São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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+ filosofia

O medievalista defende que o conceito de tolerância é uma invenção anacrônica do Iluminismo e incapaz de resolver os conflitos religiosos contemporâneos

O descompasso da razão

Luiz Felipe Pondé
especial para a Folha

Alain de Libera é uma das principais figuras da filosofia medieval hoje. Professor da Universidade de Paris e de Genebra, sua crítica de medievalista identifica um enorme analfabetismo filosófico-religioso entre nós, descendentes dos preconceitos humanistas de Rabelais (escritor francês, 1494-1553) e naturalistas Bertrand Russell (1872-1970), fato esse que implica uma cegueira sutil. Por exemplo, nossa incompetência em pensar a moral sem confundi-la com "gestão ética de recursos humanos".
Para ele, "a medieval" é um abissal embate noético de raízes teológicas (há que ser abissal para pensar o transcendente), que em muito pode iluminar algumas das nossas trevas modernas. De Libera, 53, recebeu o Mais! na Universidade do Porto, onde se realizou entre 26 e 31 de agosto o 11º Congresso da Sociedade Internacional para o Estudo da Filosofia Medieval.

Como você vê a atividade de historiador da filosofia medieval hoje?
Lamento que, apesar de termos muita pesquisa profunda sobre vários autores, não haja hoje muita gente preocupada em refletir sobre o papel do filósofo historiador, isto é, não se reflete sobre essa nossa função de dialogar com o passado. Penso que fazer história, principalmente em filosofia, é ser agente de perturbação das concepções de mundo nas quais estamos inseridos.
O que teríamos a aprender -para além do exercício disciplinado da pesquisa que nos é ensinado na formação acadêmica em filosofia- com um pensamento que peca por ser ao mesmo tempo metafísico e teologicamente orientado? O filósofo norte-americano Richard Rorty há muito tempo sintetizou isso, dizendo que o vocabulário teológico é decadente e sem significado cognitivo.
Há muito a aprender com a teologia e a religião intelectualmente articulada, como é o caso do pensamento medieval. Sei que você se refere àquela idéia que normalmente ouvimos de pessoas que se acham inteligentes, como muitos intelectuais e comentaristas de programas supostamente eruditos na TV, que, quando se vêem diante de "barbarismos", soltam aquele lugar-comum "oh, que horror, voltamos à Idade Média!!", no sentido de que, naquela situação "bárbara", apagou-se a luz da razão. Eu diria que, em certas situações, seria melhor que voltássemos à Idade Média, principalmente em se tratando de filosofia. Arriscaria dizer que a filosofia medieval tardia é, de certa forma, o outono da filosofia.
Isso significa que hoje é que viveríamos "nas trevas"?
Onde mais temos judeus, cristãos e islâmicos dialogando lado a lado, desenvolvendo argumentos que buscam algum consenso lógico? Por exemplo, toda essa discussão sobre o diálogo inter-religioso e o drama do fundamentalismo religioso atualmente é um exemplo claro da ignorância pós-medieval: pensamos que podemos discutir com indivíduos para os quais suas formas de vida são alicerçadas em Deus, unicamente a partir de pressupostos socioeconômicos, psicológicos ou políticos. Obviamente tais pressupostos fazem parte do tratamento intelectual de problemas humanos, mas não há como discutir fundamentalismo religioso sem conhecimento sólido de religião e teologia. É um erro clássico do ocidental moderno pensar que seus argumentos anti-religiosos tenham valor para alguém como um religioso fundamentalista; o terreno da discussão é antes de tudo teológico e filosófico, o diálogo deve ser aberto nesse lugar em que religião e pensamento se encontram. Devemos ser pouco otimistas com o alcance de nossas possibilidades em lidar com os problemas religiosos atualmente, se insistirmos nessa forma de ignorância.
O erro estaria em pensarmos que onde há religião não há atividade inteligente e vice-versa?
Claro. Podemos perceber essa ignorância com relação ao passado medieval e à espessura de sua atividade filosófica e teológica quando, por exemplo, ouvimos referências ao paraíso "andaluz", porque judeus, islâmicos e cristãos viviam lado a lado em "tolerância religiosa". Normalmente se toma Averróes (1126-98) como esse símbolo andaluz da "tolerância". Não há "tolerância religiosa" na Andaluzia, esse conceito é iluminista, portanto, posterior. Pensar assim é anacronismo. Para falar em tolerância é preciso pressupor a idéia de que não vale a pena, por uma série de razões, discutir os argumentos teológicos do outro.
A idéia filosófica de tolerância dessa forma aparece como um tipo sofisticado de "preguiça" intelectual?
Sim. O que temos na filosofia da Idade Média, que é sua característica diferencial, é sua batalha de argumentos; não há tolerância de idéias, o que há é a busca de consenso argumentativo, o que implica necessariamente a idéia de que as partes entendem que é importante compreender logicamente e avaliar as formas religiosas de vida e de pensamento do outro. A pergunta filosófica medieval é: o que autoriza intelectualmente você, a partir do seu livro religioso de referência, a afirmar o que afirma? Averróes, nesse sentido, representa sim o momento anterior a um certo fracasso da filosofia. A modernidade desqualifica a tradição, atitude absurda para o medieval, e com isso mergulha nas trevas. A filosofia medieval tardia é um luto filosófico. Sem apropriação da tradição religiosa e de seu tratamento intelectual, não há pensamento possível. Mesmo a última encíclica do papa sobre fé e razão é triste nesse sentido: se um medieval a lesse, a consideraria "ultrapassada".
Mas conceitos do tipo "pecado" e "Mal" podem ser consistentes para as ciências humanas? Um ilustrado afirmaria que o Mal é uma função da sociologia da miséria. Ele pode mesmo "sacar" Bataille e fazer um elogio ao charme da transgressão.
Claro que o assalto que o FMI está fazendo a vocês e aos argentinos não pode ser explicado unicamente pelo conceito de Mal. Mas daí a supor que esse tesouro negro, que é a cultura ancestral que reflete sobre o Mal e o pecado, pode ser simplesmente lançado ao lixo é um erro metodológico-científico! Devemos dialogar com esse tesouro negro que em muito nos supera (as ciências refletem mal sobre essas questões), pois nele temos idéias como a de Agostinho, segundo a qual não há "supremo Mal" ou "fundamento do Mal", mas simplesmente um gigantesco parasitismo ontológico da força criativa humana e divina (o Bem). Isso implica que o Mal necessariamente não leva a lugar nenhum, pois não toca nenhum "fundo", sendo um impossível Nada; portanto é, necessariamente, um nômade nas variações da miséria.


Luiz Felipe Pondé é professor de filosofia da pós-graduação em ciências da religião e do departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), da Fundação Armando Álvares Penteado e professor convidado da Universidade de Marburg (Alemanha). É autor de, entre outros, "O Homem Insuficiente" (Edusp).

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