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O REMORSO DA FICÇÃO
Lévi-Strauss diz que se sentiu culpado ao escrever "Tristes Trópicos" por estar cedendo a um desejo nunca realizado de fazer uma obra literária
DA REDAÇÃO
A entrevista abaixo de Claude
Lévi-Strauss, concedida a
Boris Wiseman, ocorreu em
Paris em 28 de novembro de
2003, dia do 95º aniversário do antropólogo. Ela foi feita em seu apartamento no 16º distrito em Paris. Lévi-Strauss recebeu o pesquisador de
sua obra, professor da Universidade
de Durham (Inglaterra), em um escritório onde havia diversos objetos
de arte "primitiva" -segundo ele,
as "migalhas" de uma coleção que já
foi muito mais importante.
A entrevista, de que a Folha publica trechos a seguir, saiu na edição de
agosto/setembro/outubro de 2004
da revista "Les Temps Modernes".
Pergunta - Em que estado de espírito o sr. se encontrava quando escreveu "Tristes Trópicos"?
Claude Lévi-Strauss - Escrevi esse livro em uma espécie de raiva e de impaciência. Eu também sentia um
certo remorso. Achava que teria feito melhor se escrevesse outra coisa.
Pergunta - O quê?
Lévi-Strauss - Depois de ter tratado
das estruturas elementares do parentesco, eu deveria ter passado às
estruturas complexas.
Pergunta - Mas o senhor lamenta ter
escrito "Tristes Trópicos"?
Lévi-Strauss - Não, ainda mais porque na época teria sido impossível
abordar as estruturas complexas;
para isso haveria necessidade de
computadores.
Pergunta - Por que o senhor decidiu
escrever "Tristes Trópicos" no momento em que o fez, isto é, mais de 15
anos depois das experiências em campo de que trata o livro?
Lévi-Strauss - Jean Malaurie, que
fundou a coleção "Terre Humaine"
[Terra Humana], me fez o pedido,
quando eu acabava de atravessar crises em minha vida pessoal e profissional. Isso me faria mudar de ares.
Pergunta - Essa reação corresponde
a motivos externos, quase acidentais.
O senhor sentia uma necessidade ou
um desejo mais interior, mais pessoal, de escrever esse livro?
Lévi-Strauss - Certamente havia
motivos mais profundos, mas, à
época, não-conscientes. No que diz
respeito à necessidade, não, porque
eu me sentia culpado por escrever
esse livro enquanto deveria fazer
ciência. Eu o escrevi tão depressa,
em quatro ou cinco meses, que nem
sequer verifiquei a ortografia das palavras em português. A primeira edição, nesse sentido, é detestável.
Pergunta - O senhor poderia falar
um pouco mais sobre o que eram esses motivos "não-conscientes"? O senhor disse que escreveu "Tristes Trópicos" em parte em um estado de raiva. Raiva de quê?
Lévi-Strauss - De mim mesmo, pelo
motivo que acabo de lhe dizer. Mas
ao mesmo tempo, sem perceber direito, eu cedia a um desejo nunca
realizado de fazer uma obra literária.
Pergunta - Em uma das cartas que
enviou ao escritor brasileiro Mário de
Andrade [de 15/1/36], o sr. diz o quanto admira os cadiueus. O que admirou
mais particularmente?
Lévi Strauss - A cerâmica e as pinturas corporais. Eles eram grandes
artistas.
Pergunta - O sr. também admirava
seu modo de vida?
Lévi-Strauss - De modo nenhum.
Eles viviam como agricultores brasileiros miseráveis.
Pergunta - O sr. teve com os cadiueus o mesmo tipo de relação que
com os bororos e os nambiquaras?
Lévi-Strauss - Não. Os cadiueus
eram muito desconfiados, temiam
os avanços em seu território. Os bororos demonstravam uma certa altivez e tinham grande orgulho de suas
instituições. Eles também se mantinham reservados. Por outro lado,
com os nambiquaras, apesar de sua
reputação de violência, foi completamente diferente. Havia uma simpatia recíproca entre nós. Eram pessoas extremamente cativantes.
Pergunta - O sr. lhes falou sobre a
França?
Lévi-Strauss - Muito pouco. Os
meios de comunicação eram muito
limitados.
Pergunta - O sr. se identificou com
os índios que estudou?
Lévi-Strauss - De modo nenhum!
Pergunta - Do ponto de vista metodológico, é importante que o etnólogo evite a identificação?
Lévi-Strauss - Depende. Alguns etnólogos escreveram coisas muito
boas ao se identificarem.
Pergunta - Por que o sr. não voltou
ao campo?
Lévi-Strauss - Em primeiro lugar,
não pude, porque houve a guerra.
Mas fui obrigado a fazer trabalhos
de gabinete. Eu gosto desse gênero
de vida, mas não das rotinas da pesquisa. Falta-me paciência.
Pergunta - Mas é necessário fazer
pesquisa em campo pelo menos uma
vez para se tornar etnólogo?
Lévi-Strauss - Sem dúvida.
Pergunta - Por quê?
Lévi-Strauss - Para saber utilizar
melhor os trabalhos que outros trazem de seu campo.
Pergunta - A experiência entre os
nambiquaras foi determinante para o
etnólogo que se tornaria?
Lévi-Strauss - Não quero dar a impressão de dar importância demais
ao meu trabalho de campo. Fiz mais
do que pretendem certos críticos,
mas serei o primeiro a reconhecer
que no total continua sendo uma
proporção muito modesta. A experiência com os nambiquaras foi em
certo sentido decepcionante e, em
outro, muito lucrativa.
Ela foi decepcionante porque eu
vinha dos bororos, que têm uma cultura de uma riqueza e complexidade
notáveis, e lá me encontrei entre pessoas extraordinariamente desprovidas e, na verdade, praticamente inatingíveis. Como eles levavam uma
vida seminômade, nunca estavam lá
quando devíamos encontrá-los.
Do ponto de vista da antropologia
clássica, eu diria que não valeu a pena. Sob um outro ângulo, valeu
enormemente, porque foi, digamos,
o trabalho de campo levado a seu limite negativo. Era preciso tentar fazer alguma coisa com pouco material, levando-se em conta as dificuldades da pesquisa nessa época. Fazemos melhor desde então.
Pergunta - Essa experiência de limite lhe permitiu perceber coisas que
não teria visto de outro modo?
Lévi-Strauss - Eu não diria nada parecido. Aquilo me permitiu medir, a
grosso modo, o leque do trabalho
em campo, desde suas formas mais
ricas até suas formas ingratas.
Pergunta - O sr. explicou em uma
entrevista que, na época em que escreveu "Tristes Trópicos", havia começado a escrever um romance, que
depois abandonou.
Lévi-Strauss - Não nessa época. Eu
havia começado o romance ao voltar
do Brasil, isto é, nos poucos meses
que se passaram entre minha volta a
Paris e a guerra de 39. Foi nesse momento que eu havia começado e depois abandonei o romance. "Tristes
Trópicos" veio 15 anos depois.
Pergunta - Qual foi o lugar desse romance não escrito ao mesmo tempo
na confecção de "Tristes Trópicos" e
na seqüência de sua obra? Ele teve um
papel importante?
Lévi-Strauss - Ele teve um papel, de
um lado porque um dos títulos possíveis do romance era "Tristes Trópicos" e, de outro, porque as páginas
que formavam o início do romance
se encontraram em "Tristes Trópicos": descrição de um pôr-do-sol
que eu tinha visto, mas a bordo do
navio que me levou pela primeira
vez ao Brasil. Ao retomá-la em "Tristes Trópicos", devolvi essa descrição
a sua verdadeira origem.
Pergunta - O senhor faz novamente
referência a essa descrição de pôr-do-sol no "Final" de "O Homem Nu", ou
seja, 15 anos depois da publicação de
"Tristes Trópicos". Por quê?
Lévi-Strauss - Pareceu-me que havia aí uma espécie de constante ou
de invariável em meu pensamento
que fazia com que, depois de ter
adotado um pôr-do-sol como o próprio modelo dos problemas etnológicos que eu deveria resolver mais
tarde, ao terminar o mais complexo
desses problemas, isto é, os quatro
volumes das "Mitológicas", eu os revia sob a forma de um pôr-do-sol.
Pergunta - Em que um pôr-do-sol
fornece o "modelo" dos problemas etnológicos que o sr. estudou?
Lévi-Strauss - Estamos diante de
uma realidade extraordinariamente
complexa, cujo desenrolar é imprevisível e que devemos, de todo modo, tentar descrever com precisão. E
no final, uma vez encontrada uma
organização, ou pelo menos tendo
imaginado que poderia encontrá-la,
eu a via inevitavelmente terminar
como o espetáculo do sol poente.
Pergunta - De alguma maneira os
mitos, ao se transformarem, seguem
um caminho que parece um pôr-do-sol. Poderíamos dizer isso?
Lévi-Strauss - No sentido de que,
quanto mais descobrimos conexões,
menos obtemos informações.
Pergunta - No "Final" de "O Homem
Nu", o senhor explica que, embora
cheio de sentidos, visto do exterior o
sentido dos mitos se anula. O que explica essa relação, aparentemente paradoxal, entre os mitos e o sentido?
Lévi-Strauss - O pensamento mítico pretende tudo compreender e tudo explicar. Para nós, trata-se de
compreender que ele pode ser ao
mesmo tempo um imenso fracasso
enquanto manifesta, como diz Comte a seu respeito sob o nome de fetichismo, "o estado plenamente normal de nossa inteligência".
Pergunta - Alguns escritores que relataram uma experiência traumática,
como o Holocausto, às vezes se sentiram culpados de traírem, nos escritos,
o que havia sido a experiência real. O
sr. tem um sentimento semelhante?
Lévi-Strauss - Não é uma coisa tão
profunda, é sobretudo o sentimento
de que os meios de que dispomos,
como observador e como escritor,
nunca estão na medida do que vemos e do que tentamos descrever.
Há uma distância que deve inevitavelmente persistir.
Pergunta - O sr. é tratado hoje como
um clássico, e não é raro que o classifiquem entre os maiores pensadores de
nosso tempo. O que acha disso?
Lévi-Strauss - Isso me comove, mas
ao mesmo tempo me incomoda e
me irrita.
Pergunta - Por quê?
Lévi-Strauss - Acredito que não seja
verdade. Sinto-me pequeno ao lado
de meus grandes antecessores.
Pergunta - Parece-me que o sr. nunca tentou realmente fazer escola ou
exercer o papel de um líder "intelectual", à maneira de Sartre, por exemplo. Foi uma opção deliberada?
Lévi-Strauss - Não quis isso porque, confesso, não aprecio muito os
contatos sociais. Meu primeiro movimento é fugir das pessoas e voltar
para casa.
Pergunta - Às vezes lhe atribuem
uma visão muito crítica da cultura a
que o sr. pertence.
Lévi-Strauss - Sou profundamente
ligado à cultura propriamente dita.
Sinto-me o produto dela. É sobretudo a sociedade que me repele.
Pergunta - O que em particular?
Lévi-Strauss - São mil coisas. Mas
parece-me que elas se reduzem a
uma só: quando nasci, havia 1 bilhão
de homens na Terra e, quando entrei
na vida ativa, após a formatura, havia 1 bilhão e meio. E hoje são 6 bilhões e serão 8 ou 9 bilhões amanhã.
Esse mundo não é mais o meu.
Pergunta - Que olhar o sr. tem sobre
a vida cotidiana da Paris do século 21?
Lévi-Strauss - É tão fácil para um
velho dizer que tudo era melhor
quando era jovem que deveria ser
proibido responder a perguntas desse tipo. Mas, enfim, se você quer que
eu me manifeste, eu diria que, fora
os progressos da medicina, que são
incontestáveis e muito vantajosos
para todos nós, sob todos os outros
aspectos, para alguém do meu meio
social e intelectual, a vida oferecia
mais prazeres.
Pergunta - Como o sr. vê a situação
atual da antropologia?
Lévi-Strauss - Ainda há muito a fazer, pois restam no mundo muitas
coisas que foram pouco ou mal estudadas. Mas, enfim, comparado com
os dois últimos séculos, será apenas
questão de juntar as migalhas.
Pergunta - O sr. acredita que a antropologia está destinada a um declínio inevitável?
Lévi-Strauss - É mais uma transformação. A tarefa da antropologia foi
totalmente em razão de uma conjuntura histórica: o momento em
que a cultura ocidental tomou consciência de que iria dominar a terra
inteira. Era preciso, pois, se apressar
para recolher todas as experiências
humanas que não lhe deviam nada e
cujo conhecimento é indispensável à
idéia que podemos ter de uma humanidade não reduzida a uma reflexão pessoal ou mesmo à civilização
ocidental propriamente dita.
Penso que a antropologia cumpriu
muito bem sua função durante, digamos, os dois últimos séculos, mas
chegamos ao momento em que nenhuma das experiências humanas
que será possível conhecer estará
isenta da contaminação ocidental
-e, portanto, essas experiências
não podem mais nos instruir sobre o
que íamos buscar antes.
Pergunta - Como o sr. vê a transformação da antropologia?
Lévi-Strauss - Vai surgir uma disciplina dedicada ao estudo dessas novas diferenças que serão criadas à direita e à esquerda, e está bem assim,
mas não é mais meu problema.
Aliás, a antropologia se transformará em filologia, em história das
idéias, assim como o mundo antigo,
a Grécia, Roma, a Índia védica desapareceram, mas deixaram trabalho a
fazer, há séculos, e isso continuará
durante séculos. A massa de materiais antropológicos que existem e
nunca foram destrinchados ou publicados é imensa.
Pergunta - Em "Tristes Trópicos", o
sr. evoca a possibilidade de uma tabela periódica das estruturas sociais
existentes e possíveis. O que o sr. responde aos críticos que dizem que essa
concepção do espírito retira do homem um de seus valores fundamentais -a liberdade?
Lévi-Strauss - É uma linguagem para mim tão opaca quanto uma língua desconhecida. Não sei o que isso
quer dizer. Eu acabo de lhe dizer
que, quando é preciso levar em conta o indivíduo, havia muitas abordagens que poderiam ser legítimas,
mas não o estruturalismo. Porque o
estruturalismo implica estarmos em
condições de fazer a abstração do
próprio indivíduo.
Se você tem um microscópio com
vários aumentos, e utilizar um aumento fraco, em uma gota de água
verá pequenos animais que se alimentam, que copulam, que se afeiçoam, que se odeiam e para os quais
a liberdade existe. Se você utilizar
um aumento um pouco maior, não
verá mais os animais em si, mas as
moléculas que compõem seus corpos. O tema da liberdade perde então o sentido. Ele só é aplicável em
outro nível da realidade.
Pergunta - Acredito que minha pergunta era: até que ponto os níveis estruturais determinam nossas experiências, nossas maneiras de perceber, tais como as vivemos no nível em
que funcionamos como indivíduos, vivos e atuando no mundo.
Lévi-Strauss - Há tantos determinismos que funcionam em todos os
níveis, em níveis ligados à biologia
molecular, outros à fisiologia animal
e outros ainda que não conheço, que
o modo como todos esses fatores se
imbricam é de uma complexidade
enorme, que retira todo o sentido
desse gênero de pergunta.
Pergunta - O sr. não escreve mais?
Lévi-Strauss - Não é tão simples.
Ainda faço pequenas coisas. Mas
não é uma questão de escrever ou
não escrever, é uma questão de ter
um pensamento que ainda seja fecundo ou que deixe de sê-lo.
Pergunta - A religião enquanto prática religiosa desapareceu?
Lévi-Strauss - Pelo menos na vida
civil; é a maneira como a religião
atesta sua realidade.
Pergunta - Creio que podemos parar
aqui.
Lévi-Strauss - Eu gostaria disso.
Começo a não encontrar mais palavras para lhe responder.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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