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O reino da contradição
EXCOMUNHÃO DA EQUIPE QUE REALIZOU ABORTO EM MENINA VIOLENTADA
EM PERNAMBUCO REDUZ AUTORIDADE MORAL DA IGREJA BRASILEIRA
O Brasil poderia ter um papel central na busca de soluções para o problema
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KENNETH SERBIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
A excomunhão de
profissionais de
saúde que ajudaram a menina de
nove anos de Pernambuco que sofreu abuso sexual a se submeter a um aborto
de fetos gêmeos, realizado no
dia 4 passado, revelou a contradição da Igreja Católica ao tentar orientar o mundo nas questões sexuais e reprodutivas.
Quando enfatizou publicamente a exclusão automática
dos profissionais de saúde sob
a lei canônica, dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo de
Olinda e Recife, foi completamente contra os sentimentos
cristãos de compaixão expressos pelos brasileiros, desde os
cidadãos comuns até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Poderes de Roma
E finalmente confirmados
pelo próprio Vaticano, que raramente critica seus bispos de
maneira tão direta quanto o fez
na edição de 14/3 de "L'Osservatore Romano".
Mas a questão é que o Vaticano permitiu e até instigou muitos outros atos semelhantes de
insensibilidade de dom José
desde que ele chegou a Olinda e
Recife em 1985.
Os poderes de Roma o escolheram expressamente para
desmantelar o trabalho e combater as ideias do maior e mais
amado bispo moderno do Brasil, dom Hélder Câmara [1909-99], fundador da Igreja dos Pobres [movimento lançado por
religiosos participantes do
Concílio Vaticano 2º, em 1962]
e um líder de grande sensibilidade em relação aos oprimidos.
Dom José sobreviveu no cargo em meio a rumores de sua
demissão e avaliações de muitos na igreja brasileira de que
era inadequado para o posto
-um simples burocrata jurídico que havia subido na instituição por causa de sua lealdade à
hierarquia.
Ironicamente, as declarações
de Cardoso Sobrinho sobre o
aborto vieram no rastro das comemorações do centésimo aniversário do nascimento de dom
Hélder.
Por um lado, o episódio ilustra como a igreja defende a vida
em todas as frentes, opondo-se
a guerras injustas, tortura, pena de morte, assassinato, eutanásia, pesquisa de células-tronco e aborto.
Memória da pedofilia
Por outro, demonstra grande
inflexibilidade baseada na lógica do poder em uma imensa
instituição dirigida por (pelo
menos nominalmente) homens solteiros incapazes de
compreender visceralmente os
desafios e as responsabilidades
de uma família.
Nas trincheiras da vida cotidiana no Brasil e na ausência de
reformas, mulheres de todas as
idades e origens continuarão
fazendo aborto pelas inúmeras
razões que levaram as mulheres a praticá-lo em todas as
eras.
Mesmo nos Estados Unidos,
onde o acesso à educação sexual e ao controle natal e as
rendas são maiores, as mulheres continuam abortando em
altos índices.
Uma contradição ainda mais
profunda ficou aparente nas
reações de dom José e da hierarquia ao fato de que a menina
de Pernambuco foi vítima de
um padrasto pedófilo que abusava dela desde os seis anos.
A igreja brasileira encobriu sua
própria história de tolerância a
padres pedófilos e outros incidentes de abuso sexual clerical.
Mais uma vez os bispos do
Brasil falharam em admitir essa realidade, em contraste com
a igreja americana, que pagou
bilhões de dólares em indenizações às vítimas e estabeleceu
programas especiais para combater o problema.
Essa atitude reduz a autoridade moral da igreja brasileira
sobre o aborto e sobre outras
questões.
Com o tema "Fraternidade e
Segurança Pública", a Campanha da Fraternidade [da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, CNBB] deste ano menciona o problema dos pedófilos
não religiosos no Brasil, mas
não entra em detalhes.
De fato, quando viajei ao Brasil em agosto passado para o
lançamento de meu livro "Padres, Celibato e Conflito Social" (Companhia das Letras),
que detalha o problema de sacerdotes que cometem abusos
sexuais, não pude apresentar
meu trabalho na sede da CNBB,
em Brasília, por causa da excessiva sensibilidade que cerca a
questão sexual.
E isso apesar de que um dos
objetivos do meu livro fosse
ajudar a igreja a refletir sobre o
problema de maneira histórica
e objetiva.
Silêncio conspícuo
Resta ver como a igreja brasileira irá reagir a essa última
manifestação da questão do
aborto.
É interessante notar que, como maior país católico do mundo, o Brasil poderia ter um papel central na busca de soluções criativas para o problema.
Depois de iniciar o segundo
governo Lula com um apelo
histórico para o debate sobre o
aborto e insistindo no tema durante a visita do papa Bento 16,
em 2007, o ministro da Saúde,
José Gomes Temporão, havia
estado conspicuamente silencioso até sua repreensão pública a dom José.
Lula e Temporão poderiam
usar a indignação moral sentida por muitos brasileiros nesse
incidente para relançar a ideia
de um diálogo nacional sobre o
aborto.
Liderança
No diálogo com a igreja e outros grupos religiosos -desde
organizações de adoção até a
Igreja Universal do Reino de
Deus, que defende o direito da
mulher a escolher-, o Brasil
poderia criar uma legislação e
programas únicos e assumir
uma posição de liderança na
América Latina e no mundo.
Todos, incluindo dom José e
os demais bispos brasileiros,
poderiam começar assistindo a
um filme da jovem diretora
brasileira Carla Gallo ["O Aborto dos Outros", 2008], que retrata o caso de uma adolescente
que engravida em consequência de um estupro e decide recorrer ao aborto legal.
Como o caso da menina de
Pernambuco, o filme demonstra que a realidade está longe
das páginas da lei canônica e
como é terrível a decisão de
abortar.
KENNETH SERBIN é professor de história na
Universidade de San Diego (Califórnia) e pesquisa a história do aborto no Brasil.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
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