São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

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+ Cultura

EUROPA nas entrelinhas

O cineasta alemão Wim Wenders analisa a rejeição popular à Constituição do continente e diz que só a arte pode resgatar sua unidade

Jens Meyer-4.jun.2007/Associeted Press
Jovens se manifestam em prol de refugiados e imigrantes em Rostock (Alemanha), antes de reunião do G8


WIM WENDERS

A Europa tornou-se distante e abstrata para a maioria dos europeus: já não sabem se devem se identificar ou se afastar, se devem se sentir representados ou reprimidos por ela. A imagem da Europa cindiu-se em duas.
Como sou cineasta e fotógrafo, prefiro permanecer no domínio que me é familiar e investigar o problema da alma européia do ponto de vista de um produtor de imagens. Por onde começar?
O termo inglês "image" pode nos ajudar. A "image" da Europa é diferente da imagem que fazemos do nosso continente.
Uma "image" é uma marca, um produto de uma miríade prévia de imagens, histórias, tradições, propagandas, experiências pessoais e, ainda, o resultado ou a suma de uma fama.
Não posso deixar de suspeitar que o nosso tema comum, "dar uma alma à Europa", refere-se sobretudo a essa "image" e bem poderia ser entendido como "Devolver uma alma à imagem arranhada da Europa".
De fato, me parece uma tarefa necessária. A "image" européia vem sofrendo duros reveses.
O fiasco da Constituição Européia [derrotada em referendos na França e Holanda em 1995] vem logo à memória. Entre muitos jovens europeus, como em boa parte do mundo globalizado, a Europa goza de má fama.

Só economia
Fui a Heiligendamm [na Alemanha] durante a reunião do G-8 [de 6 a 8 de junho passado] e passei cinco dias por lá, não entre os políticos, mas do outro lado da cerca, sobretudo entre jovens, entre jovens cidadãos.
Para eles, a Europa não era mais que uma potência econômica, politicamente comprometida com a tragédia climática, o desperdício energético, a pobreza e a injustiça mundo afora. Para a maioria, a Europa não era mais que isso. É uma pena.
Pois sabemos que a Europa de hoje é, na verdade, o contrário disso: um santuário de direitos humanos, um lugar de liberdade como nunca antes em sua longa história.
Em nenhum outro lugar do mundo há um tal tecido de proteção social, uma comunidade de povos tão pacífica ou uma tradição mais democrática.
Fico profundamente consternado ao ver que tantos jovens não depositam mais esperança na Europa. Na minha própria juventude, a idéia da Europa era simplesmente grandiosa.
Vista de longe, a Europa parecia prodigiosa, brilhante, mas de perto, no dia-a-dia, ela é tediosa e notavelmente fria. "Café frio", como se diz em Berlim.
O que aconteceu com o sonho de outrora? Como ele pôde se desfazer a tal ponto? A Europa não soube dar uma imagem a si mesma, não soube se glorificar, propagandear, não soube se projetar na tela. As antigas indústrias cinematográficas nacionais não souberam fazê-lo, não produziram sonhos europeus.
Deixamos os sonhos e as utopias imagéticas para os norte-americanos. Não quero me estender sobre o cinema e os proveitos que ele proporcionou em termos de imagem aos americanos, que detêm um lugar de potência no mundo da imagem em movimento.
Também não quero me estender sobre a ausência contumaz de imagens e histórias européias nas telas de todo o mundo ou sobre o déficit de imagem que isso representa para o continente. Tampouco quero abordar a perda de identidade e de identificação vinculada ao pouco lugar que as nossas histórias ocupam nas telas de cinema.
Nada disso é irreparável.
No que nos diz respeito a hoje, o cinema digital será um verdadeiro milagre e vai mudar mais uma vez todas as regras do jogo nesse domínio e nesse mercado.
Mas eu gostaria de refletir sobre o que podemos fazer, sobre o papel que as imagens podem ter nesse esforço de polir a "image" danificada ou menosprezada do nosso continente. E não quero falar apenas das imagens.
Como cineasta, tenho o mais profundo respeito pelos narradores (não haveria cinema sem os grandes mitos e histórias da humanidade!); não há nada que eu ame mais que a música; e meus filmes se passam em cidades e tratam de lugares, o que, entre outras coisas, me faz sentir muito próximo dos arquitetos, que, como nós, trabalham com o tempo e o espaço.
Por tudo isso, vou falar de todas as artes e de sua responsabilidade na questão da alma européia. Pois o que fazem as artes, o que faz a cultura? A cultura dá alma.
Não, a economia não dá alma, tampouco a política, exceção feita aos grandes políticos. Mas a arte, sim, e tanto do lado da criação como do lado da recepção.
Permitam-me voltar ao meu entusiasmo pela Europa. Eu era jovem. Vivia num país em reconstrução, que fora readmitido à comunidade das nações num gesto de muita paciência e perdão.
Nessa época, eu daria tudo para não ser alemão.
Talvez por isso o "patriotismo europeu" seja tão fácil para a minha geração. Não havia excesso de informação. Era sobretudo no cinema que eu via [o presidente francês] De Gaulle e [o premiê alemão] Adenauer, no noticiário da semana.
Sobretudo, eu lia. Lia quase sempre sozinho, uma vez que minha avó não podia passar o dia inteiro lendo para mim.
Para ganhar autonomia, seguia o dedo velho e calejado que ela ia passando sob as palavras, até que aprendi a decifrá-las sozinho.
Mas o mais interessante foi descobrir que aquelas aventuras, aquelas emoções tão fervilhantes, aqueles segredos da humanidade não estavam nas palavras, mas, sim, nas entrelinhas, nos interstícios que cada leitor preenche com seu próprio mundo e seus próprios sonhos!
O que eu aprendi com a leitura se confirmou com o cinema: também aqui os prodígios estão entre as imagens.
E o mesmo acontecia com a música: a alma está entre as notas e sons. Só persistia e perdurava aquilo que se comunicava quase que por si só. Os prodígios de todas as artes não residem no explícito, mas nas entrelinhas!
Todas as coisas que me marcaram lograram esse efeito sem se impor a mim; abriram espaços para mim na mesma medida em que me deram espaço.
Numa época em que tudo é condensado, comprimido, abreviado, numa época em que todo produto é objeto de uma campanha de "image", nessa época em que a Europa se abre e quer e precisa ser mais que uma comunidade econômica, o que poderia dar mais alma à Europa além de sua melhor e mais genuína tradição -a sua cultura?
A Europa é generosa, a Europa conservou o respeito ao mais fraco e aos direitos humanos!
Pois que a Europa se mostre como tal! Uma Europa dotada de alma não teria recusado a Constituição. Naquele episódio, uma Europa cansada de política, de economia e de burocracia rebelou-se. E talvez no momento oportuno, de modo a dar voz a seu interesse primordial: o direito do indivíduo a seu próprio espaço cultural!

Unidade de medida
É certo que o direito individual é um postulado americano. Mas nos EUA o indivíduo é sobretudo a menor unidade econômica.
Na Europa, o indivíduo é a menor unidade cultural, com sua língua, sua região, suas imagens, sua música, seus mitos e histórias, sua ideologia, seu país, em suma, com sua diversidade, sua diferença, sua particularidade!
Essa definição do indivíduo é o maior capital europeu. É por isso que os jovens europeus se recusam a ser apenas consumidores num mercado globalizado -porque têm muito a perder!
Nós, europeus, somos "os outros" para nós mesmos. Cada um de nós vive entre vizinhos que falam e pensam de modo diferente. Podemos mostrar ao mundo como é possível conviver com a diferença, sem anulá-la nem absorvê-la, sem impor valores.
O mundo globalizado tem menos a perder com uma europeização do que com uma americanização.
De volta ao G-8: a certa altura, eu estava filmando um grupo de jovens italianos que corriam por um campo carregando uma bandeira colorida em que se lia "pace" [paz], seguidos por uma trupe de palhaços.
Em todo lado, os manifestantes se valiam da "estratégia dos cinco dedos": milhares de pessoas dispersavam-se em pequenos grupos ordeiros e pacíficos, deixando a atônita polícia alemã (aliás, exemplarmente bem-comportada) para trás, nos bloqueios das estradas.
Num certo momento, eu e minha equipe ficamos bem ao lado de uma barreira policial e pude ouvir o comentário de um policial bávaro, tão longe de casa quanto a maioria dos manifestantes: "Esses aí nem sabem como se escreve "peace'! Está faltando um e!".
Posso lhes dizer que, nesse momento, tive orgulho da Europa: do policial bávaro e dos palhaços italianos, dos militantes espanhóis, que não notavam como seus pronunciamentos ideológicos eram repetidamente atenuados pela tradutora inglesa que falava ao megafone, e dos franceses antiglobalização que não largavam do mapa e não faziam idéia de onde estavam.

Entrelinhas
A Europa estava dos dois lados. A Europa era aquela tensão e aquele espaço de manobra sob um céu que, 18 anos atrás, ainda era parte do bloco soviético.
Os europeus querem ler seu continente nas entrelinhas, entre as imagens, os sons, as línguas. Esse espaço deve seguir aberto a todo custo. A Europa e seu futuro dependem disso.
Que campanha isso não teria dado logo após o fracasso do referendo, se ao menos a sra. Wallström [comissária européia para a Comunicação] tivesse sabido falar direta e imediatamente a linguagem da literatura, se tivesse sabido usar as imagens dos cineastas e fotógrafos para transmitir o significado do projeto europeu, se os artistas tivessem assumido essa tarefa e conquistado espaço para mostrar suas próprias reações à idéia da Europa.
Isso teria falado com mais força ao coração dos europeus do que a campanha mortiça concebida em Bruxelas e desenvolvida por consultores de marketing.
De uma coisa eu sei: é preciso ousadia para entregar esse terreno aos artistas. Nunca se sabe quais imagens produzirão, a que sons vão chegar ou quais palavras vão escolher.
Mas não vale a pena correr o risco, quando se trata de valorizar esse tesouro inestimável que é a cultura européia -não apenas nos museus e galerias, mas no dia-a-dia, no seu uso cotidiano, e no interesse da unidade do continente e do projeto europeu?
"Dar uma alma à Europa" é, afinal de contas, um falso mote! A alma européia vem de longa data.
Ela quer agora se reconhecer em novas imagens! Ela quer contar sua história em todas as suas línguas e ressoar em todos os seus sons! De outro modo, ela acabará por se atrofiar e perecer.
Findo o primado (provavelmente necessário) da economia numa era que agora chega ao fim, a Europa deve agora produzir uma nova utopia.
Parte disso certamente tem a ver com a manutenção da justiça social, da paz, da liberdade, do respeito aos direitos humanos e da luta pela saúde do nosso planeta enfermo.
Mas, na era que está se inaugurando, nada disso será alcançado só por meios políticos e econômicos. Para poder se sustentar aos olhos dos próprios europeus, a Europa tem que se definir em seus termos mais genuínos: nos da prodigiosa, caótica e singular diversidade de sua cultura!

WIM WENDERS (1945) é um dos principais cineastas europeus. Este discurso foi proferido em Bruxelas (Bélgica), em 11/6/07, como parte da campanha "Uma Alma para a Europa". Tradução de Samuel Titan Jr.


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