São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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Os portões do paraíso

Divulgação
Al Jolson e Eugenie Besserer em cena de "Cantor de Jazz"



Para o autor de "Tudo O Que É Sólido Desmancha no Ar", o filme de 1927, sobre o filho de um cantor de sinagoga que, após trocar de nome e pintar o rosto de negro, trilha uma carreira de sucesso na Broadway, dramatiza o surgimento do "melting pot" americano


por Marshall Berman

Com a disseminação dos videoclubes, o filme de 1927 com Al Jolson "O Cantor de Jazz", dirigido por Alan Crosland, é cada vez mais fácil de assistir. Pena que quase ninguém o alugue. Não apenas ele é o primeiro filme falado e provavelmente o primeiro vídeo musical como é uma síntese surpreendente de dois gêneros muito diferentes: o espetáculo de menestrel e o "Bildungsroman".


Bildungsroman A expressão alemã significa, literalmente, "romance de formação". Nos estudos literários, o termo é usado para definir aqueles romances que traçam a trajetória de vida do protagonista, da juventude à maturidade. O exemplo mais clássico do gênero é o "Wilhelm Meister", de Goethe, dividido em duas partes, "Os Anos de Aprendizado" e "Os Anos de Peregrinação".


A maioria dos americanos letrados tem uma idéia de quão importante o "Bildungsroman" sempre foi em nossa auto-análise nacional. Poucas pessoas sabem da duradoura importância de nossa tradição do menestrel,


Espetáculo de menestrel Na Idade Média, menestréis eram artistas da corte ou ambulantes que recitavam e cantavam poemas em versos, geralmente acompanhados de instrumentos. A palavra também designa o músico ou comediante pertencente a um grupo de artistas norte-americanos surgido no início do século 19, cujas canções e brincadeiras eram típicas da cultura negra.


com sua grande seriedade envolta em palhaçada. O livro que me ensinou isso é "Love and Theft" [Amor e Furto, Oxford University Press, 328 págs., US$ 21,95], de Eric Lott. Não falarei diretamente sobre esse livro rico e fascinante, mas ele me ajudou a ver aonde estou tentando chegar.
O momento mais marcante de "O Cantor de Jazz" ocorre mais ou menos com dois terços de filme, quando Al Jolson enegrece. O personagem Jack Robin é o nome do músico que vai trabalhar sobre si mesmo nessa cena; mas o público lembra quem e o que ele era "antes". Nós o conhecemos ainda criança, Jakie Rabinowitz, filho de um cantor de sinagoga no Lower East Side (o filme chama o bairro de "gueto de Nova York"). Nós o vemos e ouvimos cantar em clubes e nas ruas: na verdade, suas canções foram os primeiros sons na história do filme sonoro.
O roteiro, de Alfred Cohn (publicado por Robert Carringer, Universidade de Wisconsin, 1979), diz que Jakie/Jackie tem 13 anos, a idade da cerimônia religiosa do bar mitzvah, quando os meninos judeus tradicionalmente se tornam homens [e assumem a responsabilidade religiosa e civil dos seus atos], mas o menino que vemos parece ter menos de 10. Ainda assim, esse menino (interpretado por Bobby Gordon) sabe cantar e sabe encher a tela. Ele canta a balada de amor vitoriana tardia "My Gal Sal" e "Waiting for the Robert E. Lee", um favorito do Tin Pan Alley. Seu pai, o cantor de sinagoga, é avisado e o arrasta para fora do café, proclamando sua eterna desgraça ("sua música da devassidão das ruas"), bate nele e o chuta para fora. Jakie mergulha no caldeirão do vaudeville, se unge de um novo nome, "Jack Robin" e, assim como muitos grandes artistas americanos, cresce na estrada. Durante anos não olha para trás. Mas um dia ele ouve um cantor religioso e é levado para o passado. O cantor no filme é uma pessoa real, Yoselle Rosenblatt, uma das primeiras figuras religiosas judias a gravar sua voz e comercializá-la. Jack/Jakie o escuta em um teatro em Chicago, numa "Matinê Especial de Canções Sagradas". O clímax do concerto é um sucesso ídiche, "Eili, Eili": "Meu Deus, meu Deus, por que me esquecestes?". Essa canção é uma adaptação do "Salmo 22", escrita para o vaudeville ídiche em Nova York na década de 1890. Não toda, mas grande parte da platéia sabia que não era a única adaptação nem a mais famosa. A mais famosa é o "cri de coeur" de Jesus na cruz (Mateus, 27:46). No filme, o cantor que interpreta "Eili, Eili" se dissolve em uma visão onírica do pai que o herói perdeu, de modo que seu romance familiar se embebe do patos da morte e do martírio. Jack/Jakie fica surpreso com tudo o que perdeu. Ele começa a meditar, passa a sentir que falta algo no "self" que criou para si.

Palhaços tristes
Aos poucos o herói consegue um emprego no "April Follies", na Broadway. Agora pelo menos ele tem uma oportunidade de se apresentar e ser reconhecido como astro em sua cidade natal. Nós, o público, ouvimos sua voz ascendente e expansiva e sabemos que ele tem estofo, mas tememos seus contrafluxos mórbidos. Seu número lembra muito os dos palhaços tristes que assolam o teatro ocidental, Arlequim, Pagliacci, "Aquele Que Apanha" e toda uma linhagem de grandes menestréis (Jolson tinha se apresentado com os Dockstader Minstrels quando criança), exceto que, quando o vemos, ele não está confortável com sua tristeza: os planos sobre seu rosto se afastam em várias direções e não se conectam. A narrativa, o ritmo e as tonalidades de "O Cantor de Jazz" foram cuidadosamente construídos para nos mostrar que a história do herói não é principalmente sobre o teatro ou sobre o sucesso, mas sobre o que [o poeta inglês] Keats chamou de "construção da alma" e Erik Erikson, de "egoidentidade". Esse homem seria capaz de organizar sua vida? Esse filme nos obriga a sentir que o que está em jogo é a identidade. Gostemos ou não, todos participamos disso. Tudo é armado para nos preparar para o ensaio geral, o momento solene em que vemos o herói realmente construir o "self" que ele está tentando se tornar. No camarim de Jack Robin, esse "self" é negro. Ainda me lembro de minha revolta, aos 9 anos, quando vi pela primeira vez a pintura e me espantei com o que esperava ver -"O quê? Eles acham que vamos engolir isso?"- e minha incredulidade ao ver que realmente funcionava. Jolson enegrece e, pasmem!, pela primeira vez no filme parece uma pessoa séria e íntegra. Ele se olha no espelho para verificar as mudanças. O encontro entre ele e sua imagem no espelho é arranjado cuidadosamente. Reconhecerá a si mesmo? Como vai lidar com o homem que vê? Enquanto ele olha, sua visão se fragmenta numa montagem de caleidoscópio (nos anos 20 esse gênero ainda era novidade) e o remete ao passado, para a sinagoga de seu pai, para Jakie Rabinowitz, o menino cuja espontaneidade e alegria ele reprimiu durante 20 anos. Mas ao mesmo tempo, emoldurando aquele jovem ser, está o rosto de um homem maduro, pensativo e espiritual -não um homem negro, mas um homem que fez da negritude um projeto. Existe algo incrível no rosto negro que ele construiu. É como se esse cantor tivesse transformado o número de menestrel Swance River num rio Jordão interior que ele precisa atravessar para crescer. Veja aqueles olhos: ele parece um "mensch", um homem digno que realmente encontrou seu caminho. Mas por que negro? Qual é o poder da negritude para Jack? Logo depois do momento de revelação no espelho, outro clown surge no palco com mais uma revelação. Ele é "Yudelson, o "Kibitzer", o bisbilhoteiro do gueto". Essa figura vulgar e sorrateira (interpretada por Otto Lederer) não fica muito tempo em cena, mas tem um grande papel na história, cruzando limites vitais. No início do filme, era o amigo do cantor religioso, mas também um "flâneur" e um amante da cultura das ruas; ele ouviu "Ragtime Jackie" em um clube decrépito e imediatamente o entregou a seu pai. Na última cena, quando Jack/Jakie canta "Mammy" e conquista a Broadway, Yudelson passa carinhosamente o braço ao redor da mãe de Jack. Yudelson está ali para dizer ao Cantor de Jazz que seu pai está morrendo e para pedir que ele volte para a família, o bairro, a sinagoga e Deus. Ele pode reconhecer o herói pela voz: "Sim, esse é Jakie, que tem um grito na voz, como no templo". Mas quando o encontra cara a cara, maquiado de preto, fica desorientado: "Jakie, esse não é você". Então se volta para a platéia para comentar a ação de que participa e subitamente muda de idéia. Ele reconhece que o homem a seu lado é Jackie, afinal, mas um Jackie que passou por grandes mudanças: "Ele fala como Jakie", ele diz, "mas parece sua sombra".

Projeção e identificação
Na verdade, a sombra é uma imagem básica na história da reflexão sobre o "self" e o outro. Ela remonta a muito tempo atrás: lembram-se das sombras na caverna de Platão, 2.400 anos antes? Mas não é explorada com a profundidade que merece até a criação da psicologia moderna, cujo horizonte de tempo é quase exatamente o do cinema: "A Interpretação dos Sonhos", de Freud, foi publicada no dia de Ano Novo de 1900. Para os psicólogos modernos, a metáfora da sombra é sobre os processos mentais e universais que eles chamam de "projeção" e "identificação". Esses processos funcionam no interior do "self" de maneiras radicalmente diferentes.
Na projeção, atribuímos a outras pessoas sentimentos e desejos que não podemos aceitar em nós mesmos. Ao fazer isso, restringimos o âmbito de nosso ser e nos envolvemos num estado de guerra interminável, não apenas com os vizinhos, mas conosco mesmos, principais suspeitos em uma busca desesperada por pureza.
Na identificação, desejamos os outros, queremos alcançá-los e tocá-los, falar com eles, estar junto deles, ser iguais a eles. A identificação ajuda as pessoas a crescer, a tornar-se mais do que eram, ampliar quem elas são e aprender a viver em paz. Mas nenhum de nós é capaz de se identificar com outras pessoas enquanto não pudermos nos identificar com o lado escuro de nós mesmos, enquanto não pudermos trazer nossas sombras para a luz e encontrar maneiras de conviver com elas.


Tudo é armado para nos preparar para o ensaio geral, o momento solene em que vemos o herói realmente construir o "self" que ele está tentando se tornar; no camarim de Jack Robin, esse "self" é negro


Dito isso, ainda não sabemos o que há nessas sombras. Deve haver alguma força emocional que o Cantor de Jazz sente quando usa uma máscara preta, da qual ele se sente privado quando se move apenas com seu rosto judeu. Lembrem-se do contexto histórico: em 1927, quando "O Cantor de Jazz" foi feito, os judeus americanos acreditavam ter "chegado", acreditavam estar finalmente "em casa".
Eles deveriam se sentir tranquilos e gratos (naqueles anos, Hitler ainda era um rosto na multidão). Os negros, por outro lado, embora libertos da escravidão, estavam sendo linchados e humilhados por leis que pareciam feitas por escravagistas. Alguns negros estavam deixando marcas nas cidades do norte, assim como no desenvolvimento do próprio jazz.
Mas a grande maioria, como as personagens de William Faulkner [1897-1962", ainda estava trancada no sul rural. Excluídos da luta social, eram obrigados a ficar perto de casa e, ironicamente, eram obrigados a preservar "o grito em sua voz", o som da emoção humana primal. Pelo menos essa era a aura através da qual os judeus americanos simpatizantes e também os cristãos americanos passaram a vê-los.
Poderíamos dizer que a fala de "sombra" de Yudelson entrega toda a história de "O Cantor de Jazz": um épico do século 20 em que os imigrantes judeus se identificam com os negros de maneiras que ajudam a desenvolver a cultura de massas e o liberalismo multicultural. Mas essa não é exatamente toda a história. Quando procurei essa fala [a de Yudelson] no script de filmagem de Alfred Cohn, havia algo muito diferente do que estava na tela. O que Yudelson diz na versão impressa é: "Ele fala como Jakie, mas parece um crioulo". Então a primeira versão era um insulto racista. Incrível! O que aconteceu?
Não sei. Mas de alguma forma, no processo de produção cultural, ocorreu uma revolução obscura, despercebida e talvez até inconsciente.
Aquela palavra teria lembrado os horrores de "O Nascimento de uma Nação" [clássico de 1915 de D.W. Griffith, que encena o conflito de duas famílias devido à Guerra de Secessão e também o surgimento da Ku Klux Klan]? O pessoal nos bastidores tremeu e pensou "nunca mais"? Em alguns minutos, talvez até segundos, uma cusparada no rosto negro se metamorfoseou em alguma coisa próxima de um abraço, e o filme cresceu. Os escritores negros têm tratado "O Cantor de Jazz" cordialmente, em geral: "O coroamento e o sucesso definitivo da tradição do rosto pintado de preto", disse Donald Bogle, "a tradição do menestrel em seu auge, corrupto e sentimentalizado". Podemos ter quase certeza de que não teriam sido tão amáveis se aquele "crioulo" tivesse chegado à tela. Mas aquele "crioulo" apagado e rejeitado também faz parte da verdade. Pelo menos desde o fim da escravidão, e provavelmente antes, os negros usam a palavra "crioulo" ["nigger"] para se referir a outros negros que eles consideram realmente baixos, rudes, desleixados, não-idealizados -"nada parecidos com o sol". É sobre pessoas negras que outras pessoas negras advertem seus filhos para tomar cuidado. Gerações de crianças negras cresceram ouvindo as ordens de seus pais: "Não se comporte como um crioulo", "não se vista como um crioulo", "não seja um crioulo". O maravilhoso "A Hora do Show" ("Bamboozled", 2000), de Spike Lee, mostrou que o próprio Lee é uma dessas crianças. Mas, mesmo que os Estados Unidos do futuro aprendam a tratar todos os negros com decência e sensibilidade e mesmo que os americanos se tornem realmente tão unidos quanto as pessoas no belo e comovente mural que Spike Lee criou no início de "He Got Game" (Ele Tem Jogo, 1998), ainda não haverá vacina capaz de nos imunizar contra "o crioulo", nenhum bálsamo para lavar o arame preto do nosso cabelo.

Os últimos serão os primeiros
As razões para isso são complexas. O fato é que todos vivemos numa cultura profundamente comprometida, não apenas com uma vida mental de oposições binárias, mas com a idéia paradoxal de que "os últimos serão os primeiros". A versão cristã dessa idéia é elaborada nos Evangelhos. Mas ela é mais antiga, pelo menos tanto quanto o livro do Êxodo, em que a própria escravidão e a opressão do povo de Israel são vistas como fontes de seu poder e sua glória. A antiga teologia judaica e cristã, o moderno radicalismo judeu e a militância negra se encontram em torno da glorificação dos despossuídos da terra, os mais baixos dos baixos. Esse romance "noir" fez Nietzsche arrancar seus cabelos brancos. Mas, embora tenha fugido disso, ele não pôde se esconder. E nós tampouco podemos. Ele aparece nas primeiras páginas da moderna cultura de massas e na economia de consumo do século 20, com seu "mínimo denominador comum". Ele adorna a porta de ouro da democracia americana, louvando a Estátua da Liberdade como uma deusa da imigração que se abre para "os rejeitados das fervilhantes praias (estrangeiras)". Mas voltemos ao camarim de Jack Robin. Há muitas maneiras de um rosto negro ajudar um judeu. Michael Alexander, logo no início de seu recente estudo "Jazz Age Jews" [Princeton University Press, 264 págs., US$ 24,95], coloca bem isso. Enquanto a geração de Jolson saiu do gueto para a classe média americana, "alguns de seus membros exibiam um comportamento peculiar que não correspondia a suas novas posições sociais. Eles agiam como se estivessem cada vez mais marginalizados. Além disso, muitos se identificavam com indivíduos e grupos menos afortunados (...) imitando, defendendo e realmente participando da vida grupal dos americanos marginalizados. (...) A identificação com o marginal (...) é um paradoxo na psicologia dos judeus americanos. Enquanto os judeus se moviam para cima, eles se identificavam com os de baixo". Do ponto de vista da expansão da consciência, do crescimento pessoal, "Bildung", o salto na negritude poderia abrir caminhos culturais frutíferos. Para os jovens judeus que não queriam se tornar confortáveis "allrightniks", o rosto negro permitia que se sentissem firmemente e até virtuosamente americanos, sem precisar sentir-se brancos. Ao longo das gerações, isso poderia ajudá-los a se tornar Jerome Kern, os irmãos Gershwin, os irmãos Marx, Dorothy Parker, A.J. Liebling, Mezz Mezzrow, Lenny Bruce, Leonard Bernstein, Norman Mailer, Allen Ginsberg, Bob Dylan, Lou Reed, Laura Nyro, Dr. John, Doc Pomus, Richard Price e tantos outros que esqueço ou nunca conheci. Durante décadas, pessoas como essas ajudaram a escavar a vasta riqueza da cultura negra e a revelá-la para milhões de brancos que não a conheciam. E eles confrontaram a América com um 'j'accuse" ("eu acuso!"): a traição a seus negros é prova da traição a si mesma. Tudo isso é ótimo. Mas, ainda assim, qualquer judeu que seja "hip" o suficiente para querer ser negro ou mesmo para se pintar de preto é inteligente o bastante para saber que há algo não "kosher" nesse negócio. Sabemos o quanto recebemos deles. Mas o que eles receberam de nós? Na verdade, essa sensação incômoda de culpa define o clímax de "O Cantor de Jazz". Quando Yudelson pede a Jack/Jakie que volte e use sua voz para ajudar seu pai a morrer, a música que ele quer que o Cantor de Jazz cante se chama "Kol Nidre". Para muitos judeus, esse canto é o momento mais dramático e espiritualmente intenso do ano. Ele acontece na noite em que começa o Yom Kippur, o Dia do Perdão. Muitos judeus seculares que nem sonhariam em ir à sinagoga por todo o ano ainda sentem que devem estar lá nessa ocasião. "Kol Nidre" é especial porque é uma oração dirigida não a Deus, mas a outros homens e mulheres. É uma oração pelo autoconhecimento. Deveríamos reconhecer o modo como ferimos uns aos outros o ano todo, não apenas em nosso comportamento explícito, mas em nossas sombras, em fantasia ou desejo.

O canto do coração
No clímax de "O Cantor de Jazz", Jolson canta a oração "Kol Nidre" com uma força emocional e uma intensidade que até então ele não tinha. O ato de voltar para seu pai e sua mãe e para o "gueto", de conectar sua maturidade à sua infância, liberou a energia inconsciente e atingiu a profundeza emocional. Agora ele consegue cantar "do coração" pela primeira vez na vida.
Pelo perdão de quem o Cantor de Jazz está rezando? Talvez o de seus pais, a cujo mundo ele nunca pôde pertencer; talvez o de seus amigos do "show business", que acreditaram nele e o ajudaram a chegar ao palco principal que agora está jogando fora (é no que ele acredita).
É difícil saber quem está na lista de uma pessoa; e na verdade o ritual do Kol Nidre é concebido coletivamente, de modo que todo mundo representa todos os outros. Mas podemos estar quase certos de que a lista de Jakie -e a de Jolson- inclui os negros que lhe ensinaram tanto, cujos rostos, lábios, olhos, ritmos, melodias e esperanças ele abraçou e agarrou e tornou seus e cantou, improvisou e gritou para o mundo.
Isso não significa que teria suportado acusações como as de Mike Rogin (em seu livro "Black Masks, White Noise"), de que não apenas "O Cantor de Jazz", mas praticamente toda a cultura pop criada pelos judeus no século 20 faz parte de um gigantesco "crime primal judeu contra os negros". Mas certamente é verdade que o cozido emocional de "O Cantor de Jazz" inclui algum tipo de sensação de culpa em relação aos negros. Ele quer ser perdoado sob a alegação de que seu grande furto foi causado por amor.


Para os jovens judeus que não queriam se tornar confortáveis "allrightniks", o rosto negro permitia que se sentissem firmemente e até virtuosamente americanos, sem precisar sentir-se brancos


O filme de 1927 foi na verdade a terceira encarnação de "O Cantor de Jazz". A primeira foi um conto de Samson Raphaelson, publicado na "Everybody's Magazine", em 1922, como "O Dia do Perdão". A segunda, chamada "O Cantor de Jazz", foi uma adaptação para teatro, também de Raphaelson. Foi estrelada por George Jessel e ficou na Broadway de 1925 a 27; a temporada terminou alguns meses antes da estréia do filme.
As encarnações da história divergem de várias maneiras, mas todas justificam o mito de que "os últimos serão os primeiros": o ato de rejeitar a artificialidade da Broadway em favor de valores supostamente mais "autênticos" torna o herói autenticamente qualificado para o sucesso na Broadway. No filme o script termina com o lamento bastante desajeitado da namorada "goyishe" do herói: "Você está ouvindo o maior comediante de cara negra dos palcos cantando para seu Deus". A tela escurece até o preto. Mas então, um instante depois, aparece a legenda: "A temporada passa -e o tempo cura-, o espetáculo continua". A trilha sonora se torna mais rápida e jazzística, e a tela corta rapidamente para uma vista espetacular das luzes ofuscantes de Times Square. Corta para um teatro da Broadway, onde o herói de cara negra canta "Mammy" num estilo ao mesmo tempo de cantor religioso e operístico, num nível de energia avassalador. Sua mãe está na platéia, de braço dado com Yudelson, e um sorriso de êxtase passa entre mãe e filho. Não apenas o pai morto do herói, com seus mandamentos e seus comandos, mas todo o trágico dilema que o filme bloqueou tão bem parecem pertencer não apenas a outra era, mas a outro planeta. "O Cantor de Jazz" nos leva numa viagem que a maioria de nós gostaria de fazer. Ele nos mergulha no "realismo mágico" que está no coração da moderna cultura de massa. Nesse novo mundo a tragédia pode se metamorfosear instantaneamente em comédia, e o projeto de abandonar tudo pode acabar sendo apenas um capítulo na dialética de ter tudo. É fácil recusar o mito panglossiano. Mas... Sejamos francos: existe alguém que realmente não queira ter tudo? (O liberalismo não é uma crença de que podemos ter tudo? O marxismo não é uma crença de que precisamos derrubar o capitalismo para então podermos ter tudo?) Se a cultura de massas pode nos fazer felizes, devemos nos negar essa felicidade? Até agora me concentrei na identidade judia. Mas "O Cantor de Jazz" diz a todos os americanos algo crucial sobre sua identidade. Uma das conquistas principais do filme, como indicou Jim Hoberman em "Vulgar Modernism" [Temple University Press, 346 págs., US$ 64,50], é estabelecer Jolson, a primeira voz do cinema mundial, como "o primeiro superstar americano moderno". A comédia popular americana, desde os primeiros carnavais e espetáculos de menestréis até os dias áureos do vaudeville e do burlesco, sempre foi alvo de desprezo e ridículo no culto oficial e solene da pureza branca anglo-saxã. Esse culto assumiu uma nova vida ameaçadora na década de 1920, quando a América fechou suas portas. O Congresso aprovou várias leis para criar um sistema de cotas que efetivamente fecharam a imigração pelos 40 anos seguintes. Essas cotas se baseavam num sonho de uma pureza branca anglo-saxã perdida, poluída e corrompida por um grande fluxo de "outros" escuros e sujos. "O Nascimento de uma Nação", de Griffith, mostrou como os novos meios de comunicação e a cultura de massa em desenvolvimento poderiam ser mobilizados a serviço dessa fantasia. Do outro lado (esquerdo), o vagabundo de Charlie Chaplin deu uma nova vida visual espetacular ao sonho democrático de "os últimos serão os primeiros". Chaplin celebrou a comédia cujo centro criativo é tipicamente uma favela urbana de imigrantes, "um buraco sujo na zona leste", um bairro fervilhante com ruas imundas e porões e multidões de escuros, sujos, maltrapilhos, subnutridos "fobs" ["fresh off the boats", recém-desembarcados]. Lugares como esses foram o berço do cinema, do jazz e da cultura de massa moderna e de tudo o que fez dos EUA realmente um "novo mundo".

"Cidadão do mundo"
Randolph Bourne, um jovem discípulo de John Dewey (1859-1952), escreveu um ensaio, "América Transnacional" (1916), que talvez seja a primeira teoria sobre esse mundo. Bourne argumentou que os imigrantes na América não se "assimilam" em um mundo ânglico preexistente: eles misturam suas antigas culturas com as novas condições para criar uma cultura mista, híbrida americana que nunca existiu em nenhum lugar até então. "Somente o americano tem a possibilidade de se tornar um cidadão do mundo", ele disse. Isso queria dizer "não uma nacionalidade, mas uma transnacionalidade, um tecido feito com as outras terras, de muitos fios de todos os tamanhos e cores".
Levou algum tempo para os americanos chegarem a isso. A visão "transnacional" anima muitos murais abrangentes da Frente Popular, filmes antinazistas da Segunda Guerra Mundial, o canônico curta-metragem de Frank Sinatra-Albert Maltz "The House I Live in" [em que Sinatra dá aulas de tolerância religiosa para um grupo de garotos], que ganhou um Oscar especial em 1945. Essa visão foi oficialmente confirmada uma geração depois, quando o Decreto de Imigração, de Lyndon Johnson, abriu novamente os portões em 1965.


O projeto de abandonar tudo pode acabar sendo apenas um capítulo na dialética de ter tudo


É o verdadeiro significado que sublinha a palavra contemporânea "multicultural", uma palavra usada de muitas maneiras confusas e falsas. Você pode vê-la todo os dias em Nova York na linha de metrô nš 7 ou escutá-la nas músicas do rádio. As pessoas que cresceram com ela muitas vezes a tomam como fato consumado, mas as que emigraram de praticamente todos os lugares podem sentir a diferença. Quando Jolson se pinta de preto, executa o primeiro sacramento multicultural da América: ele se constitui ao mesmo tempo como o misturador e a mistura.


Onde alugar
A fita "O Cantor de Jazz", de Alan Crosland, pode ser alugada, em SP, na videolocadora 2001 (av. Paulista, 726, tel. 0/xx/11/251-1044).



Marshall Berman, 62, é professor de ciência política na Universidade de Nova York, com ênfase em estudos urbanos. É autor de "Tudo O Que É Sólido Desmancha no Ar" e "Aventuras no Marxismo" (ambos pela Cia. das Letras). A íntegra deste texto saiu na "Dissent". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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