São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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Pouco compreendido em seu tempo, "Bouvard e Pécuchet", de Flaubert, prefigura a sacralização da ciência no mundo atual

A futura sociedade dos patetas

Juan José Saer

De todos os grandes romances europeus do século 19, "Bouvard e Pécuchet" [de Gustave Flaubert] é o menos característico de sua época. Ao menos é isso que pensa a maioria de seus críticos: para alguns, seu lugar apropriado está no século 18, ao lado de "Cândido" [de Voltaire], obra com a qual guarda certa familiaridade, e das "Viagens de Gulliver" [de Jonathan Swift]; para outros, antecipa o século 20, e Borges [1899-1986], por exemplo, coloca-o entre os precursores de Kafka [1883-1924]. Os amigos e admiradores de Flaubert ficaram pasmos ao saber do projeto. [O filósofo] Taine o teria aconselhado a abandonar a empreitada se a imprensa já não tivesse divulgado que ela estava em curso. Zola e Turguêniev, seriamente preocupados, insistiam: é um tema para ser tratado superficialmente, um conto filosófico à maneira do século das Luzes. Mas o plano já estava esboçado, e o método, exigente ao máximo, escolhido: "Só terá sentido como conjunto. Não conterá nenhum "morceau de bravoure", nada especialmente brilhante, e apresentará sempre a mesma situação, que terá de variar em seus diferentes aspectos. Receio que será de um tédio mortal", diz Flaubert em sua correspondência.

Vivacidade
Esse princípio de construção repetitiva enganou muitos leitores, que atribuem ao texto uma certa imobilidade e até, por causa do final planejado (a morte impediu Flaubert de terminar o romance), no qual os dois amigos voltam a se estabelecer como copistas, uma espécie de circularidade, de regressão ao infinito. Nada mais falso: dezenas de apólogos taoístas ou budistas ilustram, no percurso de um discípulo, depois de muitos erros filosóficos, um retorno à posição inicial, embora transformado pela multiplicidade de experiências vividas e, sobretudo, pela soma de supostas verdades desbaratadas. Os dois copistas que no início do texto encarnam a tolice, a idiotice, perto do final, no tão comentado capítulo 8, "enxergam a tolice, mas já não a toleram". Não são os mesmos, e Flaubert se viu obrigado a explicar com argumentos lógicos, conforme a estética realista, a verossimilhança dessa transformação. Quanto à imobilidade, se pensarmos bem, veremos que, ao contrário, a narrativa é animada por uma intensa vivacidade. A hiperatividade dos dois amigos, a alternância de entusiasmos e decepções, a fome de conhecimento e a contínua vontade de verificar sua exatidão na prática determinam aquilo que Pavese [1908-50] considerava o elemento fundamental de toda narração: o ritmo dos acontecimentos. A primeira cena do romance tem uma lentidão calculada e uma forma teatral, com os dois heróis, numa tarde de intenso calor, depois de alguns instantes em que se descreve um cenário vazio, vindo de direções opostas para se sentar no mesmo banco perto do canal Saint Martin.

Desdramatização
A descoberta de afinidades, o nascimento da amizade, o projeto quase impossível de se instalarem no campo, a herança inesperada recebida por Bouvard (em 20 de janeiro de 1839) e as diversas etapas até que o projeto vira realidade vão se sucedendo com a habitual fluência flaubertiana. Mas, quando o relato entra no exame do saber contemporâneo, o ritmo se acelera.
As críticas que Flaubert recebeu estavam, todas, baseadas em preconceitos realistas: como os personagens não envelheciam, não mudavam, não morriam, pensava-se que o romance cometia graves erros de representação. Na realidade, Flaubert não fazia mais do que aplicar de forma radical um princípio que já utilizara em "A Educação Sentimental": a desdramatização da intriga, que influenciou quase toda a grande narrativa do século 20.
Para estudar química, seguiram o curso de Regnault e aprenderam, em primeiro lugar, que "os corpos simples são talvez compostos". São classificados em metalóides e em metais, diferença que não tem "nada de absoluto", diz o autor. Do mesmo modo, a propósito dos ácidos e das bases, "um corpo pode se comportar à maneira dos ácidos ou das bases, dependendo das circunstâncias". Depois de fracassarem na agricultura, na jardinagem, no fabrico de conservas, os "dois compadres" percebem que devem estudar ciências e, muito sensatamente, resolvem começar pela química, por causa da desastrosa experiência das conservas.
E, embora o primeiro parágrafo do primeiro tratado da primeira disciplina que abordam mergulhe ambos na mais paralisante perplexidade, passado o primeiro estupor, entregam-se ao frenético exame do saber humano, das teorias da evolução à metafísica, da geologia ou da fisiologia ("o romance da medicina") à religião. A intenção de Flaubert é muito clara na escolha dessas primeiras definições vagas ou contraditórias: quer mostrar que o problema não reside necessariamente no leitor.
Também a escolha de dois "idiotas", no sentido etimológico de "leigos", permitiu-lhe colocar um espelho neutro diante do saber de seu tempo, um espelho que reflete a verdadeira imagem desse saber, assim como, em outro texto célebre, a distorção não está na cabeça do bufão, e, sim, fora, na corte de Lear. É a condição de leigos que faz Bouvard e Pécuchet parecerem dois patetas.
Do mesmo modo, na sociedade atual, que é prolongação da deles, num contexto em que a ciência e a tecnologia foram sacralizadas, não apenas o homem comum está em posição semelhante à dos personagens de Flaubert, mas também os mais eminentes especialistas em relação ao infinito número de disciplinas que diferem de sua especialidade.
Nesse sentido, se "Bouvard e Pécuchet", como dizíamos no início, é um livro característico de seu tempo e mais ainda do nosso. O leitor de hoje pode rir muito lendo os contratempos de seus heróis, mas muitas vezes "ri com um nó na garganta". Em suas cômicas vicissitudes de aprendizes de feiticeiro, reconhece o modelo primitivo do atual cientificismo devastador, que, sob o pretexto de melhorar a vida, exige um cheque em branco dos leigos, que se contam aos bilhões e que vêem, a cada passo, a esteira de escombros que os supostos benefícios da ciência e da tecnologia vão deixando em muitos pontos do planeta -e até fora dele.
Flaubert, como se sabe, afirmava que Madame Bovary era ele; poderia ser possível. Em compensação, não resta dúvida que Bouvard e Pécuchet somos nós.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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