São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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O GÊNIO DO NEVOEIRO

Divulgação
Cena do filme "A Longa Viagem de Volta" (1940), de John Ford, baseado em textos de Eugene O'Neill


O DRAMATURGO NORTE-AMERICANO EXPLICA POR QUE, APESAR DE SEUS INÚMEROS FRACASSOS, EUGENE O'NEILL OCUPA O PAPEL CENTRAL NO TEATRO DOS EUA

por Tony Kushner

Grande parte daquilo que um dramaturgo americano precisa saber pode ser aprendida no estudo da vida e da obra de Eugene Gladstone O'Neill. Ele leu bastante. Sua renda oscilava e nunca foi segura. Sua reputação oscilava e também não era segura. Evitava totalmente a indústria cinematográfica. Produções de obras suas o levavam ao desespero, mas continuava a escrever. Ainda cedo, deixou de ingerir bebidas pesadas e, em geral, se mantinha abstêmio, disciplinado. Fazia exercícios. Escrevia suas peças à mão. Não se afobava. Acompanhava as notícias; era politicamente corajoso. Escrevia sobre o eu e também sobre o mundo. Escrevia para o palco e também para publicação. Era teatral; era dialético. Cultivava uma imagem pública; uma pequena multidão de pessoas notáveis cruzava, em seu caminho, com o dramaturgo muito anti-social, entre elas, infelizmente para O'Neill, Charlie Chaplin, que casou com sua filha. Fez amizade com alguns críticos importantes. Casou com alguém que acreditava na sua obra. Ganhar prêmios de peso não o protegeu de ataques ferozes. Discutia com Deus. Escondia-se do mundo. Exortava a si mesmo a escrever melhor, a ir mais fundo, e assim fez. O conjunto da obra de O'Neill não é bem proporcionado. Sua luta deixou-o em frangalhos -matou-o, provavelmente-, prejudicou e marcou sua escrita: já se disse que ele consumiu toda uma vida escrevendo peças fracassadas antes de conseguir acertar a mão. Escreveu 49 peças que estabeleceram a base para o teatro sério americano e só uma peça de fato extraordinária, e importante o suficiente para justificar a demora. O'Neill sabia que "Longa Jornada de um Dia Noite Adentro" ("Long Day's Journey into Night", 1941) era sua melhor peça (muito embora tenha tentado escondê-la do público até 29 anos após sua morte e tenha afirmado com toda clareza, em seu testamento, que ela jamais deveria ser apresentada no palco: a circunstância de sua viúva ter traído a sua vontade deve ser encarada por nós como um ato de benevolência). Ele deve ter compreendido que a peça era importante como nenhuma outra coisa que escrevera, importante como poucas obras escritas para o teatro. Mas é um grande desserviço para o talento de O'Neill encarar o restante da sua obra como um mero prelúdio, uma demorada introdução para "Longa Jornada de um Dia Noite Adentro". As primeiras peças são desleixadas, por vezes constrangedoras, mas a audácia e a competência de um escritor já se fazem presentes no início canhestro. Profundamente influenciado por Gerhart Hauptmann, John Synge e Cristo, o escritor O'Neill situou-se de saída entre os pobres, os desprezados e os párias. Herdeiro de um teatro que se tornara desfibrado em razão da nostalgia e do pseudo-romance histórico, escreveu, com feiúra clamorosa e com uma espécie de júbilo carnal, sobre o aborto, a prostituição (a exemplo de Gladstone, em cuja homenagem recebeu também este nome, preocupava-se muito com as prostitutas), sobre classe, assassinato e suicídio. Poucos se empenharam desse modo com as camadas inferiores da vida americana; mas O'Neill tentou, quase desde o início da carreira, ultrapassar a empatia, a compaixão e a humilhação, rumo a algo mais, em busca de um sentido extraordinário que -ele discernia- acenava de maneira vaga para além da emoção e do intelecto. Toda aspiração desse tipo arrisca-se a redundar em poesia pretensiosa e pernóstica, em desastre dramatúrgico e estético, matéria na qual O'Neill foi pródigo. Era um escritor explorador, na tradição de Herman Melville, o mais destacado dos criadores de mitos náuticos americanos, para quem, como O'Neill, o oceano é uma vasta incubadora de metáforas. A prece de Melville, em "Mardi", poderia ser do próprio O'Neill: "Anseios fervorosos criam o seu próprio futuro fantasmagórico e o supõem presente. Portanto, se, após tais transes aterradores e extenuantes, o veredicto sentencia que o futuro de ouro não foi alcançado, assim mesmo, em uma busca temerária como essa, é melhor afundar em abismos insondáveis do que flutuar em baixios vulgares; e, se hei de naufragar, dêem-me, ó Deuses, um naufrágio completo".

Trauma
Como para Melville, o tempo vivido a bordo de um navio em mar aberto foi para O'Neill o equivalente de um trauma de nascimento; revisitou-o várias vezes em suas peças, como um lugar para explorar "intimidades elevadas". "Intimidades elevadas" é O'Neill citando Melville, em um projeto não realizado de introdução para "White Buildings" (1926), a primeira coletânea de poemas de Hart Crane, outro escritor em cuja vida e arte o mar tem uma significação fatal (O'Neill foi um defensor precoce da poesia de Crane).
A maturidade de O'Neill como escritor é anunciada com suas peças de um ato sobre o mar, "In the Zone", "Ile", "The Long Voyage Home" -cujo título foi usado no excelente filme de John Ford, estrelado por John Wayne, que inclui trechos de todas as peças sobre o mar e "The Moon of the Caribees".
"Beyond the Horizon" (1920), sua primeira peça longa digna de nota, tragicamente situada longe do mar, veio quase imediatamente a seguir e, logo depois, O'Neill escreveu uma comédia boa, mas sentimental, "Chris Christofersen", e depois a reescreveu: "Anna Christie". "Anna" parece ter convencido O'Neill a romper de forma decisiva com a dramaturgia convencional e com a leveza exigida como tributo em troca do sucesso teatral; ele jamais o tentou novamente.
Na sua peça seguinte, "The Emperor Jones", O'Neill pedia ao seu público que atentasse para a raça e para a herança da escravidão na história americana. Quando repetiu esse pedido, quatro anos depois, em "All God's Chillun Got Wings" [Todos os Filhos de Deus Têm Asas, 1924], uma peça sobre um casal formado por um homem e uma mulher de raças distintas, a Prefeitura de Nova York recorreu a meios legais para pôr fim à montagem, assustada pelo espetáculo de uma atriz branca que beijava a mão de Paul Robeson. As autoridades municipais apelaram para a estratégia de proibir as crianças de representar papéis na produção; mas as cenas em que as crianças apareciam passaram a ser lidas em voz alta por um componente do elenco, e a peça continuou em cartaz. Não se trata de peças políticas de um autor progressista nem de criações de uma consciência racional, cética e liberal, embora tais peças sejam profundamente políticas, como toda a obra de O'Neill.


O verdadeiro antepassado de O'Neill não foi Shakespeare, por mais que ele o admirasse e por mais que tivesse escrito poesia quando jovem, mas sim Ésquilo


A exemplo de muitos escritores importantes, O'Neill desconfiava da política; encarava-a como um pântano raso em que a pessoa se arrisca a atolar, a caminho do entendimento pleno e trágico. Mas sua desconfiança, seu gênio pessimista e suas ambições estéticas não o levaram a tornar-se reacionário. O'Neill foi um malogrado liberal de esquerda, com um profundo respeito pelo êxito da democracia americana e, paradoxalmente, com uma afinidade igualmente profunda pelo anarquismo; no que concerne à militância, preferia conservar-se como um observador destroçado pela culpa. Seu credo e seu enigma são formulados por Larry, o decadente membro da organização Trabalhadores Industriais do Mundo, na peça "The Iceman Cometh" ["A Vinda do Homem do Gelo"]: "Fui obrigado a admitir, ao fim de 30 anos de dedicação à Causa, que eu não sirvo para isso. Nasci condenado a ser uma dessas pessoas que precisam ver todos os lados de uma questão. Quando se vive sob essa maldição, as questões se multiplicam para nós até que, no fim, só existem perguntas, sem nenhuma resposta. Como prova a história, para obter o sucesso mundano em qualquer coisa, sobretudo na revolução, é preciso usar antolhos, como um cavalo, e só ver o que está à frente. Também é preciso ver que isto é só preto e aquilo é só branco". E, mais adiante, porque O'Neill jamais perdia uma chance de reiterar: "Deus, não há esperança! Nunca serei um sucesso na tribuna -ou em parte alguma! A vida é demais para mim! Serei um fraco e um tolo que olha com piedade para os dois lados de tudo até o dia em que eu morrer! Que esse dia venha logo!". Após "All God's Chillun", veio "Desire under the Elms" ["Desejo sob os Olmos"] (seus títulos eram ótimos!). Deu início a uma nova exploração de Nietzsche, leu Freud e começou a fazer psicanálise. Sondou o expressionismo em "The Hairy Ape and Dynamo" ["O Macaco Peludo e o Dínamo"] (em que Freud e Nietzsche são imprudentemente misturados). Escreveu peças bizarras, como "Lazarus Laughed" ["Lázaro Riu"] e "Marco Millions" ["Marco Milhão"]; e uma peça a um só tempo bizarra e bela, "Strange Interlude" ["Estranho Interlúdio"]. Isso forma, talvez, o ponto culminante do que pode agora ser compreendido como um período de intensa luta contra as limitações estreitas da forma teatral, sua punitiva economia de tempo, de dinheiro e de atenção do público. Dessa luta decorreu uma rendição a essa economia e também um domínio novo e mais profundo sobre ela; talvez, também, embora eu não tenha como prová-lo, exista em sua obra uma nova consciência da importância do seu projeto, a criação de uma identidade dramática nacional. O que emergiu ao fim desse fluxo foi "Mourning Becomes Electra" ["Electra Enlutada"] (1931). Essa peça é uma declarada tentativa de ligar as origens dos EUA às origens da civilização ocidental e da arte dramática. O verdadeiro antepassado de O'Neill não foi Shakespeare, por mais que ele o admirasse e por mais que tivesse escrito poesia quando jovem, mas sim Ésquilo. O'Neill situou a peça na região do país mais próxima daquilo que esse filho de um ator itinerante poderia chamar de terra natal: a Nova Inglaterra, mas a sua versão pessoal da Nova Inglaterra, embotada e exaurida. Local das primeiras colônias européias nos EUA e cenário de "Beyond the Horizon" e de "Desire under the Elms", a Nova Inglaterra segundo O'Neill tornou-se um patriarcado sanguinolento, uma terra da graça perdida e do pecado puritano, revivida e tingida de rubro, nas peças, graças à enérgica apostasia de O'Neill à fé católica de seus pais. Foi, provavelmente, um lugar especial nos EUA, talvez o único para onde alguém em busca do sentido da origem poderia voltar sua atenção.

Louca e assombrosa
Na época em que escrevia "Mourning", O'Neill também concebeu e começou a desenvolver um ciclo de nove peças -e, depois, de 11- que acompanhavam o destino de uma família da Nova Inglaterra no decorrer de três séculos, "The Tale of Possessors Self-Dispossessed". Essas peças abrangeriam desde o período da guerra pré-revolucionária até o presente, desde o mar até o litoral de ambas as costas, desde a colônia até o império, desde o pastoral até o urbano, a espoliação da natureza e o colapso da indústria.
Um ramo da família, os Melody, seria composto de imigrantes oriundos da Irlanda, que chegaram ao novo país no fim do século 18, uma família irlandesa como a da linhagem materna de O'Neill, os Quinlan, irlandeses tradicionais, com raízes relativamente amplas nos EUA, e não camponeses refugiados da Grande Fome em meados e no final do século 19, como os menos felizes e menos prósperos O'Neill.
Do ciclo, só resta uma peça completa, o capítulo posterior à Guerra Revolucionária, "A Touch of Poet"; e o que seria o capítulo seguinte, a inacabada, louca e assombrosa "More Stately Mansions" ["A Mais Sólida Mansão"] -com 277 páginas na edição da Library of America, muito mais longa até do que "Strange Interlude" (189 páginas). Outro ciclo de peças pode ter sido terminado em rascunhos, mas foi destruído já no fim da vida de O'Neill, num episódio de queima de manuscritos diante da lareira de um quarto de hotel, que parece fazer parte de uma reconciliação tardia com a sua perturbada terceira mulher, Carlotta Monterey.
"More Stately Mansions" pode ter assustado O'Neill e tê-lo dissuadido de continuar a trabalhar no ciclo, ou a enormidade do projeto como um todo pode tê-lo assustado. "Mansions" revela a verdadeira natureza do ciclo; é uma obra sem limites e enciclopédica, uma invenção monstruosa como "A Divina Comédia", a segunda parte de "Fausto", "A Comédia Humana", "Em Busca do Tempo Perdido", "O Homem sem Qualidades" -que só pode ser abandonada, jamais completada, uma ficção onívora que devora o seu criador.
Ou talvez simplesmente a ataxia não diagnosticada que o afligia desde o início da idade adulta, com tremores das mãos e dos braços e pernas (talvez o mal de Parkinson), estivesse piorando. O'Neill se exauriu escrevendo praticamente sem interrupção, dia e noite, por anos, sofrendo intensamente a cada peça, com a sensação de que não escreveria se não estivesse sofrendo; só repousava quando seu corpo sucumbia, debilitado como se achava pela malária, pela tuberculose e pela gastrite. A morte o rondava; seu pai, sua mãe e seu irmão haviam morrido, amigos próximos haviam morrido, e a Segunda Guerra Mundial havia começado. Talvez essa mortandade, numa doentia guinada para o interior, tenha redirecionado O'Neill para longe de seus pujantes épicos nacionais, no rumo de um outro horizonte, interno, e de um encontro ressuscitador com os mortos.
Ou talvez a saúde tenha pouco a ver com o caso e ele simplesmente tenha visto uma bifurcação na estrada e deixado o caminho que vinha seguindo, em troca de outro mais promissor. Em "Mansions", pode-se discernir uma tensão feroz entre as ambições históricas e políticas de O'Neill e um desejo irrefreável de avançar o mais que pudesse no labirinto do inconsciente, explorar a ambivalência e as suas conseqüências, que vieram à tona como um de seus temas principais. Esse é, de fato, o dilema central diante de Simon Harford, o protagonista da peça, e "Mansions" se destrói da maneira mais espetacular e estranhamente satisfatória, na tentativa de chegar a alguma solução dessa antinomia. A solução pode ter sido o abandono do ciclo, o autodespojamento do seu proprietário.
O'Neill escreveu "The Iceman Cometh", "Longa Jornada de um Dia Noite Adentro", "Hughie" e "A Moon for the Misbegotten" ["Uma Lua para o Bastardo"]. É o único dramaturgo americano e, a rigor, um dos poucos autores que concluíram sua vida de escritor com o melhor da obra. Dramatizou o bar de párias onde ele, aos 23 anos, tentou se suicidar e de onde emergiu para se tornar escritor. Dramatizou a inevitabilidade da ambivalência e o seu custo, numa peça de novo situada na Nova Inglaterra, não mais um drama de origem e de posse, mas sim de imigrantes, de não possuir, de não pertencer; escreveu uma tragédia em que algo magnífico e insubstituível é destruído e em que, graças a essa aniquilação, algo novo é criado. E, como muitos assinalaram, enterrou o seu irmão, para quem compôs uma missa réquiem. Seu irmão, que lhe havia revelado uma verdade insuportável, talvez tenha sido a pessoa cuja perda mais o fez sofrer e a quem foi mais difícil perdoar.
Após "Moon", O'Neill estava acabado. Não conseguia segurar uma caneta. Atravessou o seu tipo peculiar de calvário -e é impossível escrever a seu respeito sem mencionar Cristo, o dramaturgo insiste mais ou menos nisso. Um escritor, em geral, termina capturado por sua própria versão ficcional do mundo, e O'Neill praticamente escreveu sobre si mesmo no papel de Jesus (seu pai, décadas antes, provavelmente sugerira isso, ao representar o papel de Jesus -e muito bem).
"A maioria das peças modernas está interessada no relacionamento entre o homem e o homem, mas isso não me interessa em absoluto. Só estou interessado no relacionamento entre o homem e Deus", escreveu ele. Um de seus filhos morreu por causa de bebida. O outro, aquele que ele mais amava, batizado com o seu nome, cometeu suicídio. O'Neill tratava sua filha com rispidez, deserdou-a e recusou-se a falar com ela depois que casou com Chaplin. Talvez, incapaz de suportar a espera da morte natural da filha, ele tenha sentido a necessidade de encontrar um meio de matar Oona; afinal, ela foi quase o único parente que não morreu antes dele. Como indica Stephen A. Black no livro "Eugene O'Neill -Beyond Mourning Tragedy" [Yale University Press, 1999], o dramaturgo se manteve num estado de luto durante quase toda a vida adulta, assediado pela perda.
Sua reputação desceu ao nível mais baixo. Seduzido a voltar à produção teatral em virtude de aflições financeiras, com "Iceman" e "Moon" ele viveu tempo bastante para se ver tratado com incompreensão e condescendência e para ver sua obra -não só "Iceman", mas a obra de toda a sua vida- desdenhada. Ficou em silêncio, isolou-se, murchou e morreu. E levantou-se de novo, quase imediatamente! Em conseqüência da nova produção de "Iceman", feita por Jose Quintero, com Jason Robards Jr., em conseqüência da desobediência de Carlota ao testamento do seu marido e à montagem de "Longa Jornada de um Dia", primeiro na Suécia e depois, sem mais cessar, em vários países do mundo.
"Para platéias habituadas ao virtuosismo untuoso de George Kaufman, George Abbot, Lillian Hellman, Odets, Saroyan", escreveu Mary McCarthy sobre O'Neill, na estréia de "Iceman" na Broadway, em 1946, "o retorno de um dramaturgo que, para ser franca, não consegue escrever é uma ocasião solene e sentimental".
Em sua crítica sobre "Moon", McCarthy identifica "um tom de harmonia de barbearia em toda a obra de O'Neill", e infelizmente sabemos do que ela está falando. Limitada como era, McCarthy emitiu o mais preciso sumário de acusação de um advogado do diabo no julgamento contra O'Neill: "Ele pertence àquele grupo de autores americanos, que inclui Farrell e Dreiser, cuja escolha da vocação foi uma espécie de catástrofe triunfal; nenhum desses homens possuía o menor ouvido para a palavra, para a frase, para a fala, para o parágrafo; todos eles, no entanto, por assim dizer, implementaram à força a carreira que impuseram a si mesmos, mediante uma implacável vigilância do seu ritmo de trabalho. O que produzem é difícil elogiar ou condenar; como se pode julgar a grande e lógica sinfonia de um músico que não tem nenhum ouvido musical? Flácida nos detalhes, a obra desses escritores tem contudo uma boa solidez de estrutura; eles conduzem uma idéia ou um tema passo a passo, até sua conclusão brutal, com a mesma força terrível que aplicaram para se manter de pé em sua profissão (...)".
É de desejar que O'Neill nunca tenha lido isso. O juízo de McCarthy é letal porque é absolutamente verdadeiro. Para cada grande escritor deve surgir um grande crítico, nascido para preencher o espaço negativo delineado pelo perfil desse escritor; deve ser um sinal de grandeza o fato de um escritor impelir um crítico a tais alturas de sagacidade exasperada. E toda realização importante ressoa com tanto mais esplendor quanto mais perto se encontra da "débâcle"; algumas dessas realizações incorporam suas "débâcles".
Se a ambição compartilhada de toda arte é a salvação e a ressurreição, toda arte fracassa; os mortos continuam mortos; Hermione é apenas quase convincente, e, se Hickey fracassa, bem, Orfeu também fracassou.
Embora McCarthy tenha indiciado as peças com perfeição, fracassou redondamente no tocante a compreendê-las. O que ela, por equívoco, toma por curiosamente antiquado nos diálogos de O'Neill é, na minha opinião, uma poesia de cena, que alterca, retruca, irrita e esfola. Eis uma amostragem, desde as primeiras até a última peça: "Ela não veste essas fatiotas fuleiras"; "veja o que esse aldrabão filho de aldrabão vai arranjar"; "se você pudesse ver sua cara feia, com esse seu narigão vermelho todo torcido para cima num nó, você nunca derramaria uma única lágrima pelo resto da sua vida"; "coisas esquisitas, memórias. Nunca fui de me amolar muito com isso"; "ele partiu para o Oeste com uma bala atravessada no coração"; "absinto? É para dopar. Você vai ficar doidinho da cachola, seu francelho"; "e é nisso que ela me enche a paciência, esse seu jeito metido a besta! Ela pensa que é um docinho de coco".
Há um conselho dirigido aos atores: "Parem de representar. Detesto canastrões pataqueiros". E o meu favorito: "Você pode até ter sorte, mas no fim se estrepa. Em Altoona, peguei mal-de-franga numa piranha" ("mal-de-franga" é sífilis). Mesmo as orientações de cena, implacáveis e maçantes para atores e diretores, um subproduto da desconfiança de O'Neill de atores e diretores e também da amplitude da leitura que ele almejava para as suas peças, são muitas vezes brilhantes: "O rosto dele deve ter sido brutal e sôfrego, mas o tempo e o uísque o dissolveram numa simpática e parasítica falta de caráter". Há autozombaria, quando o dramaturgo faz uma caricatura do seu vício herdado de declamar poesia pomposamente, situação em que a zombaria pode ser interpretada como uma reflexão carinhosa e desalentada sobre a relação envergonhada dos EUA com a língua inglesa. Este trecho, de "Ah Wilderness!" ["A Juventude Não É Tudo"]: "Sua namorada não gosta de poesia. Ela é burrinha. Mas eu sou do tipo que devora poesia. Meus sobrenomes são Kelly e Sheets! Eu quero é mais! Sabe "A Lagosta e o Sabichão'? Sem brincadeira, é de arrebentar. Ouvi um cara recitar isso na Poli's. Talvez este maluco aqui saiba. Não sabe, garoto?".
E há também poesia lírica, sobretudo quando o dramaturgo faz um personagem recordar o tempo vivido no mar. Este trecho é de "Hairy Ape"; a fala é de Paddy, outrora marinheiro, agora foguista no inferno da casa de máquinas de um luxuoso navio a vapor: "Ah, singrar rumo ao sul novamente com a força dos ventos alísios a impelir o navio com firmeza para a frente através das noites e dos dias! A toda vela, noites e dias! Noites em que a chama da esteira do navio flamejava como fogo, em que o céu ardia e cintilava de estrelas. Ou talvez na lua cheia. Então se via o navio cruzando a noite cinzenta, as velas esticadas no topo do mastro, todas em prata e em branco, nem um som no tombadilho, e nós entregues aos devaneios, até acreditarmos que não se tratava de um navio real, aquele onde estávamos, mas de um navio-fantasma, como o Holandês Voador, que dizem percorrer os mares para sempre, sem jamais tocar um porto. E havia também os dias. Um sol tépido nos tombadilhos limpos. O sol que aquecia nosso sangue, e o vento sobre milhas de oceano verde brilhante, como bebida forte para nossos pulmões. Trabalho -ah, e trabalho pesado-, mas quem se importava? Claro, trabalhávamos a céu aberto e era trabalho de perícia e de audácia. E, com o dia findo, no turno de repouso, fumando meu cachimbo muito à vontade, o vigia talvez anunciasse terra à vista e veríamos as montanhas da América do Sul com o fogo vermelho do sol poente a tingir seus cumes brancos e as nuvens que flutuavam à sua volta! Yerra, de que adianta falar? Isto é o murmúrio de um homem morto".
Se não formos Mary McCarthy, que sacrificou a generosidade e o prazer sensual em favor de uma afiada acusação judicial, se lermos essa passagem em voz alta ou ouvirmos sua leitura em voz alta, ouviremos seu poder rítmico e rude. Não posso defender para O'Neill o título de grande escritor, mas apenas o de um dos mais importantes dramaturgos; pois essas duas atividades, escrever e compor peças, não são a mesma coisa, e a obra de O'Neill deixa isso mais claro do que a de qualquer outro. Como escrita, suas peças são constrangedoras pelo que têm de toscas, de piegas e de bizarramente repetitivas (Brecht, em seu diário, escreveu: "As peças americanas são escritas para pessoas em trânsito, por pessoas que se perderam"). O'Neill escreveu sua própria defesa e esboçou a natureza da sua obra, melhor do que qualquer outro, em um dos trechos mais conhecidos de "Longa Jornada de um Dia". A peça trata de atores, do teatro, é um manifesto teatral bem como uma lápide tumular ou uma ressurreição ou o drama de família definitivo ou a denúncia de um mercado ou um drama decisivo sobre a vida imigrante americana ou o que for. Edmund, que é Eugene O'Neill -"Edmund" é uma referência a "Lear" e também o nome do irmão de O'Neill que morreu criança-, está falando com o pai, que, enquanto os dois distraidamente se revezam nas cartadas de um jogo de baralho, não cessa de fazer a importantíssima pergunta: "De quem é a vez?".
"Edmund (dá um sorriso torto) - Foi um grande engano eu nascer homem, eu teria me saído muito melhor como gaivota ou peixe. Do jeito que estão as coisas, serei sempre um estrangeiro que nunca se sente em casa, que nada quer, de verdade, nem é querido, de verdade, que jamais pode pertencer a nada, que há de estar sempre um pouco apaixonado pela morte!
Tyrone (fita-o, impressionado) - Sim, você tem os atributos de um poeta, sem dúvida. (Em seguida, num protesto embaraçado) Mas é loucura mórbida essa conversa a respeito de não ser querido e de amar a morte.
Edmund (sarcástico) - Os atributos de um poeta. Não, receio que eu seja como um sujeito que está sempre mendigando cigarros. Ele não tem nem sequer os atributos. Só tem o hábito. Eu não conseguiria chegar perto do que tentei dizer a você agora há pouco. Eu apenas gaguejo. E é isso o que jamais farei de melhor, na vida. Quero dizer, se eu viver. Bem, pelo menos será realismo fiel. Gaguejar é a eloqüência nativa entre nós, o povo do nevoeiro."
Muito antes, numa peça chamada "Fog" ("Nevoeiro"), O'Neill anotou uma orientação de cena que poderia ser usada agora para descrever o seu papel central no teatro americano, sua presença inevitável em nossa imaginação dramática, posição alcançada em virtude da sua identificação da nossa "eloqüência nativa": "O gênio do nevoeiro [...] paira sobre tudo".

Tony Kushner, 47, é dramaturgo norte-americano, autor de "Anjos na América" -peça que lhe valeu o Prêmio Pulitzer- "A Bright Room Called Day and Slavs!" e diversas adaptações teatrais. Este texto foi publicado originalmente no "Times Literary Supplement".
Tradução de Rubens Figueiredo.


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