São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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Juro contra Deus


Usurário era visto na Idade Média como alguém que roubava à própria divindade, mas crescimento econômico moderou a condenação

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Na vida contemporânea, sobretudo nos tempos atuais, em que a economia navega como bêbada em mares encapelados, alguns fatores econômicos ganharam relevância central. Juro e inflação, par de casados em convivência difícil, são um bom exemplo.
Aqui, lido com o juro, variável presente nas decisões governamentais e na vida cotidiana de cada um de nós. Até que ponto é possível derrubar o juro sem incorrer no risco da volta do dragão da maldade? Até que ponto baixá-lo gradativamente aumenta as possibilidades de uma temida recessão? São perguntas cujas respostas, nem sempre bem aceitas, estão nas mãos do nosso Banco Central.
Para o cidadão, as perguntas são outras, tendo a ver com o cálculo de juros estratosféricos que uma compra em parcelas impõe, quase sem guardar referência com as oscilações para baixo da taxa Selic [taxa básica usada como referência pela política monetária].
Nem sempre, ao longo do tempo, a cobrança de juros foi encarada como algo natural.
Faço uma longa viagem retrospectiva para me fixar na época em que a igreja, na Europa ocidental, condenava a usura, e na entrada em cena do capitalismo comercial.
Tomo por base o significativo livro de um dos maiores medievalistas franceses, Jacques le Goff, "A Bolsa e a Vida" [ed. Civilização Brasileira].
De saída, Le Goff lembra uma época, anterior ao século 12, em que o usurário encarnava o Nosferatu do pré-capitalismo, vampiro duplamente assustador da sociedade cristã, pois a figura desse sugador de dinheiro se associava à do judeu deicida, profanador da hóstia e infanticida.
O usurário é um ladrão particular, mesmo que não perturbe a ordem pública. Seu roubo é especialmente odioso porque ele rouba a Deus, ousando tomar o tempo que a Ele pertence, ao vender o tempo entre o momento do empréstimo e o do reembolso, com o acréscimo dos juros.
Assim dizia, entre tantos outros, Thomas Chobham, teólogo inglês, estudioso da questão da penitência, que viveu na passagem do século 12 para o século 13.

Admissão do crédito
Depois, chegou o momento de transição, quando a realidade dos fatos, ou seja, o desenvolvimento do capitalismo comercial, entrou em tensão com os preceitos religiosos. Como nota Le Goff, aí se encontra um nítido exemplo de como obstáculos ideológicos podem retardar o ímpeto de novas relações econômicas, embora estas acabem, afinal, por prevalecer.
Aparentemente, estou me situando no terreno de uma história remota, que não guarda nenhuma relação com o presente. Mas não é bem assim. Ninguém imaginaria, é claro, aproximar o universo econômico e ideológico dos séculos 12 e 13 ao de nossos dias.
Não obstante, há certas ressonâncias curiosas. Quando o impulso econômico levou a um enorme crescimento da circulação monetária, algumas formas de crédito foram admitidas, ao mesmo tempo em que antigas proibições foram reforçadas e reprimidas com mais intensidade.
Uma dessas proibições nos fala de perto: a condenação do empréstimo para consumo, com juros embutidos no valor do empréstimo.
Ela lembra as nossas famosas prestações "sem juros", artifício hoje corrente para atrair o ávido comprador. Ora, se, na Alta Idade Média, essa prática era proibida, é porque, obviamente, ela já existia.

Medida justa
Dentre as várias ressalvas que os teólogos e canonistas foram encontrando para admitir a cobrança do juro, duas se destacam. A primeira delas é a admissão da cobrança de juros moderados, a partir de meados do século 13, quando o ideal de "justa medida" se expande, reforçado, por exemplo, pela palavra de são Luís, louvando sua aplicação em todas as coisas: no modo de vestir, na mesa, na devoção, na guerra.
Se dermos um salto vertiginoso ao Brasil de nossos dias, sem perder o fio condutor, vamos encontrar no texto original da Constituição de 1988 um preceito que limitava a cobrança de juros reais a 12% ao ano e definia a infração à regra como crime de usura [a limitação foi excluída por emenda constitucional].
Não é demais afirmar que esse preceito se baseava, entre outros aspectos, no princípio da moderação, na recusa daquilo que se toma como excesso. A segunda ressalva refere-se a algo que também nos é familiar e importa na introdução de um elemento novo na sociedade cristã ocidental -o reconhecimento do risco econômico.
Ele se concretiza no perigo de perder o capital emprestado, seja por causa da insolvência inesperada do devedor, seja por sua má-fé.
Desse modo, a incerteza justifica a percepção dos juros, tanto mais altos quanto maiores os riscos. Não raciocinam do mesmo modo, guardadas as seculares diferenças, os agentes financeiros de nossos dias, quando justificam a cobrança de juros elevadíssimos como decorrência do nível alto de inadimplência?
As ressalvas acima apontadas indicam um abrandamento na forma de a igreja tratar a usura. Nos tempos de auge da condenação dessa prática, se o usurário quisesse evitar a danação eterna, só tinha uma saída: restituir o dinheiro mal adquirido e apagar sua culpa por meio da confissão.
Mas as autoridades eclesiásticas -igreja- encontraram uma saída para situações intermediárias, ao criar a figura do purgatório, situado entre as benesses do céu e os tormentos do inferno.
Como ninguém fica nessa instância para sempre, quem sabe alguns praticantes da usura, depois de muito sacrifício penitencial, tenham chegado, finalmente, ao reino dos céus, numa história de inesperado final feliz.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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