São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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RELATO DE UM NOVO MUNDO

RAFAEL CARIELLO
ENVIADO ESPECIAL A MATO GROSSO

Eu estudei no Rio, em 72, e conheci esse livro. Tudo surgiu do contato com os nambiquaras. É bom você ir lá conhecer. É um lugar muito bom, você espia longe, azul. E é um lugar sagrado."
Acabou de anoitecer na aldeia nambiquara mais próxima da cidade de Comodoro, no oeste de Mato Grosso, próximo à fronteira com Rondônia. Tudo escuro. Diante de uma das seis casas de madeira em que moram ao todo cerca de 30 pessoas, Oriovaldo Nambiquara, 50, diz conhecer os "Tristes Trópicos".
Sem camisa, usando óculos e calças jeans, ele quer saber o que o repórter e o fotógrafo fazem ali. Vários índios se reúnem ao redor dos brancos e conversam em nambiquara.
Há uma aldeia maior próxima a Campos Novos, posto telegráfico instalado no início do século 20 pelo marechal Rondon (1865-1958), onde, em 1938, Lévi-Strauss fez contato com a etnia. É lá -cerca de 100 km ao norte- o "lugar sagrado" de onde será possível ver as montanhas em que vivem os espíritos dos antepassados de Oriovaldo. No local, hoje uma reserva indígena, vivem pouco mais de 70 kithaulus, subgrupo dos nambiquaras.
Ao todo, eles contam cerca de 1.200 índios, que vivem em pequenas aldeias de dez a 80 habitantes, espalhados pelo oeste de Mato Grasso e sul de Rondônia.
Nas fotos da época que a expedição de Lévi-Strauss os encontrou, aparecem nus, caminhando pelo cerrado, geralmente em fila, mulheres carregando grandes balaios de fibra vegetal nas costas. Após meia hora de visita à aldeia, quando ligam um gerador de luz e três lâmpadas, que, num fio, atravessam o espaço entre as casas, acendem, é possível ver um dos cestos largado perto de uma porta.
Dentro, um espaço vazio, chão batido de terra e pequenos estrados de madeira que, próximos ao chão, servem como cama. Há porta, mas não janela. Os índios usam bermudas e chinelos. A maioria sem camisa. Quase nenhum enfeite, a não ser, eventualmente, um colar de contas pretas feitas da casca do coco.
Fazem longos trajetos pelo mato? "Só de carro", responde Oriovaldo. "Antigamente, éramos como escravos. Muitos sofriam bastante. Só existiam panelas de barro, machados de pedra", ele diz. "Hoje é fácil."
Há algo, porém, que não mudou desde a narrativa de Lévi-Strauss, que fala do contato de missões religiosas (protestantes e jesuítas) com os nambiquaras. Embora os católicos tenham recuado, a presença evangélica permanece contínua ao longo do século 20.


A religiosidade nambiquara, combatida pelos evangélicos, não desaparece

"Eu estudei oito anos em escola dominical de crente. Parei porque quero fumar", diz Oriovaldo. "O nambiquara nunca se converte inteiramente", ele diz. Aneel Nambiquara, 22, que acompanha a conversa, concorda. "Quando estava com 9, 10 anos, conheci a palavra de Deus", conta. "Mas é sempre assim", comenta, confirmando o que disse Oriovaldo.
Antes da partida, uma fogueira é acesa, e agora quase todos estão à sua volta. O carro começa a se afastar. Dá para ouvir o gerador sendo desligado, enquanto as lâmpadas se apagam.

Soja à espreita
Onde era o posto telegráfico de Campos Novos agora é só um descampado. Os nambiquaras raramente passam por lá, embora ele possa ser visto do alto do platô onde fica a aldeia kithaulu, no posto indígena de mesmo nome, na fronteira entre Mato Grosso e Rondônia.
No centro da aldeia, entre as casas de madeira simples, o cemitério: um espaço de areia fina muito limpa e bem cuidada, sem as pedrinhas e sujeiras de toda parte, cercado por uma pequena demarcação de grama, em formato retangular.
Alguns quilômetros ao sul dali, Carlos Sul Kithaulu, 42, vai de carro pela estrada que liga Comodoro (MT) a Vilhena (RO). À sua direita já começa o território indígena. À esquerda, máquinas colheitadeiras e plantações de soja a perder de vista.
Faz a viagem de volta à sua aldeia depois de três semanas afastado, "para esfriar a cabeça, esquecer um pouco" a morte do irmão. Carlos explica que tanto o irmão, Eval, 20, quanto seu filho, Akibel, 19, estudaram numa escola protestante perto de Cuiabá, onde concluíram o equivalente ao primeiro grau em 2004.
Apesar do trabalho de décadas dos missionários -um casal do grupo americano SIL (Summer Institute of Linguistics), Barbara e Menno Kroeker, trabalhou por 30 anos com o grupo e traduziu o "Novo Testamento" para a sua língua antes de voltar para os EUA, no ano passado-, dizem os índios que a religiosidade nambiquara, combatida pelos evangélicos, não desaparece.
Pecado, diz Carlos Sul, "não serve nem para urubu comer". Ele explica desgostar da idéia, que considera forte demais e "não tem a ver com esse mundo". Afirma aprovar que os índios aproveitem a educação fornecida pelos professores protestantes para não "beber e cair, igual pessoa da rua, igual pobre".
Saindo da estrada de asfalto, após uma hora de caminhonete com tração nas quatro rodas em trilhas de terra, chegamos à aldeia. Roberto Kithaulu, 34, e alguns outros poucos índios vêm recepcionar os visitantes. Muitos olham de longe, outros nem isso, mulheres e meninas riem, envergonhadas.
Roberto conta que havia quatro semanas Eval saiu com outros índios para caçar queixadas no mato e voltou mudado. "Ficou quieto, sem conversar. Ele ia vomitar, mas não conseguia. Acho que foi atacado por algum mal." Eval não tinha mulher, não chegou a casar. "Eu acredito que foi feitiço, de maldade contra ele", revela, finalmente, Carlos Sul.

Casas de madeira
Os índios estão terminando de almoçar. Fazem fila no centro da aldeia para tirarem uma porção de macarrão e arroz de grandes panelas. Sob algumas árvores, os homens preparam enfeites de tecido colorido, arcos e flechas.
Os arcos e flechas são para vender na cidade. Ainda caçam, mas agora com espingardas de chumbo. Nos dias de festa, usarão os enfeites, cocares, pena no nariz. Há bodes e cabras, cerca de 40 deles, passeando entre as casas. Lévi-Strauss descrevia o ano dos nambiquaras dividido em duas partes: na maior delas, por sete meses, caminhavam no mato caçando e catando comida. Agora fazem pequenas expedições de alguns dias ou semanas, quando levam os grandes cestos nas costas.
Passam a maior parte do tempo na aldeia e dormem nas casas de madeira semelhantes às dos brancos -com telhados de zinco em "v" invertido sobre uma espécie de caixote alongado, com ripas de madeira ajuntadas por parede. Há também uma espécie de casa sagrada, única oca que parece um iglu de palha entre as residências de madeira.
De tempos em tempos -a cada cinco anos, diz Nataniel, 17- desmontam a própria casa, em que moram até três gerações, e constroem outra, com madeira nova, a uns dez metros do local original.

"Na nossa cultura, se ficar no mesmo lugar, o raio pode cair de novo"

Há um grande espaço entre as casas. Cada uma fica a 20, 30 metros da outra. O conjunto total parece desorganizado, não há um pátio ou praça central, mas vários deles. Um pouco mais centralizado, no alto do terreno, fica o cemitério. Próximo dele, como também dentro de cada casa, há uma grande bacia, à qual os nambiquaras recorrem várias vezes ao dia. Tiram de lá, com uma caneca, uma bebida a que chamam chicha -não é fermentada, mas um suco, com água, açúcar e alguma fruta diluída: caju, abacaxi.
"Já são bem dependentes da alimentação do branco", afirma Luiz Antonio Murakami, 47, funcionário da Funai e chefe do Posto Indígena Kithaulu. "Têm as roças tradicionais deles, mas sem o açúcar e o sal eles não ficam."
O dinheiro para o macarrão, o arroz, sal e, principalmente, açúcar sai das aposentadorias rurais que os mais velhos da aldeia recebem do governo. Num grupo de 70 índios, há nove "aposentados". Usam os recursos também para comprar munição e roupas. A roça é de mandioca e milho, principalmente. "Qualquer coisa que eles vão comprar, primeiro é o açúcar", conta Murakami. Segundo o chefe do posto, os nambiquaras "são bem primitivos". "Para o tempo de pacificação que têm, a cultura deles permanece."
Carlos Sul mostra sobre o impecável chão de areia fina do cemitério a tora de madeira que marca o enterro de seu irmão. "Se não cuidamos do cemitério, aquele espírito pode prejudicar alguém. Com mordida de cobra, acidente. Temos que cuidar, respeitando o que já foi", explica Johnattas, outro irmão de Carlos.
"O espiritismo deles é um negócio sério", comenta Murakami. "Tenho 23 anos de Funai. Desde que eu conheço essa região, tem missão protestante." Carlos Sul, cujo nome é uma homenagem a um missionário, explica assim as mudanças econômicas e materiais e o que diz ser a permanência da religiosidade nambiquara: "A minoria da cultura mudou. A maioria, não".
Ele mostra em casa um "Novo Testamento" traduzido para o nambiquara e afirma: "Eu tenho que acreditar na minha religião primeiro, aí posso acreditar na segunda religião. Como é que vou largar da minha, que já vem lá da raiz?".

Organizações protestantes
"Na nossa cultura, se ficar no mesmo lugar, o raio pode cair de novo." Aélcio Nambiquara, 22, é o professor da aldeia. Dá aulas de alfabetização, em português e na própria língua, para dez alunos, entre 6 e 8 anos, e outros oito, adolescentes.
Dentro de casa, vestindo uma camisa branca, explica como em 1979 os kithaulus se mudaram do antigo posto telegráfico para o alto do platô. "A aldeia foi o lugar onde ele descobriu [os nambiquaras]", afirma, em referência ao contato de Lévi-Strauss com seus antepassados. "Um raio muito forte destruiu uma casa e quase pegou uma criança. Aí, mudaram para cá."
Por quatro anos, Aélcio estudou no Instituto Bíblico Ami, na Chapada dos Guimarães, mantido por organizações protestantes brasileiras e americanas. O objetivo da escola-internato é tornar os próprios índios propagadores da fé cristã. Ele diz que os missionários sempre ajudaram muito os índios, "conseguindo remédios, dentista, limpeza".
O professor se declara "cristão". Quase todo mês, afirma, alguém de fora vem realizar um "culto" e celebrar com os kithaulus. Não importa, Aélcio diz. Ele crê -"acho que por causa do conhecimento, eu estudei"-, mas a maioria das pessoas ali, não.
Há uma explicação que o jovem professor fornece enquanto outros nambiquaras vão se juntando a ele, talvez porque tenha começado a chover lá fora, fazendo um círculo em torno do repórter. "O povo nambiquara... Nem sempre no que você disser eles vão acreditar. São um povo... liberal -não sei se essa palavra encaixa bem", começa, e aponta para o caderno do repórter. "Você agora está escrevendo. Eles não vão acreditar que vai sair no jornal. É uma cultura desconfiada. Você faz uma coisa, e eles vão dar risada na sua cara."
Segundo Aélcio, eles também "riem", de certa maneira, do que os missionários dizem. "Eles desconfiam de todo mundo; riem das pessoas diferentes", afirma. Pergunto aos que estão em volta se acreditam em mim, na história de repórter que contei. "Claro", um deles responde, e ri -e todos riem muito.
Aélcio continua: "Nambiquara brinca bastante. E um não acredita no que o outro diz". Há um caso especial de relação entre eles, explica, marcada por brincadeiras, zombarias e mentiras constantes: a que ocorre entre os cunhados. "O de fora é uma espécie de cunhado também", afirma.
E os cunhados? Também são alguém "de fora"? Aélcio pensa um pouco, e diz: "Ele é casado com minha irmã, ele é de uma família diferente entrando na minha casa".
A explicação faz sentido. Os nambiquaras ainda riem. Será válida, já que fornecida a alguém "de fora"?


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