São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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O reino da contradição

EXCOMUNHÃO DA EQUIPE QUE REALIZOU ABORTO EM MENINA VIOLENTADA EM PERNAMBUCO REDUZ AUTORIDADE MORAL DA IGREJA BRASILEIRA


O Brasil poderia ter um papel central na busca de soluções para o problema

KENNETH SERBIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A excomunhão de profissionais de saúde que ajudaram a menina de nove anos de Pernambuco que sofreu abuso sexual a se submeter a um aborto de fetos gêmeos, realizado no dia 4 passado, revelou a contradição da Igreja Católica ao tentar orientar o mundo nas questões sexuais e reprodutivas.
Quando enfatizou publicamente a exclusão automática dos profissionais de saúde sob a lei canônica, dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo de Olinda e Recife, foi completamente contra os sentimentos cristãos de compaixão expressos pelos brasileiros, desde os cidadãos comuns até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Poderes de Roma
E finalmente confirmados pelo próprio Vaticano, que raramente critica seus bispos de maneira tão direta quanto o fez na edição de 14/3 de "L'Osservatore Romano".
Mas a questão é que o Vaticano permitiu e até instigou muitos outros atos semelhantes de insensibilidade de dom José desde que ele chegou a Olinda e Recife em 1985.
Os poderes de Roma o escolheram expressamente para desmantelar o trabalho e combater as ideias do maior e mais amado bispo moderno do Brasil, dom Hélder Câmara [1909-99], fundador da Igreja dos Pobres [movimento lançado por religiosos participantes do Concílio Vaticano 2º, em 1962] e um líder de grande sensibilidade em relação aos oprimidos.
Dom José sobreviveu no cargo em meio a rumores de sua demissão e avaliações de muitos na igreja brasileira de que era inadequado para o posto -um simples burocrata jurídico que havia subido na instituição por causa de sua lealdade à hierarquia.
Ironicamente, as declarações de Cardoso Sobrinho sobre o aborto vieram no rastro das comemorações do centésimo aniversário do nascimento de dom Hélder.
Por um lado, o episódio ilustra como a igreja defende a vida em todas as frentes, opondo-se a guerras injustas, tortura, pena de morte, assassinato, eutanásia, pesquisa de células-tronco e aborto.

Memória da pedofilia
Por outro, demonstra grande inflexibilidade baseada na lógica do poder em uma imensa instituição dirigida por (pelo menos nominalmente) homens solteiros incapazes de compreender visceralmente os desafios e as responsabilidades de uma família.
Nas trincheiras da vida cotidiana no Brasil e na ausência de reformas, mulheres de todas as idades e origens continuarão fazendo aborto pelas inúmeras razões que levaram as mulheres a praticá-lo em todas as eras.
Mesmo nos Estados Unidos, onde o acesso à educação sexual e ao controle natal e as rendas são maiores, as mulheres continuam abortando em altos índices.
Uma contradição ainda mais profunda ficou aparente nas reações de dom José e da hierarquia ao fato de que a menina de Pernambuco foi vítima de um padrasto pedófilo que abusava dela desde os seis anos.
A igreja brasileira encobriu sua própria história de tolerância a padres pedófilos e outros incidentes de abuso sexual clerical.
Mais uma vez os bispos do Brasil falharam em admitir essa realidade, em contraste com a igreja americana, que pagou bilhões de dólares em indenizações às vítimas e estabeleceu programas especiais para combater o problema. Essa atitude reduz a autoridade moral da igreja brasileira sobre o aborto e sobre outras questões.
Com o tema "Fraternidade e Segurança Pública", a Campanha da Fraternidade [da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB] deste ano menciona o problema dos pedófilos não religiosos no Brasil, mas não entra em detalhes.
De fato, quando viajei ao Brasil em agosto passado para o lançamento de meu livro "Padres, Celibato e Conflito Social" (Companhia das Letras), que detalha o problema de sacerdotes que cometem abusos sexuais, não pude apresentar meu trabalho na sede da CNBB, em Brasília, por causa da excessiva sensibilidade que cerca a questão sexual.
E isso apesar de que um dos objetivos do meu livro fosse ajudar a igreja a refletir sobre o problema de maneira histórica e objetiva.

Silêncio conspícuo
Resta ver como a igreja brasileira irá reagir a essa última manifestação da questão do aborto.
É interessante notar que, como maior país católico do mundo, o Brasil poderia ter um papel central na busca de soluções criativas para o problema. Depois de iniciar o segundo governo Lula com um apelo histórico para o debate sobre o aborto e insistindo no tema durante a visita do papa Bento 16, em 2007, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, havia estado conspicuamente silencioso até sua repreensão pública a dom José.
Lula e Temporão poderiam usar a indignação moral sentida por muitos brasileiros nesse incidente para relançar a ideia de um diálogo nacional sobre o aborto.

Liderança
No diálogo com a igreja e outros grupos religiosos -desde organizações de adoção até a Igreja Universal do Reino de Deus, que defende o direito da mulher a escolher-, o Brasil poderia criar uma legislação e programas únicos e assumir uma posição de liderança na América Latina e no mundo.
Todos, incluindo dom José e os demais bispos brasileiros, poderiam começar assistindo a um filme da jovem diretora brasileira Carla Gallo ["O Aborto dos Outros", 2008], que retrata o caso de uma adolescente que engravida em consequência de um estupro e decide recorrer ao aborto legal.
Como o caso da menina de Pernambuco, o filme demonstra que a realidade está longe das páginas da lei canônica e como é terrível a decisão de abortar.


KENNETH SERBIN é professor de história na Universidade de San Diego (Califórnia) e pesquisa a história do aborto no Brasil.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


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