São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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+ brasil 505 d.C.

Apesar de sua origem aristocrática, Getúlio Vargas foi o primeiro presidente a utilizar a importância crescente dos trabalhadores urbanos como trunfo na luta política

Carisma instrumental

Boris Fausto

Ao final de uma palestra que fiz em Porto Alegre, a propósito dos 50 anos da morte de Getúlio [em 24/ 08/1954], aproximou-se de mim uma jovem senhora de aspecto enérgico que, entre séria e irônica, me provocou: "Eu não gostei da sua aproximação entre Getúlio e Lula". Ingenuamente, devolvi a observação, perguntando se ela não ficara satisfeita por ser petista ou por ser getulista. Aí, a jovem senhora foi mais enfática: "Ora, professor, eu sou gaúcha, como comparar dr. Getúlio com Lula?". O curioso é que, na comparação, eu tratara de estabelecer o contraste entre dois carismas, mas ela estava pouco interessada em ouvir minha justificação. Queria, sim, expressar seu entusiasmo pelo antigo líder e acabou exemplificando, se preciso fosse, a força de um carisma que resiste ao passar dos anos. Foi Bolivar Lamounier quem primeiro observou que, ao assumir o poder em outubro de 1930, Getúlio inaugurou as presidências carismáticas. Até então, os dirigentes do país prescindiam desse traço, não porque fossem necessariamente destituídos dele, mas porque, naquele tempo, qualidades carismáticas eram prescindíveis para conferir legitimidade política. Como se sabe, no sistema da República Velha, as candidaturas nasciam de um "clube de notáveis"; as campanhas eram quase sempre mera formalidade -Rui Barbosa, como opositor, foi uma exceção- e, para manterem-se no poder, os presidentes dependiam do apoio das elites, e não de uma rala massa popular. Getúlio utilizou o recurso do carisma não só por ter qualidades pessoais para tanto, mas principalmente por ter vivido numa nova época, como soube perceber. Época em que os trabalhadores urbanos -não redutíveis apenas à classe operária- começavam a ser um trunfo na luta política para quem fosse capaz de obter seu apoio, com um mínimo de mobilização. Depois dele, nenhum presidente prescindiu do carisma, se descontarmos os do regime militar -presidentes em sentido impróprio- , que se legitimaram pelos êxitos econômicos, enquanto existiram, e se impuseram pela coerção. A exceção, entre os eleitos, foi o general Dutra, não por acaso também um militar, o que não quer dizer que militares sejam necessariamente destituídos de carisma. Retomo a figura da jovem senhora de Porto Alegre e, com ela, o conceito weberiano de carisma. Ao comparar Getúlio e Lula, eu pretendia reforçar a noção de que o carisma é um dom de liderança, reconhecido pelos seguidores do líder, mas cujo conteúdo pode variar e até contrastar sensivelmente, por uma série de razões.

Lula e Getúlio
O carisma de Lula tem como principal alicerce a origem popular, ressaltada menos pelo discurso e mais por sua aparência física e por seu estilo. A simplicidade, estudada ou não, que o leva a dizer coisas que na boca de outro presidente seriam um desastre, aproxima-o da massa popular e até mesmo de um setor de elite que alivia assim, a baixo custo, o sentimento de culpa. É claro também que o fato de Lula ter arquivado -ao que parece, para sempre- a aventurosa "ruptura do modelo" ajudou muito. O carisma de Getúlio tinha outros componentes. Sua origem "aristocrática" jamais lhe permitiria transformar-se em líder popular em sentido estrito. Esse traço, aliás, barraria sua ascensão ao poder naquele tempo e até em tempos mais recentes. Pelo contrário, Getúlio exibiu, sem inibições, marcas de "aristocratismo": entre elas, o chapéu gelô e o charuto emergindo da boca, destacado em tantas caricaturas da época. Seu dom carismático se revestia de uma aura de paternalismo -expressa no conhecido bordão "pai dos pobres"-, muito eficaz para ir ao encontro dos anseios de uma massa desvalida, cuja capacidade de articulação autônoma era bem reduzida. O conteúdo do discurso, apesar da forma monótona e empolada, pelo menos para os ouvidos de hoje, foi um elemento importante, no sentido de compor o carisma do personagem. Vejam, a respeito, a freqüente referência em sua fala aos "humildes", que ganhou mais concretude nas mensagens aos "trabalhadores do Brasil", acompanhadas de um crescente apelo mobilizador. O suicídio do presidente, interrompendo bruscamente o chamado segundo governo Vargas [1951-54], reforçou o carisma, já agora no plano da memória. O drama da morte de um Getúlio, acossado por seus inimigos, gozando ao mesmo tempo de grande prestígio popular, tornou-o uma persistente lembrança -mitificada ou não- que poucas figuras políticas alcançaram. Teria sido o suicídio uma opção pessoal desesperada ou um último e calculado gesto político? A meu ver, ambas as coisas. Lembremos, sob o primeiro aspecto, que a idéia do suicídio em situações limite não foi incomum na vida de Getúlio. Vejam uma anotação de seu "Diário", de 3 de outubro de 1930, quando eclodiu o movimento revolucionário, caminho que Getúlio tanto hesitou aliás em empreender. Diz ele, a certa altura: "E se perdermos? Eu serei depois apontado como o responsável, por despeito, por ambição, quem sabe? Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso".

Vida e história
Ao mesmo tempo, o suicídio foi armado como um gesto político que deveria trazer conseqüências para a história do país -circunstância nitidamente exemplificada pela "Carta-Testamento". Afora o conteúdo nacionalista e mobilizador, a "Carta" tem um forte conteúdo emotivo. Nela, entre tantas coisas, Getúlio refere-se às "aves de rapina" em busca de sangue, a um povo "que agora se queda desamparado", lembrando porém que "cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência".
A "Carta-Testamento" tem o conhecido fecho: "Serenamente, dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História". Se a eternidade é duvidosa, tanto para os que mandam quanto para o comum dos mortais, a entrada de Getúlio na nossa história, descartados mitos e ódios apagados pelo tempo, realizou-se plenamente.


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral), do Mais!.


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