São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
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POLÍTICA
Processo judicial da carta-bomba enviada à OAB em 1980 prescreve em nove meses
Explosões escorregam para a história

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

A série é bastante longa. Começou em 19 de agosto de 1976, com a explosão, no Rio, de uma bomba na sede da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e, 34 dias depois, com o sequestro de d. Adriano Hipólito, então bispo de Nova Iguaçu (RJ). Terminaria apenas na noite de 30 de abril de 1981, com outra bomba, a do Riocentro, que mataria o sargento Guilherme do Rosário e feriria o capitão Wilson Luís Chaves Machado, dois integrantes do DOI (Destacamento de Operações de Informações), um dos braços operacionais do regime militar.
Rosário, cognominado "agente Wagner" na chamada comunidade de informações, poderia supostamente interromper com o explosivo um show em que 9.700 pessoas comemoravam o Dia do Trabalho. Ele não foi a única vítima do terrorismo da extrema direita, que procurava forçar o governo, sobretudo o do presidente João Batista Figueiredo (1979-1985), a deter o processo de retorno ao Estado de Direito.
Em 27 de agosto de 1980, também no Rio, uma carta-bomba explodiria na sede do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), matando a secretária Lyda Monteiro da Silva.
Há um curioso paradoxo nesse pedaço da recente história do Brasil. A coligação de correntes então favoráveis à democracia montou com naturalidade uma espécie de mutirão em que a mídia, partidos políticos, o Judiciário e parcela majoritária das Forças Armadas isolaram os extremistas e neutralizaram seus propósitos. Mas o mesmo esforço fracassou na punição dos culpados.
Com, por enquanto, uma exceção tardia: inquérito sobre o Riocentro, reaberto neste ano, permitiu o indiciamento do general Newton Araújo de Oliveira Cruz, na época chefe da agência central do SNI (Serviço Nacional de Informações), e do hoje coronel Wilson Machado, que passa de vítima a réu naquele episódio. Novas investigações, determinadas pelo procurador-geral da Justiça Militar, Kleber Coêlho, têm entre seus objetivos apurar a responsabilidade do general Octávio Medeiros, então ministro-chefe do SNI. Ele, tanto quanto Newton Cruz, disse em depoimento ter sido antecipadamente informado sobre a bomba do Riocentro, nada fazendo para desativá-la.
Outra exceção pode estar no atentado da OAB. O Ministério Público Federal determinou a recente reabertura do inquérito, entregue, no Rio, ao subprocurador Maurício Manso, que no entanto sai da estaca zero. Não possui como ponto de partida uma primeira investigação, mesmo se mais destinada a ocultar do que a esclarecer, como aquela sobre o Riocentro, chefiada em 1981 pelo coronel Job Lorena de Sant'Anna.
Os dois episódios, OAB e Riocentro, estão interligados pelas mesmas redes de cumplicidade entre pessoas envolvidas e de interesses para proteger os culpados. Homicídios prescrevem em 20 anos. Em nove meses o grupo que fabricou e entregou a carta-bomba que matou Lyda Monteiro não poderá mais ser legalmente punido. Em abril de 2001, estará prescrito o caso Riocentro.
Mas são fatos que têm parte de seus protagonistas ainda vivos. A Folha conversou com alguns deles. As informações que forneceram não identificam todas as peças do quebra-cabeça. Mas reforçam a impressão de que um jogo de dissimulação ainda está montado para manter a impunidade.
Vejamos o Riocentro. Em entrevista em abril último a "O Globo", Newton Cruz indicou como mentor do atentado um oficial que deixara havia pouco o DOI. Não forneceu o nome dele, mas disse que ele morreria pouco depois. O IPM concluído em outubro pelo general Sérgio Conforto diz se tratar do major Freddie Perdigão. Sua real identidade era protegida pelo cognome Aloisio Reis.
Perdigão aparece no livro "Direita Explosiva no Brasil" (1996), uma das poucas referências bibliográficas sobre o período, como frequentador de encontros clandestinos da direita paramilitar na casa do civil Hilário José Corrales, que morreu de enfisema pulmonar em 1982. Corrales, cuja participação nesse e em outros atentados foi revelada por seu irmão, Gilberto, em depoimento aos autores do livro, era marceneiro e pequeno empresário, especialista em explosivos e integrante, já antes de 1964, de grupos capazes de tudo para "lutar contra o comunismo".
Ele teria sido o autor da bomba que matou o sargento Rosário. Dentro do Puma -um automóvel esportivo, então na moda- foram retiradas duas outras bombas que não chegaram a explodir. Elas se assemelhavam a pequenos cilindros caseiros, do tamanho de um copo, segundo depoimento do tenente Cézar Wachulec, que, quando do primeiro IPM, negara a presença de outros artefatos.
A antiga questão está no entanto em saber o que o explosivo fazia no banco de passageiro do automóvel, no colo de Rosário.
Há duas hipóteses. A primeira é a de que ambos desejavam interromper com a bomba o show do Primeiro de Maio, promovido por entidades de esquerda. A segunda é a de que a explosão não foi acidental porque Rosário morreu, mas sim na medida em que Rosário foi o único morto. A morte também do capitão Wilson diluiria o fio das responsabilidades, abriria crise na área militar e permitiria que a oposição ao regime fosse responsabilizada.
Além de Medeiros e Cruz há outros oficiais, cujos nomes foram mencionados no IPM e que teriam certamente como confirmar uma ou outra hipótese. O primeiro é o hoje general da reserva Nilton Cerqueira, ex-chefe do SNI em Recife, na época comandante da PM fluminense. Ele determinou a seu Centro de Operações a substituição do policiamento que o 18º Batalhão faria ao local. Seu superior era o secretário da Segurança Pública e general, já morto, Waldyr Muniz, outro homem de confiança do general Medeiros e ex-chefe do SNI no Rio. Era, aliás, o posto que ele ocupava quando da carta-bomba à OAB.
O tenente da reserva Cézar Wachulec, interrogado pelo procurador Kleber Coêlho, disse que as portas do Riocentro foram fechadas a cadeado tão logo iniciado o show. Um blecaute ou uma bomba no ambiente ocupado pela massa compacta de pessoas geraria inevitável pânico e pisoteamento. Não se sabe de quem partiu a ordem do fechamento.
Não é tampouco claro o papel do coronel Júlio Miguel Molinas Dias, então comandante do DOI. Ele declarou em depoimento que a ordem para que seus homens fizessem uma "cobertura" (coleta de informações, no jargão interno) do Riocentro partiu do chefe da Segunda Seção do Estado-Maior do Primeiro Exército (hoje Comando Militar do Leste), então coronel Leo Frederico Cinelli, cujo paradeiro na noite do atentado está envolto no mais absoluto mistério.
Cinelli e Molinas eram próximos do general Coelho Neto, que foi para a reserva sem ser promovido por Figueiredo ao posto de general de Exército.


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