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Juro contra Deus
Usurário era visto na Idade Média como alguém
que roubava à própria divindade, mas crescimento econômico moderou a condenação
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BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Na vida contemporânea, sobretudo
nos tempos atuais,
em que a economia navega como
bêbada em mares encapelados,
alguns fatores econômicos ganharam relevância central.
Juro e inflação, par de casados em convivência difícil, são
um bom exemplo.
Aqui, lido com o juro, variável presente nas decisões governamentais e na vida cotidiana de cada um de nós. Até que
ponto é possível derrubar o juro sem incorrer no risco da volta do dragão da maldade? Até
que ponto baixá-lo gradativamente aumenta as possibilidades de uma temida recessão?
São perguntas cujas respostas, nem sempre bem aceitas,
estão nas mãos do nosso Banco
Central.
Para o cidadão, as perguntas
são outras, tendo a ver com o
cálculo de juros estratosféricos
que uma compra em parcelas
impõe, quase sem guardar referência com as oscilações para
baixo da taxa Selic [taxa básica
usada como referência pela política monetária].
Nem sempre, ao longo do
tempo, a cobrança de juros foi
encarada como algo natural.
Faço uma longa viagem retrospectiva para me fixar na
época em que a igreja, na Europa ocidental, condenava a usura, e na entrada em cena do capitalismo comercial.
Tomo por base o significativo livro de um dos maiores medievalistas franceses, Jacques
le Goff, "A Bolsa e a Vida" [ed.
Civilização Brasileira].
De saída, Le Goff lembra
uma época, anterior ao século
12, em que o usurário encarnava o Nosferatu do pré-capitalismo, vampiro duplamente assustador da sociedade cristã,
pois a figura desse sugador de
dinheiro se associava à do judeu deicida, profanador da
hóstia e infanticida.
O usurário é um ladrão particular, mesmo que não perturbe
a ordem pública. Seu roubo é
especialmente odioso porque
ele rouba a Deus, ousando tomar o tempo que a Ele pertence, ao vender o tempo entre o
momento do empréstimo e o
do reembolso, com o acréscimo
dos juros.
Assim dizia, entre tantos outros, Thomas Chobham, teólogo inglês, estudioso da questão
da penitência, que viveu na
passagem do século 12 para o
século 13.
Admissão do crédito
Depois, chegou o momento
de transição, quando a realidade dos fatos, ou seja, o desenvolvimento do capitalismo comercial, entrou em tensão com
os preceitos religiosos.
Como nota Le Goff, aí se encontra um nítido exemplo de
como obstáculos ideológicos
podem retardar o ímpeto de
novas relações econômicas,
embora estas acabem, afinal,
por prevalecer.
Aparentemente, estou me situando no terreno de uma história remota, que não guarda
nenhuma relação com o presente. Mas não é bem assim.
Ninguém imaginaria, é claro,
aproximar o universo econômico e ideológico dos séculos
12 e 13 ao de nossos dias.
Não obstante, há certas ressonâncias curiosas.
Quando o impulso econômico levou a um enorme crescimento da circulação monetária, algumas formas de crédito
foram admitidas, ao mesmo
tempo em que antigas proibições foram reforçadas e reprimidas com mais intensidade.
Uma dessas proibições nos
fala de perto: a condenação do
empréstimo para consumo,
com juros embutidos no valor
do empréstimo.
Ela lembra as nossas famosas
prestações "sem juros", artifício hoje corrente para atrair o
ávido comprador. Ora, se, na
Alta Idade Média, essa prática
era proibida, é porque, obviamente, ela já existia.
Medida justa
Dentre as várias ressalvas
que os teólogos e canonistas foram encontrando para admitir
a cobrança do juro, duas se destacam. A primeira delas é a admissão da cobrança de juros
moderados, a partir de meados
do século 13, quando o ideal de
"justa medida" se expande, reforçado, por exemplo, pela palavra de são Luís, louvando sua
aplicação em todas as coisas: no
modo de vestir, na mesa, na devoção, na guerra.
Se dermos um salto vertiginoso ao Brasil de nossos dias,
sem perder o fio condutor, vamos encontrar no texto original da Constituição de 1988 um
preceito que limitava a cobrança de juros reais a 12% ao ano e
definia a infração à regra como
crime de usura [a limitação foi
excluída por emenda constitucional].
Não é demais afirmar que esse preceito se baseava, entre
outros aspectos, no princípio
da moderação, na recusa daquilo que se toma como excesso.
A segunda ressalva refere-se
a algo que também nos é familiar e importa na introdução de
um elemento novo na sociedade cristã ocidental -o reconhecimento do risco econômico.
Ele se concretiza no perigo
de perder o capital emprestado,
seja por causa da insolvência
inesperada do devedor, seja por
sua má-fé.
Desse modo, a incerteza justifica a percepção dos juros,
tanto mais altos quanto maiores os riscos. Não raciocinam
do mesmo modo, guardadas as
seculares diferenças, os agentes financeiros de nossos dias,
quando justificam a cobrança
de juros elevadíssimos como
decorrência do nível alto de
inadimplência?
As ressalvas acima apontadas
indicam um abrandamento na
forma de a igreja tratar a usura.
Nos tempos de auge da condenação dessa prática, se o usurário quisesse evitar a danação
eterna, só tinha uma saída: restituir o dinheiro mal adquirido
e apagar sua culpa por meio da
confissão.
Mas as autoridades eclesiásticas -igreja- encontraram
uma saída para situações intermediárias, ao criar a figura do
purgatório, situado entre as benesses do céu e os tormentos do
inferno.
Como ninguém fica nessa
instância para sempre, quem
sabe alguns praticantes da usura, depois de muito sacrifício
penitencial, tenham chegado,
finalmente, ao reino dos céus,
numa história de inesperado final feliz.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras).
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