São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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Primeira obra de Jacques Bouveresse a sair no Brasil, "O Futuro da Filosofia" ataca a falta de rigor das correntes centrais do pensamento francês

Panfleto anêmico

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Professor do Collège de France desde 1995 e um dos mais destacados especialistas em Ludwig Wittgenstein [1889-1951], Jacques Bouveresse tem enfim um de seus livros lançado no Brasil. Trata-se do panfleto "O Filósofo entre os Autófagos", cujo título recebeu, na edição brasileira, o complemento: "O Futuro da Filosofia".
O título complementar ilustra bem o propósito do livro. Escrito em 1984, ele procurava colocar em circulação a visão do autor a respeito do que deve ser o verdadeiro fazer filosófico, isso a fim de expor os impasses nos quais a filosofia contemporânea francesa teria se enredado.
Embora o livro tenha atualmente mais de 20 anos, suas posições continuam servindo, ao menos para Bouveresse, como quadro geral de análise do estado da filosofia francesa e de seus leitores.
Prova disso é um de seus livros-panfletos de 1999, "Prodiges et Vertiges de L'Analogie" [Prodígios e Vertigens da Analogia. ed. Liber], no qual retoma sua cruzada contra a ausência de rigor da filosofia francesa contemporânea, mas agora com o auxílio dos cientistas Alan Sokal e Jean Bricmont. Os mesmos que haviam editado um livro copilando os pretensos abusos nos usos de conceitos e teoremas científicos por pensadores como Lacan, Derrida, Lyotard, Deleuze, entre outros.
As críticas indignadas escritas em 1984 continuam lá, desferidas contra, mais ou menos, o mesmo núcleo de autores.

Desapontamento
No entanto quem conhece Bouveresse de seus trabalhos rigorosos sobre Wittgenstein, como os clássicos "Le Mythe de l'Intériorité" [O Mito da Interioridade] e "La Force de la Règle" [A Força da Regra], dificilmente não sai desapontado com a descoberta de seu lado polemista. Nesse sentido, "O Futuro da Filosofia" não é uma exceção.
O livro foi escrito no calor de uma polêmica institucional que envolveu Bouveresse e os criadores do Colégio Internacional de Filosofia, instituição francesa que deveria abrigar pesquisas interdisciplinares daqueles que não se sentiam muito à vontade na estrutura universitária da filosofia francesa.
Como tudo o que é escrito no calor da polêmica, "O Futuro da Filosofia" é cheio de diatribes generalistas como: "O mundo filosófico está repleto, atualmente, não apenas de autores de sucesso mas também de entediantes mestres-escolas e de pedantes pretensiosos, que se julgam tão "anormais" e tão ameaçadores para a ordem social, as instituições e, é claro, a própria tradição filosófica que, comparado a eles, o ilustre Diógenes, em seu tonel, poderia passar por um menino conformista de coro".
Esses pedantes pretensiosos e "anormais" de plantão que criticariam de maneira inconseqüente o racionalismo compõem, aos olhos de Bouveresse, uma larga constelação que vai da psicanálise, do estruturalismo, do pós-estruturalismo, do historicismo até o marxismo.

Irracionalismo
Ou seja, Bouveresse, com a tranqüilidade das evidências, não vê muito problema em unificar praticamente todas as linhas hegemônicas do pensamento francês dos últimos 50 anos sob a bandeira do irracionalismo e do relativismo. Operação que só é possível com a condição de não discutir, de maneira rigorosa, nenhum pensamento ou experiência intelectual contra a qual se quer polemizar.
Essa estratégia da esquiva produz expedientes pouco recomendáveis para um filósofo do porte de Bouveresse, como nunca enfrentar diretamente os nomes fortes das tradições que desqualifica. Por exemplo, ao questionar o historicismo, percebe-se claramente que o alvo visado é Foucault.
No entanto, ao invés de uma confrontação direta com o pensamento foucaultiano (que o levaria a problematizar o próprio conceito de "historicismo"), o autor prefere se esquivar e criticar o historiador Paul Veyne em momentos infelizes. O mesmo ocorre com o estruturalismo. Lá onde esperamos um debate sério com teóricos maiores do estruturalismo, como Lévi-Strauss, temos apenas ironias contra Michel Serres, que está longe de ser o representante mais consistente do movimento.
Perde-se, assim, uma boa oportunidade de estruturar um verdadeiro debate entre a filosofia analítica e as múltiplas e incomensuráveis correntes do pensamento francês contemporâneo. O resultado são, muitas vezes, despropósitos, como acusar a psicanálise de produzir um psicologismo generalizado e irracionalista que impediria os sujeitos racionais de se responsabilizarem pelos seus próprios atos, isso quando todo o esforço de psicanalistas como Jacques Lacan consistiu exatamente em pensar uma figura despsicologizada do sujeito.
Nesse sentido, o que talvez mova Bouveresse nessa certeza de poder dispensar qualquer leitura mais cuidadosa dos autores que critica é a crença de que toda autocrítica da razão será uma contradição performativa que se sustenta naquilo que pretensamente tenta desqualificar.

Metafísica envergonhada
Qualquer tentativa de colocar em questão a gramática filosófica que estrutura nossas noções de clareza, contradição, identidade, fundamentação e objetividade será assim simplesmente vista como irracionalista. No entanto, ao menos desde Hegel, um dos esforços maiores da filosofia consiste exatamente em mostrar como aquilo que aparece naturalmente às orientações do pensar é o "locus" privilegiado de uma metafísica que tem medo de dizer seu nome.
Assim, o que Bouveresse procura desqualificar não são escolas ou pensadores, mas um modo de compreender o que é um problema filosófico. Até porque, a respeito da acusação reiterada de irracionalismo, poderíamos dizer, juntamente com Bento Prado Jr: "Irracionalismo é um pseudoconceito, pertence mais à linguagem da injúria do que da análise", "sempre se é o irracionalista de qualquer um".


Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp).

O Futuro da Filosofia - O Filósofo entre os Autófagos
232 págs., R$ 42,00
de Jacques Bouveresse. Trad. de Vera Ribeiro. Atlântica (rua da Lapa, 180/1.103, CEP 20021-180, RJ, tel. 0/xx/21/ 2221 -4164).


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