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JOSEF MENGELE
Os arquivos secretos do Anjo da Morte
Reprodução
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Mengele em foto dos anos 70, quando vivia no Brasi |
Documentos obtidos pela Folha revelam que o médico nazista jamais se arrependeu de seus crimes
ANDRÉA MICHAEL
ANA FLOR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Um conjunto de 85 documentos em alemão e um
texto manuscrito em
português, esquecidos na
Superintendência da Polícia Federal em São Paulo, revela momentos da vida do médico alemão nazista Josef Mengele, um dos criminosos de guerra mais procurados
da história, que morreu afogado
em Bertioga, litoral de São Paulo,
em 1979.
Nas cartas, fragmentos de anotações de um diário e diversos escritos, aos quais a Folha teve acesso
na íntegra e com exclusividade, em
nenhum momento Mengele expressa arrependimento pelas mortes de pelo menos 400.000 judeus
que lhe são imputadas. Trechos
desses textos inéditos são publicados nas páginas seguintes, em tradução feita pela Folha, com a assessoria de tradutores e especialistas em história e língua alemãs.
Em janeiro de 1976, Mengele registra em seu diário (um conjunto
de 13 folhas de papel pautado, com
manuscritos em caneta azul e preta) que está lendo as memórias de
Albert Speer (1905-1981), o arquiteto de Adolf Hitler. Ao relatar que
Speer mostrou-se arrependido e
reconheceu erros, Mengele afirma:
"[Ele] se diminui, mostra arrependimento, o que é lamentável".
Chefe do serviço médico do
campo de concentração de Auschwitz (Polônia) entre 1943 e 1945,
Mengele usou prisioneiros como
cobaias em experimentos pseudo-científicos, com os quais buscava
comprovar suas teses sobre a superioridade da raça ariana. Suas
cruéis práticas médicas lhe renderam a alcunha de "Anjo da Morte".
Os pertences de Mengele foram
apreendidos pela PF em 1985. A
confirmação da autoria de parte
dos textos foi possível graças a um
trabalho de perícia realizado com
base em documentos fornecidos
pelo governo americano nos quais
constavam trechos de próprio punho e assinaturas do médico.
A existência de parte dos documentos aos quais a Folha teve
acesso era conhecida. Seu conteúdo, porém, nunca havia sido divulgado, pois o foco da investigação
da PF em 1985 era reunir elementos capazes de provar que uma ossada retirada do cemitério de Embu (Grande São Paulo) era realmente do nazista. As diligências
policiais também buscavam provas para indiciar criminalmente
estrangeiros residentes no país que
por anos ocultaram das autoridades a presença de Mengele no Brasil, onde ele chegou em 1960.
O "Anjo da Morte" tornou-se
um foragido a partir de 8 de maio
de 1945, quando o governo alemão
se rendeu definitivamente. Pelos
quatro anos seguintes, Mengele viveu incógnito como um trabalhador rural na Baviera (sul da Alemanha). Desembarcou na Argentina
em 1949. Mudou-se para o Paraguai dez anos depois, quando a
Alemanha pediu sua extradição.
Nos dois países, chegou a usar documentos oficiais registrados em
seu próprio nome. A prática foi
abandonada um ano depois,
quando se transferiu para o Brasil.
Com os escritos, a PF encontrou
na casa onde Mengele morava e na
residência de um casal que ajudou
o médico a manter-se na clandestinidade, livros e objetos que sugerem o gosto por ciência, música
erudita, carpintaria e pintura.
Bem conservados, os documentos foram encontrados em meio a
um procedimento de correição
(uma espécie de auditoria) que está em curso na PF em São Paulo. O
objetivo do trabalho, chefiado pelo
delegado Euclydes Rodrigues da
Silva Filho, é verificar se há irregularidades nos cerca 10.000 inquéritos que tramitam naquela regional.
Ao conferir os pertences achados
com os listados pela PF em 1985, o
delegado Wenderson Braz Gomes,
encarregado de custodiar o achado, detectou algumas perdas, entre
as quais os óculos usados por
Mengele e uma das duas máquinas
de escrever então apreendidas.
Conforme a perícia técnica, na
máquina que restou, uma Kochs
Adlernahmaschi, modelo ABC, foram escritos mais de dez textos.
Entre eles, um de abril de 1969, no
qual o autor comenta questões
contemporâneas, como a Guerra
do Vietnã, e condena a falta de crítica das investidas israelenses contra os palestinos no Oriente Médio.
Chama a juventude alemã daqueles dias de "degenerada", porque
estaria perdendo suas tradições.
Entre os textos da máquina de
escrever que se perdeu, uma Zephir-SCM Smith Corona, foi datilografado um ensaio com críticas à
Alemanha pós-guerra e à forma
como o legado de sua geração era
desprezado pelos jovens alemães.
No documento, provavelmente
de 1973, a "indiscutível" produção
intelectual de personalidades com
ascendência judaica deve-se à sua
convivência com povos "que tinham um alto nível cultural".
A cópia carbonada de uma carta,
datilografada em 3 de setembro de
1974, traz uma menção irônica aos
judeus. No texto, destinado a um
homem chamado Wolf -provavelmente Wolfgang Gerhard, o
austríaco que cedeu (ou vendeu) a
Mengele seu nome e documentos
originais que lhe permitiram viver
incógnito no Brasil-, o autor fala
de férias que familiares passaram
em Campos do Jordão.
Diz o texto que crianças (provavelmente suas parentes) aprenderam com outras crianças que falam alemão "músicas como [...] a
bonita canção sobre os três judeus,
cujo conteúdo eu prefiro não repetir aqui pelo arrependimento dos
crimes incontestáveis que nós cometemos contra este povo "seleto'". A frase, que em alemão tem
tom irônico, parece reforçar a idéia
de que Mengele nunca deixou de
acreditar nos ideais do nazismo.
No Brasil, com a ajuda de Gerhard, Mengele refugiou-se no Estado de São Paulo. Primeiro viveu
em sítios localizados em Nova Europa e Serra Negra. Depois, mudou-se para uma casa em Caieiras
e, de lá, para a Estrada do Alvarenga, próximo à represa Billings.
Com a primeira mulher, Irene,
teve seu único filho, Rolf. Divorciado, casou-se com uma cunhada,
Martha, de quem se separou ao
deixar a Argentina. Rolf só soube
aos 16 anos que o "Tio Fritz" era na
verdade seu pai. Suas observações
sobre o fato de o pai nunca ter se
arrependido estão no livro "Mengele: a História Completa", de Gerald Posner e John Ware, de 1986.
Em 1977, com mais de 20 anos e
já sabendo da identidade do pai,
Rolf passou duas semanas na casa
de Mengele no Brasil -também
usando documentos falsos, a conselho do próprio pai. Rolf disse que
muitas vezes tentou perguntar ao
pai sobre Auschwitz. As respostas,
segundo ele, eram sempre uma
"verborragia" filosófica e pseudo-científica, em que Mengele insistia
em defender suas idéias racistas.
Em uma carta manuscrita (o
único texto em poder da PF que
pode ter sido produzido quando o
médico ainda estava escondido no
interior da Baviera, na Alemanha,
trabalhando com agricultores),
Mengele conta detalhes sobre sua
vida logo após a Segunda Guerra.
Intitulado "Fiat Lux" (Faça-se a
luz), a carta relata com arrogância
a vida de Mengele após a derrocada do nazismo. Ele ironiza a suposta limitação intelectual dos agricultores com os quais convivia.
Nascido em 16 de março de 1911,
no seio uma família de classe média alta em Günzburg, Mengele
terminou seus dias na solidão e
com dificuldades financeiras, conforme seu diário datado de 1976 e
cartas de 1972 a 1975. Deprimido,
Mengele aceitou o convite do casal
Liselotte e Wolfram Bossert para
passar alguns dias do verão de 1979
na praia de Bertioga. Ali morreu
afogado em 7 de fevereiro de 1979.
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