos evangelhos permanece nebulosa até hoje, sendo poucas as certezas e muitas as hipóteses. Evidente que foi um feliz achado a expressão adotada pelos condensadores dos primeiros textos cristãos: "katá", em grego, e "secundum", em latim. Ou seja, relatos de acordo com quatro testemunhas consideradas idôneas, dois deles apóstolos de Jesus (Mateus e João), participantes da vida pública do Mestre; e dois discípulos de Pedro e Paulo, que colheram em segunda mão os ensinamentos e as lendas que formam a biografia oficial de quem dividiria a história em antes e depois dele.
Se há imprecisão, se existe densa neblina em torno dos três primeiros evangelhos, o quarto é o mais complexo e, ao mesmo tempo, o mais explícito no cotidiano daqueles três anos em que Jesus pregou a sua mensagem.
A começar pela própria definição do tempo histórico. Os relatos de Mateus, Marcos e Lucas, apesar de suas características próprias, situam a ação evangélica em apenas um ano, servindo mais ou menos de base e inspiração para o ano litúrgico cristão que obedece a uma sequência de festas móveis e fixas, do Natal à Ressurreição, sempre no espaço de um ano.
João ampliou esse território temporal para os três anos que hoje reconhecemos como os da vida pública de Jesus. São dele as marcações prosaicas da ação, só possíveis a quem a presenciou como testemunha. Exemplos: Madalena enxugando com os cabelos os pés de Jesus; o centurião romano ferido pela espada de Pedro e que se chamava Malcus; os numerosos detalhes que acentuam a presença do apóstolo nos diversos passos da Paixão: "Eles tinham acendido um braseiro porque fazia frio", "essa túnica era sem costura" -pormenor que serve apenas para provar que João estava no Calvário, acompanhando, ao lado de Maria, o momento final da Redenção.
Outra característica do texto atribuído a João revela uma formação literária difícil de ser aceita num ex-pescador do mar da Galiléia. É o caso da sofisticada colagem num só personagem de uma categoria complexa de pessoas com aspirações em comum: a samaritana representando todos os que têm sede de justiça; o cego de nascença representando os que necessitam da luz verdadeira; Lázaro anunciando a vitória sobre a morte; Tomé representando os incrédulos que precisam ver para crer; Madalena concentrando, em sua carne de pecadora, a interrogação sobre o significado daquele túmulo vazio.
Se isso ocorre na parte episódica da vida de Jesus, está em João o embrião de uma gnose que falta aos demais evangelistas canônicos, desprezando-se aqui os numerosos evangelhos apócrifos que continuaram a ser escritos antes e depois do texto joânico. Exemplo disso é a simetria com que ele fala na "água viva" do batismo, que substituiria o ritual cruento da circuncisão; e no "pão vivo", que seria a eucaristia, o corpo do próprio Cristo, cordeiro de Deus imolado em substituição aos animais do culto oficial do judaísmo daquela época.
O autor do quarto evangelho não apenas presenciou, mas atuou em diversas passagens. Foi a ele que Jesus indicou o discípulo que o trairia. Do alto da cruz, consagrou-o como seu substituto na vida e no coração de Maria, sua mãe.
Muitos criticam em João as pequenas inserções pessoais, como "aquele a quem Jesus amava". De seu relato, deduz-se que o narrador foi o discípulo preferido, o confidente, o escolhido. Sem poder negar a tradição e o relato dos evangelhos anteriores, que davam primazia a Pedro como príncipe dos Apóstolos e pedra sobre a qual seria fundada a Igreja cristã, João colocou-se como alternativa sentimental para o cristianismo nascente.
Seu evangelho foi escrito quando toda a primeira geração de discípulos já havia morrido, sobrando aquele que ainda em vida virou lenda, sendo confundido com o misterioso personagem conhecido como o Presbítero João, que vivia ora em Éfeso, ora em Patmos -sendo que em Éfeso a crítica moderna situa o local em que o evangelho de João teria sido escrito; e, em Patmos, a tradição apostólica coloca o vidente que escreveria o Apocalipse, também atribuído ao apóstolo João. Coincidência ou não, assim como o quarto evangelho fecha o relato biográfico de Jesus, o Apocalipe fecha o primeiro e fundamental ciclo da Revelação cristã.
Cada evangelho tem suas características e, não raras vezes, trechos imprecisos e irrelevantes contradições. Renan dá uma explicação para essas diferenças. Se quatro veteranos dos exércitos napoleônicos, 20 ou 30 anos após a morte de seu comandante, fossem depor numa pesquisa sobre a vida do imperador, fatalmente cometeriam erros de cronologia e interpretação. Um deles colocaria Wagram (batalha travada em 1809) antes de Marengo (1800), discordariam entre si sobre indumentária e situação, mas deles se obteria em primeira mão um testemunho valioso para compor a figura histórica de Bonaparte, a força de seu carisma, o sentido geral de sua presença na época e no cenário que ele dominou.
Outro exemplo dado por Renan é uma analogia entre os "Diálogos" de Platão e as "Práticas" de Xenofonte. Em ambos, existe a preocupação de transmitir os ensinamentos de Sócrates, que tal como Jesus nada deixou escrito. Em Platão, há a evidente intenção de criar uma filosofia, enquanto em Xenofonte se percebe a singeleza de somente transmitir ensinamentos de um Mestre. Dentro da analogia, os evangelhos sinópticos se aproximam das "Práticas" de Xenofonte, enquanto o evangelho de João obedece ao esquema adotado por Platão em seus "Diálogos". Até aqui, procuramos analisar o quarto evangelho sob considerações estritamente históricas ou literárias. Contudo os evangelhos e demais livros do Velho e do Novo Testamento, transcendem à história e à literatura. São livros religiosos, que falam diretamente a alma dos crentes e neles infunde um sentimento que se ergue sobre todos os outros impulsos do coração.
Assim, os judeus acreditam que os livros constantes do Velho Testamento, apesar de escritos ou atribuídos a personagens de sua história ou de sua lenda, foram ditados pelo próprio Deus. Os cristãos, que acrescentaram o Novo Testamento ao Velho, creditam ao Espírito Santo a inspiração de todos os livros que formam a Bíblia.
Sendo assim, são irrelevantes as considerações críticas de estilo, cronologia, lógica ou verosimilhança existentes nos relatos bíblicos. Eles são o fundamento de uma crença que sobrevive aos séculos, às perseguições, aos usos e abusos de alguns de seus crentes.
E é neste particular que o texto de João ganha em profundidade o que já havia ganho em autenticidade. Para isso, basta retornar ao seu primeiro capítulo, àquele enigmático intróito que é quase uma violentação de forma e conteúdo se o compararmos ao começo dos outros evangelhos: "No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus (...). Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens ( ...). E a luz resplandece nas trevas e as trevas não a compreenderam".
Esse mesmo intróito termina com as duas palavras-chave da pregação cristã: Graça e Verdade. Nada têm em comum com a graça e a verdade da história, da lenda ou da filosofia. Graça e Verdade são os dois caminhos que se abrem para o mistério da fé. E tornam o homem mais próximo de Deus.



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