|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
Com a matéria da fantasia
Há três ficções diferentes em "Coraline e o Mundo Secreto": a primeira simula realidade; a segunda forma imaginação; a terceira inventa pesadelos
|
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Não a chamem de Caroline. É Coraline. Ela não
gosta que errem seu
nome. Papai e mamãe trabalham muito. Escrevem sobre
jardinagem, não têm tempo para ela. A casa é grande, velha,
espessa de mistérios. Acabaram de se mudar. Os vizinhos
são esquisitos.
Há três ficções diferentes em
"Coraline e o Mundo Secreto",
desenho animado de longa metragem, dirigido por Henry Selick. A primeira simula realidade. A segunda forma imaginações. A terceira, dilatada e assustadora, inventa pesadelos.
Elas se juntam para tecer
uma só presença, impalpável
como a seda dos sonhos.
Só vá ver em terceira dimensão, com os óculos grandões
distribuídos na entrada. Os
efeitos não são supérfluos. "Coraline" depende da profundidade ilusória e das formas invadindo a sala. Criam, diante dos
nossos olhos, a vertigem de um
espaço que se alarga, se contrai,
se desfaz, se reconstitui.
No final o céu que Van Gogh
pintou em sua "Noite Estrelada", aquela de Saint-Rémy, na
qual os astros giram em turbilhões, inspirou o diretor para
uma apoteose. Mas o filme não
oferece belezas fáceis. Suas formas ignoram a elegância corriqueira para exibir clara firmeza, posta ao serviço de uma invenção desbridada.
Coraline é uma bisneta da
Alice no país das maravilhas,
ou no dos espelhos. É, ainda, irmã dos filmes de terror. Clássica fraternidade: os grandes
contos infantis são sempre
aterradores. Eles ensinam o
medo, sob forma fictícia e artística, para as crianças.
Fantasmas
Mario Bava, mestre do horror italiano, disse que se inspirou na "Branca de Neve" de
Disney para criar uma das sequências de grande suspense
em "A Maldição do Demônio"
(1960).
O fascismo coibira os filmes
de terror (e também os livros
policiais... Ah! Essa gente que
quer consertar o mundo proibindo coisas!), e sua imaginação de jovem cinéfilo foi alimentar-se onde pôde. Branca
de Neve perdida numa floresta
noturna, na qual cada ramo
exala ameaça e agarra-se em
suas roupas, é um modelo de
angústia visual.
"Coraline" aumenta pouco a
pouco as incertezas, as inseguranças, e acende pavores infantis: a ameaça latente de abandono, a fragilidade pela dependência e pela ignorância de tantos mistérios adultos.
Desperta comichões de análise psicanalítica: no mundo
duplo dos sonhos que a menina
enfrenta, todos têm botões cosidos no rosto ao invés de olhos.
A mãe é o supremo vampiro,
aranha metálica com patas de
agulha. O pai, fraco e dominado, derrete como cera amolecida. Mas é um filme que basta a
si próprio, driblando qualquer
esquema interpretativo.
Round
Grande safra. Bons e excelentes, os novos filmes se sucedem. Um está bem no alto: "O
Lutador", de Darren Aronofsky. Mickey Rourke se confunde com o personagem. O
rosto verdadeiro, amassado, inchado, é autêntica máscara de
carne.
A violência feroz do vale-tudo não passa de espetáculo. As
lutas são fajutas, arranjadas
nos vestiários. Puro teatro, como é teatro o erotismo nas danças da prostituta, caracterizada
pela formidável Marisa Tomei.
Contudo, mais o filme avança,
mais a fronteira entre espetáculo e vivido se desfaz.
Ringue
A brutalidade de "O Lutador"
é superficial. Conta, de fato, a
delicadeza dos afetos. Surge
desde o início, na cena cavalheiresca em que os dois lutadores conversam, corteses e
respeitosos, sobre os golpes do
próximo combate.
Incerto percurso, o do lutador. Aos poucos, porém, uma
iniciação progride e, enfim, o
caminho se delineia.
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os Dez+ Próximo Texto: Biblioteca Básica: As Brasas Índice
|