São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997.



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As figuras de Dante

Costa Lima comenta estudos de Auerbach sobre o italiano


Reprodução
Dante, Virgílio e Beatrice em ilustração de Gustave Doré (1832-1883) para a "Divina Comédia"


LUIZ COSTA LIMA
especial para a Folha

Por rara coincidência, duas editoras lançam ao mesmo tempo dois diversos ensaios de Erich Auerbach: "Dante - Poeta do Mundo Secular" (Topbooks) e "Figura" (Ática). A surpresa é maior considerando-se a articulação que eles apresentam.
Com o "Dante als Dichter der Irdischen Welt" (1929), o autor conseguiu sua "Habilitation" em romanística, tornando-se professor da Universidade de Marburg, até o decreto nazista de 14 de outubro, 1935, que exonerava os funcionários públicos de sangue judeu. O livro, ainda extremamente útil para uma compreensão global da obra do poeta florentino, tem um perfil acadêmico convencional: abre com um capítulo sobre a idéia de homem na literatura, prossegue com o exame das relações do primeiro Dante com a poesia provençal e o "dolce stil nuovo", até chegar a "Divina Comédia", a que serão dedicados quatro capítulos. No entanto, é dentro deste formato tradicional que se instila sua novidade. Ela deriva do modo de ver seu objeto. Ainda que já não se esteja de acordo com ele, sua novidade não deixa de ser reconhecida.
De construção simples, do livro se poderia dizer que flui e conclui como um extenso comentário de sua epígrafe. "O caráter de um homem é seu destino." E a escolha de Virgílio para guia na viagem ao além-mundo não teria sido acidental: mostra o capítulo um que Virgílio é o poeta que abre um intervalo entre o racionalismo aristotélico e o cristianismo ao retomar a unidade entre caráter e destino. Assim, pois, a geometria do livro se enuncia em suas primeiras páginas, cabendo ao capítulo seguinte mostrar que a execução da máxima heracliteana continuará ausente dos praticantes do "stil nuovo", adeptos de uma doutrina esotérica do amor, que convertia seus poemas em um "jogo aristocrático das paixões".
A aprendizagem que Dante fizera com eles e a admiração que mantivera por alguns não impediram sua diferença. Beatrice "lhe moldou a vida (e) deu-me a voz que reflete sua visão de uma perfeição estática e bem-ordenada", para que, então, Dante se tornasse "o poeta cristão de uma realidade terrena preservada na transcendência". Como, entretanto, o poeta cristão por excelência dera corpo à máxima pagã da unidade entre caráter e destino?
Embora Auerbach não se proponha a pergunta, sua resposta já estava no capítulo um. Nele se diz que, na história de Cristo, "a idéia é sujeita ao caráter problemático e a injustiça desesperada do acontecimento terreno". Ou seja, a conversão cristã da máxima pagã implica duas consequências, de que só a primeira é absolutamente grega: (a) próprio do terreno é o solo trágico impresso entre suas criaturas; (b) isso a tal ponto que "este mundo só tem sentido com referência ao outro, futuro: em si mesmo é um tormento e um disparate".
Para viver essas consequências, Dante dispôs da conjunção de duas influências: da Beatrice sublimada e da "Summa", de Tomás de Aquino. Combinadas, elas lhe deram condições de superar o extásico erótico dos provençais e alcançar a arquitetura da "Divina Comédia". Só um poeta ímpar poderia levar a cabo tal concordância, pois, diz passagem lamentavelmente truncada na tradução, "o tomismo e racional e (...) hostil ao intuicionismo; já o misticismo do 'stil nuovo' era sensual e poético de origem e culminava na revelação extásica".
Esta fusão entre racional arquitetura e traço sensível fornece o plano e a linha com que se desenhará, na obra magna, a unidade entre caráter e destino. Ela se evidencia em cada personagem do Inferno e do Purgatório. Quer o castigo, quer a penitência, em vez de confundir as almas na massa dos outros punidos pelos mesmos erros, intensificam os traços individualizadores de cada uma. Ainda que em metamorfose, quer os condenados, quer os que se purificam não perdem seus gestos e sua voz terrenos e particulares. O poeta se faz filósofo não porque filosofe, senão porque seus retratos cumprem a visão estático-hierárquica do tomismo.
Por esse motivo, Auerbach se insurge contra as apropriações românticas de Dante: a indissolubilidade mantida pelas criaturas não pode ser descartada da inteira concepção do poema, abrangente de um sistema físico, de um ético e de um histórico-político. O primeiro, em sua submissão ao universo ptolomaico, não é mais descartável que a geografia dos lugares extraterrenos, com seus círculos determinados para cada tipo de pena ou glória. A unidade heracliteana não poderia, portanto, ser lida como uma antecipação moderna do reconhecimento do indivíduo. Fazê-lo equivaleria não só a romper a estruturação da "Comédia" como, em sua apreciação, introduzir uma medida relativizadora que repugnava ao historicismo de Auerbach.
Não obstante a simpatia pela tese, não se poderia deixar de notar que o fio condutor da interpretação se dissolve antes de o poema concluir. Pois, que se vê no Paraíso? Aí, são raras "as almas redimidas que aparecem como figuras individuais providas de memórias da existência terrena. (...) Quanto mais alto Dante ascende, mais universais e impessoais são as almas que ele vê". Que significa o trecho senão que o fio condutor se mostra incapaz de dar conta da metamorfose paradisíaca? Sem se apoiar neste argumento, é ele consentâneo com o reparo que fizera Della Terza, no prefácio à edição italiana ("Studi su Dante", Feltrinelli, 1963), a propósito do "Dante" quanto ao ensaio "Figura".
Neste, "Auerbach parece se dar conta de que uma análise das relações entre estrutura e poesia na "Comédia" não pode levar a resultados exegéticos satisfatórios se antes não é definido o significado da própria estrutura". Pois "Figura", originalmente publicado em revista italiana em 1938, representa "uma direção crítica, se não divergente, diversa quanto ao ensaio dantesco de 1929". Não podendo aqui nem sequer sintetizar a análise que apresentamos há três anos ("Figura e Evento", em "5º Colóquio UERJ: Auerbach", Imago, 1994), limito-me a observar: a "figura" é o produto da correspondência entre dois eventos, ambos reais e históricos, de que o primeiro é a prefiguração de algo que se cumpre depois.
Assim, o Velho Testamento prefigurava o Novo e a Arca do Noé, a vinda do Cristo. Fundada na leitura de Agostinho, de Tertuliano e Orígenes, a categoria permitia a Auerbach o acesso à estrutura da filosofia cristã da história, isto é, ao sentido interno que ela emprestava à história. Sendo esta a visada do ensaio que ora se traduz em português, seria descabido que nele seu autor fosse além de Dante. Mas pareceria também descabido não informar o leitor da fecundação a que tem dado lugar. Assim, em "Figura e Evento", chamava-se a atenção para a semelhança entre o pensamento patrístico e Hegel, cuja influência sobre Auerbach é bem conhecida.
Como então eu desconhecia Tertuliano, perguntava-me se não havia ali um Tertuliano hegelianizado. Ora, em ensaio posterior, ("Políticas da Escrita", Editora 34, 1995), J. Rancière notava que o esquema de Tertuliano fora laicizado e, entre outros, por Hegel. Mais importante do que isso, ressaltava o fato de a interpretação figural constituir uma das duas raízes da literatura moderna. De modo esquemático: o poema é visto "como promessa do corpo vindouro de sua verdade" (Rancière).
A escrita "sadia" é aquela que prefigura a salvação. A seu lado, porém, deposita-se outra raiz, que, sem deixar de ser figural, inverte sua direção. Assim, em "A Carne de Cristo", de Tertuliano, se encontra a afirmação: a verdade da Encarnação supõe menos a promessa de redenção do que a presença de um corpo que sofre. Nesta segunda raiz, pois, a literatura não se confunde com uma cura, senão é um corpo que aponta para sua própria chaga.
Por certo, esta é uma lição já transformada do "Figura". Que mostra sua metamorfose senão que o pensamento de Auerbach permanece em vida?


Luiz Costa Lima é ensaísta e crítico, professor de história social da cultura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34), entre outros.


AS OBRAS

Figura - Erich Auerbach. Tradução de Duda Machado. Revisão da tradução de José Marcos Macedo e Samuel Titan Jr. Editora Ática (r. Barão de Iguape, 110, Liberdade, CEP 01507-900, SP, tel. 011/277-4146). 86 págs. Preço não definido.

Dante - Poeta do Mundo Secular - Erich Auerbach. Tradução de Raul de Sá Barbosa. Editora Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, sala 413, Centro, CEP 20091-000, RJ, tel. 021/233-8718). 232 págs. R$ 28,00.



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