São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FICÇÃO NOS EUA

"American Pastoral" tenta entender a devastação que atingiu a vida americana


A tragédia grega de Philip Roth

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

"Você é o Zuckerman?... O escritor?"
"Eu sou o Zuckerman, o escritor."
Estamos no início do livro, na saída de um jogo de beisebol, e reencontramos aqui nosso velho, mas não necessariamente estimado, amigo Nathan Zuckerman, álter ego explícito ou implícito do autor e personagem central dos últimos dez livros de Philip Roth, desde "The Ghost Writer" (1979) até "O Teatro de Sabbath" (recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras). Em "Deception", ele muda de nome para "Philip"; e, em "Operação Shylock", para "Philip Roth", assim como nos autobiográficos "Patrimônio" e "Os Fatos". Todos, incluindo ainda o prodigioso Mickey Sabbath, são duplos de um autor que, a esta altura, já é o duplo de seu personagem e que agora, com a "Pastoral Americana" (Houghton Mifflin, 424 págs., US$ 26), vem descobrir o mais inesperado duplo do duplo na figura do bem-comportado judeu burguês Seymour Irving Levov.
Melhor conhecido como "Swede" (Sueco), ele é o "monarca da vida ordinária", nas palavras de seu irmão Jerry -o irmão que, vivo ou morto, atormenta a vida desses homens. O pós-judeu Seymour, casado com a pós-católica Dawn (Aurora) Dwyer, a miss Nova Jersey de 1949, construiu para si uma vida impecável, no melhor padrão da burguesia protestante americana: dirige um negócio milionário, uma fábrica de luvas; mora num sítio, numa região de republicanos ricos; ex-atleta e ídolo na escola, encontrou a mulher com quem forma um par de capa de revista, mimando a filha única. "Ele tem, ao que parece, uma vida perfeita", escreve Louis Menand, numa resenha elogiosa na revista "New Yorker" (19/5/97) -"e o que você acha que vai lhe acontecer?".
Só o título, "Pastoral Americana", já seria o bastante para gerar as piores expectativas em qualquer leitor de Roth. Ler Roth é uma educação, uma exaltação, um acontecimento; mas não é propriamente um consolo. E uma pastoral composta pelo autor do "Complexo de Portnoy" também não há de ser exatamente um poema bucólico. Os temas de Roth/Zuckerman continuam os mesmos, bem sintetizados por Elizabeth Hardwick ("The New York Review of Books", 12/6/97): os judeus no mundo, especialmente Israel; os judeus na família; os judeus em Newark, Nova Jersey; a fama, grande o bastante para incentivar os impostores; a literatura; Philip Roth; e o sexo. John Updike, seu grande rival (platônico) na ficção contemporânea americana, é mais sucinto ainda: "Israel, ereção e literatura" ("Odd Jobs").
Newark é a Combray de Roth, o paraíso perdido, relembrado com especial afeto na primeira parte do novo romance. Uma festa de 45 anos de formatura é a ocasião para revelações dignas da grande matinê no último volume de "Em Busca do Tempo Perdido". E é no fim da festa, dançando com uma antiga colega de ginásio, que Zuckerman, depois de rever Jerry Levov e saber notícias do seu irmão, começa a sonhar uma explicação para a vida insuspeitadamente dolorosa do Sueco -seu herói de adolescência, o judeu mais "goy" de todos, o homem sem ironia. O resto do livro, mais de 300 páginas, é essa história ou sonho de Zuckerman.
"Explicação" não é a melhor palavra para as relações entre narrativa e conhecimento. Mas a compreensão pela tragédia tem antecedentes clássicos e a "Pastoral Americana" é a tragédia grega de Roth, um livro digno de comparação com o "Prefeito de Casterbridge", de Thomas Hardy, ou com "O Teatro de Sabbath", do próprio Roth, já que ele é hoje virtualmente o único padrão possível de comparação para si mesmo. Comparações e coincidências com o último romance de Updike, "Na Beleza dos Lírios", são inevitáveis e surpreendentes. É curioso, no mínimo, que um e outro tivessem simultaneamente nos dado figuras de mulheres gagas: a estrela de cinema Alma, álter ego irônico de Updike, e a filha do Sueco, Merry, a menina "atacada pelas palavras e obstinadamente atacando as palavras de volta". Um e outro nos dão descrições admiráveis da vida do interior e de atividades industriais, minuciosamente estudadas (o livro de Roth é um verdadeiro tratado sobre os processos de curar couro e a fabricação de luvas!).
Um e outro, também, estão escrevendo romances de fim-de-século, preocupados em entender, retrospectivamente, o que se passou com a cultura americana. Nisso, aliás, estão em grande companhia, naquela que já é, desde já, uma das mais extraordinárias safras de romances americanos: além de Roth e Updike, foram publicados, nos últimos 12 meses, "Mason and Dixon" (Henry Holt), de Thomas Pynchon , "Puttermesser Papers" (Knopf), de Cynthia Ozick, e "The Actual" (Viking), de Saul Bellow; Richard Ford está lançando "Women with Men" (Knopf); sai em outubro o novo vasto romance de Don DeLillo, "Underworld" (Scribner), que recria 50 anos de vida durante a Guerra Fria; e, ainda -mais próximo de Roth-, "The Old Religion" (Free Press), de David Mamet, a história de um judeu acusado de estupro no sul dos Estados Unidos.
O diagnóstico em cada caso é diferente, mas igualmente sombrio. A Merry de Roth, a menina sofredora e sensível, torna-se uma adolescente incompreensiva e incompreensível, uma militante raivosa anti-Vietnã, nos anos da administração Lyndon Johnson. Acaba bombardeando um armazém, assassinando acidentalmente o médico da cidade. Desaparecem aí todos os sonhos de felicidade, toda "utopia de uma existência racional" do Sueco. Daqui para a frente, ele há de ver muita coisa mais desmoronar, na sequência da perda dessa filha, "que o transporta para longe da tão longamente esperada pastoral americana, até a sua antítese e seu inimigo, até a fúria, a violência e o desespero de uma contrapastoral, a insanidade americana nativa".
Não há figura mais oposta ao Sueco do que o Mickey Sabbath do romance anterior. Mas duas frases de Sabbath aplicam-se -pode-se dizer, neste caso especialmente, como uma luva- ao seu antípoda: "Quanto ao padrão que rege as nossas vidas... chama-se habitualmente caos"; e "na minha experiência, a vida se dirige para a incoerência". Sabbath é um artista furioso, vivendo de afronta e pânico; o Sueco é um bom sujeito, o Leopold Bloom de Roth (com direito à sua Molly e ao Blazes Boylan dela também). Sabbath não pode morrer porque "tudo o que ele odiava estava aqui"; já para o Sueco, "tudo o que ele amava estava aqui". Mas ambos aprendem, no curso de um e outro romance, "a pior lição que a vida pode ensinar: que ela não faz sentido". Em tons inesperadamente moderados, agora que o narrador Nathan Zuckerman já extraiu a próstata e confessa problemas de incontinência urinária e potência sexual, este livro tão triste vai-se transformando numa crônica da devastação: a ruína de Newark, depois dos conflitos raciais de 1967; a ruína inexplicável de um ideal de vida; a ruína de 20 anos de boa vizinhança; a ruína do casamento e da família; a ruína do ego, que não tem aqui nem ao menos o consolo do humor.
Toda a ficção de Roth parece decidida a encontrar uma terceira via para a literatura moral judaica, entre as fantasias da ambivalência em Freud e a interpretação impossível em Kafka. O que Harold Bloom chama de "exuberância negativa" realiza-se melhor nas grandes cenas de diálogo e no humor alucinatório de romances como "A Orgia de Praga" e "Operação Shylock". Mas o longo diálogo entre pai e filha, no centro da "Pastoral", bem como as quase 150 páginas de um jantar na casa do Sueco -outra cena proustiana, na qual o trivial é a porta do abismo-, guardam uma outra espécie de inteligência, a sabedoria última da incompreensão. "É como se estar afinado com a vida fosse um acidente... para o qual os seres humanos não tivessem a menor afinidade."
Foi Kafka quem escreveu essa frase talmúdica: "A culpa não é uma coisa de que se possa duvidar" ("A Colônia Penal"). Mas a incompreensão do Sueco não vem da dúvida, e sim da irracionalidade do castigo, nesta versão americana do Livro de Jó. É a mesma irracionalidade que inexplica o romance familiar ("todo mundo tem uma família. É lá que tudo dá sempre errado"), ou o casamento ("o que nos leva a escolher um parceiro para a vida? Ou será que no âmago de cada casamento há algo de irracional e indigno e estranho?"). Traição, fraude, malícia e desunião vão corroendo o universo amável do Sueco, até reduzir a existência a um cenário de caos e crueldade, entrevisto apenas por trás da fachada heróica de normalidade.
Não há uma palavra na prosa de Roth que não se equilibre, com a mais extraordinária tensão literária, nas cordas bambas da sintaxe e do significado. Há várias peças de exibição espalhadas pelo livro: o diálogo entre o pai e a noiva do Sueco; o telefonema entre Jerry e o irmão, depois que este descobre o paradeiro da filha, renascida para o mais miserável ascetismo indiano anos 70; a descrição do concurso de miss América (outro paralelo com o romance de Updike); a multiplicação de diálogos na reunião de ex-alunos, no início, e no jantar dos Levovs, no fim do livro, em que um deslize verbal é o bastante para deflagrar uma torrente de sentimentos e sofrimento.
Elevado às alturas de uma imaginação literária suficientemente forte para aceitar o próprio desafio, Philip Roth continua, aqui, a trajetória iniciada com "Operação Shylock" e "O Teatro de Sabbath", dois outros romances definitivos da década. Com uma espécie de ouvido absoluto para as vozes e uma lucidez que é quase uma forma de martírio, ele está escrevendo num gênero próprio, em que, por trás da convenção realista, se articulam poesia, ficção, profecia, comédia, crônica e tragédia. Um bom nome para isso é "pastoral": a separação eterna entre consciência e mundo, que assume aqui uma forma dolorosamente atual e americana.


Arthur Nestrovski é professor de literatura na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autor de "Ironias da Modernidade" (Ática), entre outros.




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.