São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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JOSEF MENGELE

Os arquivos secretos do Anjo da Morte

Reprodução
Mengele em foto dos anos 70, quando vivia no Brasi


Documentos obtidos pela Folha revelam que o médico nazista jamais se arrependeu de seus crimes

ANDRÉA MICHAEL
ANA FLOR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Um conjunto de 85 documentos em alemão e um texto manuscrito em português, esquecidos na Superintendência da Polícia Federal em São Paulo, revela momentos da vida do médico alemão nazista Josef Mengele, um dos criminosos de guerra mais procurados da história, que morreu afogado em Bertioga, litoral de São Paulo, em 1979.
Nas cartas, fragmentos de anotações de um diário e diversos escritos, aos quais a Folha teve acesso na íntegra e com exclusividade, em nenhum momento Mengele expressa arrependimento pelas mortes de pelo menos 400.000 judeus que lhe são imputadas. Trechos desses textos inéditos são publicados nas páginas seguintes, em tradução feita pela Folha, com a assessoria de tradutores e especialistas em história e língua alemãs.
Em janeiro de 1976, Mengele registra em seu diário (um conjunto de 13 folhas de papel pautado, com manuscritos em caneta azul e preta) que está lendo as memórias de Albert Speer (1905-1981), o arquiteto de Adolf Hitler. Ao relatar que Speer mostrou-se arrependido e reconheceu erros, Mengele afirma: "[Ele] se diminui, mostra arrependimento, o que é lamentável".
Chefe do serviço médico do campo de concentração de Auschwitz (Polônia) entre 1943 e 1945, Mengele usou prisioneiros como cobaias em experimentos pseudo-científicos, com os quais buscava comprovar suas teses sobre a superioridade da raça ariana. Suas cruéis práticas médicas lhe renderam a alcunha de "Anjo da Morte".
Os pertences de Mengele foram apreendidos pela PF em 1985. A confirmação da autoria de parte dos textos foi possível graças a um trabalho de perícia realizado com base em documentos fornecidos pelo governo americano nos quais constavam trechos de próprio punho e assinaturas do médico.
A existência de parte dos documentos aos quais a Folha teve acesso era conhecida. Seu conteúdo, porém, nunca havia sido divulgado, pois o foco da investigação da PF em 1985 era reunir elementos capazes de provar que uma ossada retirada do cemitério de Embu (Grande São Paulo) era realmente do nazista. As diligências policiais também buscavam provas para indiciar criminalmente estrangeiros residentes no país que por anos ocultaram das autoridades a presença de Mengele no Brasil, onde ele chegou em 1960.
O "Anjo da Morte" tornou-se um foragido a partir de 8 de maio de 1945, quando o governo alemão se rendeu definitivamente. Pelos quatro anos seguintes, Mengele viveu incógnito como um trabalhador rural na Baviera (sul da Alemanha). Desembarcou na Argentina em 1949. Mudou-se para o Paraguai dez anos depois, quando a Alemanha pediu sua extradição. Nos dois países, chegou a usar documentos oficiais registrados em seu próprio nome. A prática foi abandonada um ano depois, quando se transferiu para o Brasil.
Com os escritos, a PF encontrou na casa onde Mengele morava e na residência de um casal que ajudou o médico a manter-se na clandestinidade, livros e objetos que sugerem o gosto por ciência, música erudita, carpintaria e pintura.
Bem conservados, os documentos foram encontrados em meio a um procedimento de correição (uma espécie de auditoria) que está em curso na PF em São Paulo. O objetivo do trabalho, chefiado pelo delegado Euclydes Rodrigues da Silva Filho, é verificar se há irregularidades nos cerca 10.000 inquéritos que tramitam naquela regional.
Ao conferir os pertences achados com os listados pela PF em 1985, o delegado Wenderson Braz Gomes, encarregado de custodiar o achado, detectou algumas perdas, entre as quais os óculos usados por Mengele e uma das duas máquinas de escrever então apreendidas.
Conforme a perícia técnica, na máquina que restou, uma Kochs Adlernahmaschi, modelo ABC, foram escritos mais de dez textos. Entre eles, um de abril de 1969, no qual o autor comenta questões contemporâneas, como a Guerra do Vietnã, e condena a falta de crítica das investidas israelenses contra os palestinos no Oriente Médio. Chama a juventude alemã daqueles dias de "degenerada", porque estaria perdendo suas tradições.
Entre os textos da máquina de escrever que se perdeu, uma Zephir-SCM Smith Corona, foi datilografado um ensaio com críticas à Alemanha pós-guerra e à forma como o legado de sua geração era desprezado pelos jovens alemães.
No documento, provavelmente de 1973, a "indiscutível" produção intelectual de personalidades com ascendência judaica deve-se à sua convivência com povos "que tinham um alto nível cultural".
A cópia carbonada de uma carta, datilografada em 3 de setembro de 1974, traz uma menção irônica aos judeus. No texto, destinado a um homem chamado Wolf -provavelmente Wolfgang Gerhard, o austríaco que cedeu (ou vendeu) a Mengele seu nome e documentos originais que lhe permitiram viver incógnito no Brasil-, o autor fala de férias que familiares passaram em Campos do Jordão.
Diz o texto que crianças (provavelmente suas parentes) aprenderam com outras crianças que falam alemão "músicas como [...] a bonita canção sobre os três judeus, cujo conteúdo eu prefiro não repetir aqui pelo arrependimento dos crimes incontestáveis que nós cometemos contra este povo "seleto'". A frase, que em alemão tem tom irônico, parece reforçar a idéia de que Mengele nunca deixou de acreditar nos ideais do nazismo.
No Brasil, com a ajuda de Gerhard, Mengele refugiou-se no Estado de São Paulo. Primeiro viveu em sítios localizados em Nova Europa e Serra Negra. Depois, mudou-se para uma casa em Caieiras e, de lá, para a Estrada do Alvarenga, próximo à represa Billings.
Com a primeira mulher, Irene, teve seu único filho, Rolf. Divorciado, casou-se com uma cunhada, Martha, de quem se separou ao deixar a Argentina. Rolf só soube aos 16 anos que o "Tio Fritz" era na verdade seu pai. Suas observações sobre o fato de o pai nunca ter se arrependido estão no livro "Mengele: a História Completa", de Gerald Posner e John Ware, de 1986.
Em 1977, com mais de 20 anos e já sabendo da identidade do pai, Rolf passou duas semanas na casa de Mengele no Brasil -também usando documentos falsos, a conselho do próprio pai. Rolf disse que muitas vezes tentou perguntar ao pai sobre Auschwitz. As respostas, segundo ele, eram sempre uma "verborragia" filosófica e pseudo-científica, em que Mengele insistia em defender suas idéias racistas.
Em uma carta manuscrita (o único texto em poder da PF que pode ter sido produzido quando o médico ainda estava escondido no interior da Baviera, na Alemanha, trabalhando com agricultores), Mengele conta detalhes sobre sua vida logo após a Segunda Guerra. Intitulado "Fiat Lux" (Faça-se a luz), a carta relata com arrogância a vida de Mengele após a derrocada do nazismo. Ele ironiza a suposta limitação intelectual dos agricultores com os quais convivia.
Nascido em 16 de março de 1911, no seio uma família de classe média alta em Günzburg, Mengele terminou seus dias na solidão e com dificuldades financeiras, conforme seu diário datado de 1976 e cartas de 1972 a 1975. Deprimido, Mengele aceitou o convite do casal Liselotte e Wolfram Bossert para passar alguns dias do verão de 1979 na praia de Bertioga. Ali morreu afogado em 7 de fevereiro de 1979.


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