|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cultura
Comemoração dos 250 anos de nascimento de Mozart, na próxima sexta,
sobrevaloriza a importância do compositor austríaco, que não revolucionou
as bases da música de seu tempo, como fizeram Bach e Beethoven
O rei da Muzak
NORMAN LEBRECHT
Estão limpando a vapor as ruas
de Viena antes do aniversário
dos 250 anos de seu nascimento, no dia 27, quando haverá excursões de peregrinos pelos
santuários do compositor. Salzburgo está distribuindo folhetos de seu
festival de verão de 2006, que apresentará todas as óperas do cânone
Köchel, dos fragmentos da infância
até "A Flauta Mágica", 22 ao todo.
Pierre Boulez, o papa do modernismo musical, quebrará 80 anos de
grave abstinência para reger um
concerto principalmente de Mozart,
uma virgem-celebridade no altar do
comércio musical.
Onde quer que você vá neste ano,
não escapará de Mozart. O aniversário de seu nascimento está sendo comemorado com sisuda eficiência
como um ímã de turistas para sua
terra natal e um chamariz para a
venda de sua volumosa produção.
As obras completas, 626, estão sendo comercializadas em dois superestojos de discos em oferta especial.
Mozart é o papel de parede da música clássica de megaloja, o compositor que mais agrada e menos ofende.
Alegre, melódico, sem dissonâncias:
de que não gostar? Sua música não
apenas é encantadora como cheia de
boas vibrações.
O Mozart Effect, um centro de recursos norte-americano que atribui
"poderes transformacionais" ao menino-prodígio austríaco, reúne evidências empíricas para mostrar que
a música de Mozart, mas não outras,
melhora o aprendizado, a memória,
o cultivo de uvas e o treinamento infantil para usar o banheiro e deveria
ser martelada nos cursos para mães
grávidas juntamente com os exercícios de respiração.
Uma "base molecular" identificada na sonata para dois pianos de
Mozart teria estimulado uma atividade cerebral excepcional em ratos
de laboratório. Como é possível discutir tais "provas"? Afinal, a ciência
confirma o que queremos acreditar
-que a arte é boa para nós e que
Mozart, em sua breve ingenuidade,
representa um ideal paradisíaco de
beleza orgânica, não poluído pela
sujeira industrial e a perda da fé. Bonito, se fosse verdade.
Competente, mas esnobe
A imagem da caixa de chocolates
de Mozart como um pequeno milagre pode receber imediatamente
cascudos na cabeça. Filho de um cínico músico da corte, Mozart foi ensinado desde o início a atrair musicalmente as graças dos ricos e poderosos. Em turnês desde os cinco
anos, o menino subia no colo de rainhas e tocava límpidos consolos para monarcas impiedosos. Reconhecendo que sua música era melhor
que a da maioria, ele se comprazia
em humilhar rivais na corte e os insultava cruamente nas cartas que
mandava para casa.
Uma obsessão coprofílica pelas
funções corporais, precisamente
mostrada na peça de Peter Shaffer e
no filme de Milos Forman, "Amadeus", era um claro sinal de desenvolvimento emocional interrompido. Seu casamento foi instável, e sua
incapacidade de controlar as grandes somas que recebia dos ricos patronos vienenses era um sintoma do
comportamento infantil que apressou sua morte precoce e seu enterro
miserável. Mozart pode ter sido um
gênio musical, mas não foi um Einstein. Os segredos do universo, procure em outro lugar.
Preenchendo os vazios
O maior teste da importância de
qualquer compositor é a medida em
que ele remodelou a arte. Mozart, é
seguro dizer, deixou de levar a música um passo adiante. Diferentemente de Bach e Haendel, que herdaram
um legado agonizante e o revitalizaram a ponto de torná-lo irreconhecível, ou de Haydn, que inventou a
forma da sonata, sem a qual a música jamais teria adquirido sua dimensão clássica, Mozart simplesmente
preencheu os espaços entre as pautas com acordes que, ele sabia, agradariam a uma platéia indulgente. Ele
foi um provedor de audição fácil,
um progenitor da muzak [som ambiente de escritórios e elevadores].
Alguns estudiosos reivindicaram
propensões revolucionárias para
Mozart, mas isso é um otimismo absurdo. Suas óperas de criados inteligentes e amos estúpidos foram concebidas por Lorenzo da Ponte, um
padre renegado, baseadas em peças
de Beaumarchais e Ariosto; e, se Mozart certa vez ousou responder ao altíssimo imperador José 2º, sabia
muito bem de onde vinha a manteiga de seu brioche matinal.
Faltava-lhe o furor de justiça que
levou Beethoven ao isolamento ou
qualquer ímpeto para mudar o
mundo. Mozart compôs uma pequena música noturna para o Antigo Regime. Ele não foi tanto reacionário quanto retrógrado, um compositor que se contentou em preservar a música em estado de servidão,
desde que o mantivesse bem abastecido de roupas com babados e plumas elegantes.
Há poucos motivos para celebrar
uma vida tão medíocre, e realmente
pouco se fez para marcar o centenário de seu nascimento, em 1856, ou o
de sua morte, em 1891. O carro alegórico das comemorações a Mozart
foi inventado pelos nazistas em 1941
e promovido pelas rivalidades do
pós-guerra em 1956, quando a
Deutsche Grammophon emergiu
das ruínas para superar os animados
selos britânicos EMI e Decca com
um primeiro ciclo de gravações das
óperas de Da Ponte.
O bicentenário da morte de Mozart, em 1991, transformou Salzburgo num pântano de mau gosto e cobiça. A estréia mundial de uma ópera kitsch, "Mozart em Nova York",
me fez olhar para o relógio a cada
cinco intermináveis minutos. A indústria fonográfica, ainda vibrante,
espalhou Mozart por todos os tapumes vazios, e um novo fenômeno, a
Classic FM, lançada em 1992 na onda Mozart, garantiu que nunca mais
estaríamos longe do próximo acorde de marzipã.
Temporada em Guantánamo
Que tanto benefício Mozart causou é discutível. Com toda a pseudociência do Mozart Effect, ainda não
vi uma vida ser elevada por "Cosi
Fan Tutte" ou um criminoso recuperado pelos "plins" de um concerto
para flauta e harpa. Enquanto dez
dias de Bach na BBC Radio 3 podem
inundar os ouvidos do mundo e
abrir as mentes para paisagens ilimitadas, o ano de Mozart parece uma
temporada na baía de Guantánamo,
sem o sol. Não haverá refúgio dos
acordes claramente resolvidos nem
escapatória daquele agradável sorriso musical.
Não procure na mídia de massa
contexto ou controle de qualidade.
Tanto a BBC como canais independentes rejeitaram qualquer perspectiva crítica sobre Mozart neste ano,
preferindo documentários adocicados que regurgitam clichês. Nessa
orgia de mediocridade, o centenário
concorrente de Dmitri Shostakovich
-um compositor de verdadeira coragem e importância histórica- está sendo relegado às margens, celebrado por poucos.
Mozart é uma ameaça ao progresso musical, uma relíquia de rituais
que já perdiam relevância em seu
próprio tempo e são insignificantes
para o nosso. Além de uma beleza
superficial e da certeza estrutural,
Mozart não tem nada a dar à mente
ou ao espírito no século 21. Deixem-no descansar. Ignorem a investida
comercial. Toquem a sinfonia "Leningrado". Escutem música que interessa.
Este texto foi publicado originalmente na
revista "La Scena Musicale".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Texto Anterior: Lançamentos Próximo Texto: Músicos falam do compositor Índice
|