São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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Ponto de fuga

Com a matéria da fantasia


Há três ficções diferentes em "Coraline e o Mundo Secreto": a primeira simula realidade; a segunda forma imaginação; a terceira inventa pesadelos

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Não a chamem de Caroline. É Coraline. Ela não gosta que errem seu nome. Papai e mamãe trabalham muito. Escrevem sobre jardinagem, não têm tempo para ela. A casa é grande, velha, espessa de mistérios. Acabaram de se mudar. Os vizinhos são esquisitos.
Há três ficções diferentes em "Coraline e o Mundo Secreto", desenho animado de longa metragem, dirigido por Henry Selick. A primeira simula realidade. A segunda forma imaginações. A terceira, dilatada e assustadora, inventa pesadelos. Elas se juntam para tecer uma só presença, impalpável como a seda dos sonhos.
Só vá ver em terceira dimensão, com os óculos grandões distribuídos na entrada. Os efeitos não são supérfluos. "Coraline" depende da profundidade ilusória e das formas invadindo a sala. Criam, diante dos nossos olhos, a vertigem de um espaço que se alarga, se contrai, se desfaz, se reconstitui.
No final o céu que Van Gogh pintou em sua "Noite Estrelada", aquela de Saint-Rémy, na qual os astros giram em turbilhões, inspirou o diretor para uma apoteose. Mas o filme não oferece belezas fáceis. Suas formas ignoram a elegância corriqueira para exibir clara firmeza, posta ao serviço de uma invenção desbridada.
Coraline é uma bisneta da Alice no país das maravilhas, ou no dos espelhos. É, ainda, irmã dos filmes de terror. Clássica fraternidade: os grandes contos infantis são sempre aterradores. Eles ensinam o medo, sob forma fictícia e artística, para as crianças.

Fantasmas
Mario Bava, mestre do horror italiano, disse que se inspirou na "Branca de Neve" de Disney para criar uma das sequências de grande suspense em "A Maldição do Demônio" (1960).
O fascismo coibira os filmes de terror (e também os livros policiais... Ah! Essa gente que quer consertar o mundo proibindo coisas!), e sua imaginação de jovem cinéfilo foi alimentar-se onde pôde. Branca de Neve perdida numa floresta noturna, na qual cada ramo exala ameaça e agarra-se em suas roupas, é um modelo de angústia visual.
"Coraline" aumenta pouco a pouco as incertezas, as inseguranças, e acende pavores infantis: a ameaça latente de abandono, a fragilidade pela dependência e pela ignorância de tantos mistérios adultos. Desperta comichões de análise psicanalítica: no mundo duplo dos sonhos que a menina enfrenta, todos têm botões cosidos no rosto ao invés de olhos.
A mãe é o supremo vampiro, aranha metálica com patas de agulha. O pai, fraco e dominado, derrete como cera amolecida. Mas é um filme que basta a si próprio, driblando qualquer esquema interpretativo.

Round
Grande safra. Bons e excelentes, os novos filmes se sucedem. Um está bem no alto: "O Lutador", de Darren Aronofsky. Mickey Rourke se confunde com o personagem. O rosto verdadeiro, amassado, inchado, é autêntica máscara de carne.
A violência feroz do vale-tudo não passa de espetáculo. As lutas são fajutas, arranjadas nos vestiários. Puro teatro, como é teatro o erotismo nas danças da prostituta, caracterizada pela formidável Marisa Tomei.
Contudo, mais o filme avança, mais a fronteira entre espetáculo e vivido se desfaz.

Ringue
A brutalidade de "O Lutador" é superficial. Conta, de fato, a delicadeza dos afetos. Surge desde o início, na cena cavalheiresca em que os dois lutadores conversam, corteses e respeitosos, sobre os golpes do próximo combate.
Incerto percurso, o do lutador. Aos poucos, porém, uma iniciação progride e, enfim, o caminho se delineia.


jorgecoli@uol.com.br


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