São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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+ brasil 503 d.C.

O retorno do mesmo

José Arthur Giannotti

A despeito de esta ser a mais rica e movimentada dentre todas aquelas campanhas com as quais passamos a conviver depois da dissolução do regime militar, ela desperta uma incômoda sensação de déjà vu. Por certo a disputa pela Presidência não chega às raias da caricatura com que os candidatos a deputado se revezam diante das câmaras de TV, pronunciado seus nomes, motes e prestando vassalagem aos chefões de seus respectivos partidos.
Mas, abstraindo-se as tiradas retóricas e os xingamentos, quando se comparam as propostas dos quatro candidatos que lideram a disputa, as semelhanças são notáveis, todos eles convergindo em maior ou menor grau para uma posição de centro, propondo mudanças que não questionam a necessidade de nos inserirmos nos processos de globalização, muito menos colocando em dúvida os pilares da sociabilidade capitalista.
Foram-se os tempos em que o ideal do socialismo, a superação do sistema econômico que tem no lucro sua função de ser, punha em xeque a hegemonia do capital. Todos reconhecem a necessidade tanto do mercado quanto de um Estado regulador, todos apontam a mesma direção, convencidos de que a economia e a sociedade brasileiras precisam reduzir o abismo que as separa das economias e sociedades mais desenvolvidas.
As diferenças aparecem, porém, somente nos modos e nos lugares dessa regulação, de como reduzir a dependência externa, de levar a cabo uma política de proteção de nossas atividades econômicas e de nosso modo de ser.
Quando esmiuçadas, elas disparam em linhas divergentes. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recupera o antigo centralismo da esquerda que a direita soube incorporar durante o regime militar; espera que o Estado lhe dê condições de controlar vigorosamente os movimentos do capital. José Serra (PSDB) aponta para um projeto social-democrata que tentaria conciliar, de forma menos centralizada, liberdade de mercado e intervenção estatal; no fundo, trata de montar uma estratégia capaz de diminuir nossa dependência dos fluxos da globalização.
Ciro Gomes (PPS), desde 1996 associado a [o filósofo" Roberto Mangabeira Unger, parte da idéia de que em todas as regiões e países existe uma tensão entre, de um lado, as vanguardas produtivas e culturais, de outro, as retaguardas atrasadas, mas que pode ser superada por um amplo projeto nacional que mostre as vantagens de estarem associadas.
Por que essas diferenças não vêm a público e se tornam os eixos da campanha? A meu ver, porque, além do fato de a discussão se dar sobretudo pela TV, falta ao diagnóstico indicar quais os grupos sociais já existentes que poderiam servir de trampolim para as políticas propostas. Não é à toa que Ciro Gomes e Mangabeira Unger tentam enxergar uma vanguarda paulista como o fulcro dos avanços e dos recuos da situação do país. Mas que identidade possui essa vanguarda que passa por um forte movimento de reestruturação, visto que nunca o dinheiro mudou de mãos tão rapidamente?
No entanto a insuficiência do diagnóstico, mais do que falha técnica, não revela uma vicissitude da política atual, quando a identidade dos grupos e das classes se dissolve no ar? A campanha política não se dirige a uma maioria informe de eleitores, atingidos sobretudo pelo raio da TV, tendo dissolvido suas respectivas sociabilidades prévias e sendo classificados segundo suas capacidades de receber mensagens? Desse modo, a discussão das diferenças profundas não interessa a ninguém, seja porque implica pormenores técnicos que estão além do alcance das massas, seja porque a explicitação divide os votos. Numa democracia de massa, convém aos candidatos pairar nas nuvens e pescar em águas turvas, já que os eleitores deixaram de se confrontar com uma opção radical.
Além disso, tudo indica que as sucessivas crises por que passou a economia brasileira também são responsáveis pelo discurso no fundo consensual. O espetáculo do presidente da República conversando com os quatro principais candidatos para poder selar o acordo com o FMI não é apenas exemplo de política civilizada, mas indica ainda aquele congelamento de conflitos básicos que em geral alimenta uma disputa genuinamente política. Alguns se apressaram a decretar o fim da grande história, como se a democracia liberal limitasse para sempre nossos horizontes. Numa chave diversa, repete-se a argumentação escatológica. Já na década de 50 não foi o marxismo declarado o horizonte intransponível do pensamento crítico? Agora é o pensamento liberal que é posto no mesmo lugar, visto que as diferenças aparecem sobretudo nos modos de conformar ou atacar o neoliberalismo, sem pôr em xeque os fundamentos da sociabilidade capitalista. De ambos os lados não se perde o vezo de procurar um acontecimento leigo equivalente ao Pentecostes.
Nesse caminho da convergência, porém, um erro, um passo em falso, pode acarretar consequências danosas para todos. Não é preciso comparar a nossa com a trágica situação da Argentina para perceber como o acúmulo de erros pode provocar uma catástrofe.
Mesmo considerando que o governo FHC nos protegeu dessa vaga de destruição que varre a América Latina, não há hoje como negar que o engano de conservar o real sobrevalorizado comprometeu seu desempenho. Até que ponto, é a história que vai julgar. O que nos importa, entretanto, neste momento em que o Brasil escolherá novo presidente, é refletir, creio eu, sobre essa situação de convergência que embota o debate ideológico, transfere a luta política para problemas menores, embora deixe no fundo o perigo de que um pequeno erro desencadeie desvios significativos.
Alguns poderiam retrucar que a "mudança do modelo econômico" não é uma questão menor. Mas, se essa proposta pode soar, para velhos militantes de esquerda, como se fosse alteração da própria ordem capitalista, no fundo apenas reflete a ruptura do chamado Consenso de Washington, o esgotamento de uma política de abertura indiferenciada da economia brasileira, consequentemente colocando em pauta o modo de se inserir nos processos de globalização e as correspondentes formas de intervenção do Estado. Questão, porém, cuja discussão está bloqueada pelos constrangimentos demarcados pela forma do atual processo eleitoral, mas que germina no interior de todos os agrupamentos políticos.
Tanto é assim que, posta nos devidos termos, já se tem desenvolvido no interior do próprio governo FHC. Esgotou-se a luta entre monetaristas e desenvolvimentistas, pois até mesmo os principais defensores da primeira posição se bandearam para o outro lado. O consenso não sai então fortalecido?
No entanto na superfície, essa amortização do embate ideológico não seria um fenômeno universal e não estaria presente igualmente nas políticas americanas e européias? Os cientistas sociais não se cansam de examinar as transformações por que passa a política na era "pós-industrial", "pós-socialista" e assim por diante. Politicamente, porém, como se configura esse "pós", esse ir além da política dos partidos, esse superar aquela situação em que, pelo menos em tese, cada partido ainda representava interesses específicos em contradição com outros interesses e associações políticas?
Nesse antigo modelo, convém notar, a política ainda conservava o sentido grego de "arché" (poder), tanto fundamento quanto o assumir posições de mando, de sorte que a ação tinha no seu horizonte a idéia reguladora de que há momentos de refundação, de substituição de uma forma de governo por outra. Até mesmo numa teoria cíclica, a passagem de uma forma para outra criava espaços de corrupção, formas degeneradas, por conseguinte a fissura de onde tudo poderia começar de novo.
Hoje em dia não é apenas a existência dos mercados capitalistas que se coloca como pressuposto inquestionável, é a própria política que se entende e se pratica como um mercado em que o ator negocia com votos do mesmo modo que o mercador o faz com mercadorias.
A democracia se instala, nos ensina Schumpeter (1883-1950), como método, sistema institucional, para chegar a decisões políticas propostas e levadas a cabo por indivíduos que adquirem esse poder depois de concorrer para obter votos do povo. Mas já a primeira teoria da oferta política tomava o cuidado de limitar essa assimilação do jogo político ao mercado quando lembrava que demanda política e demanda por commodities se distinguem à medida que, na primeira, os eleitores não entram no processo de trocas como se estivessem cientes de suas curvas de preferência.
Em poucas palavras, o eleitor quer mudanças, mas essas somente se configuram como opiniões e idéias-força graças ao desenho que o jogo político empresta a esse querer. Por isso, o eleitor entra no processo político mercantilizado trazendo uma ignorância de base que o agente político há de suprir, legitimando sua ação transformadora à medida que logra implementar políticas econômicas e estimular o consenso cultural. Se lhe falta o recurso de apelar para a luta de classes, por conseguinte para transformações radicais, não é por isso que sua ação não teria em potência um empuxo fundador. Mas para tanto seria preciso que os fundamentos da economia capitalista se tornassem igualmente tema do debate. No entanto, à medida que ele se trava sem que se toque nesse tema, não resta ao político senão se apresentar como feitor. Em outras formas de governo, sua taumaturgia estava limitada por constrangimentos exteriores à sua ação, pelo desígnio dos deuses e indicações dos augúrios. Por isso sua responsabilidade se circunscrevia ao circuito das sociabilidades humanas, marcadas pela finitude, sendo que a legitimidade dependia no fundo da obediência aos ordenamentos divinos. Não é porque viola sem saber as divinas leis do parentesco que Édipo perde o poder e fura seus olhos para cegar-se aos acontecimentos do mundo e assim poder reconciliar-se consigo mesmo?

Reinício ilusório
Mas, numa democracia de massa, em que o político, que tudo sabe, tem como pressuposto intocável a produção mercantil da riqueza, ele encontra no sucesso da economia o principal esteio de sua legitimidade. Por isso aparece como se nada mais fosse que um organizador, um executivo, cuja vontade política seria capaz de reger o crescimento e as crises do próprio capital. A externalidade do desígnio dos deuses foi substituída pelo fluxo autônomo de uma economia que atravessa as fronteiras do Estado nacional, mas a política nacional se arma a partir da ilusão de que esse fluxo poderia ser controlado por dentro graças a um toque de mágica de uma vontade onipotente.


Cada candidato apresenta o seu programa como um diagnóstico que oculta as limitações do paciente, as tensões das crises externas e o desenho das forças políticas responsáveis pela governabilidade


O candidato promete fazer isso ou aquilo, mas deixa na sombra o fato de que o fluxo dos recursos para tanto não depende de seu fazer. Sobra-lhe, desse modo, apenas o fazer na margem. Mas, como um erro pode ter consequências desastrosas, seu ato tende a aparecer como se fosse refundação. Daí a disputa pelo poder se armar como se fosse possível começar de novo, como se não houvesse obstáculos à vontade política. Cada candidato apresenta seu programa como diagnóstico que oculta as limitações do paciente, as tensões das crises externas e o desenho das forças políticas responsáveis pela governabilidade. Se o primeiro objetivo é vencer a eleição, aceita qualquer aliança como legítima, mesmo se junta alhos com bugalhos, inimigos que só podem conviver quando não explicitam suas diferenças radicais. Onipotente, não há de superar todos os obstáculos, graças a seus toques de mágica não conseguirá articular uma governabilidade eficaz? Pouco lhe importa se essas alianças possuem ou não sentido reformador, porquanto, ao colocar no mesmo saco inimigos figadais incapazes de agir conjuntamente, nada mais pretende do que assumir postos de mando a fim de pilhar o tesouro público. Quando atinge esse limite, caminha contra a história, resgatando o lixo daquilo que já foi vencido, sem levar em conta se o novo pacto melhora ou piora o funcionamento do sistema político como um todo. Nesse ponto de exacerbação, ele não converte sua proposta num contrato de celerados? Mesmo em condições normais, nada mais natural que a luta, numa sociedade de massa incapaz de questionar o sentido de seu ser, se trave entre pessoas procurando destruir a identidade pública do outro; toda acusação é válida para aniquilar o adversário, macular sua imagem. Mas os vencidos retornam como vampiros, desde que dominem um pedaço da máquina partidária ou monopolizem uma posição estratégica na mídia. Mantida a presença no espaço público, continuam candidatos potenciais. No momento em que uma hegemonia se desfaz, como aquela que FHC conseguiu manter por oito anos, reaparecem fantasmas de todas as espécies, sem nenhum compromisso ideológico nem mesmo com os ideais por eles apregoados; aprumam novas fantasias, dançam os ritmos das demandas sociais do momento. Numa democracia de massa, o hábito faz o monge. Nessa luta de construção, demolição e reconstrução de ídolos, a mídia desempenha papel fundamental. Numa posição de destaque, o jornalismo investigativo procura desenhar a face oculta da imagem traçada pelos marqueteiros e presente nos programas eleitorais gratuitos. Mas esse procedimento de despir o candidato para que mostre a verdade de sua nudez é contrabalançado, de um lado, pela rapidez com que a mídia desfaz ou recria reputações; de outro, pelo privilégio que se confere ao deslize em vez da lenta e paciente montagem do real. Essa tendência a substituir o conceito pela imagem é reforçada, além do mais, pelo jornalismo do gracejo. Diariamente profissionais de todos os meios de comunicação apresentam ao respeitável público um fato de maneira a realçar seu perfil estranhável, mas, em vez tratar de compreendê-lo mediante a trama de conceitos, fazem graça substituindo o pensamento pelo riso.

Política do espetáculo
Não há dúvida de que o pensar também pode rir. O jornalismo do gracejo, porém, na contramão da boa comédia, que sublinha traços ridículos para fazer despontar a verdade da situação, põe em história, como cronista antigo, um evento individualizado, mas retira dele sua peculiaridade à medida que força o inesperado para se fazer de palhaço. Em resumo, se a política do espetáculo desvenda, de uma parte, a verdade dos caminhos possíveis, borra, de outra, os limites do cognoscível e alimenta a ilusão originária de que as soluções dependem de uma vontade política absoluta, sem pôr em causa os limites dessa vontade construídos pela ossificação dos cursos da economia mundial.
Não se encontra aqui a raiz da sensação de déjà vu que acompanha as peripécias tão diversificadas da política contemporânea? Esse retorno do mesmo, contudo, não será eterno. Se constitui maquinaria conceitual e prática para que se deixe de agir do ponto de vista histórico, os agentes que nelas se envolvem não querem o mesmo como se fosse o mesmo, planando fora do tempo.
Se a economia capitalista se dá como imperativo, também evidencia, por todas as partes, que os ricos se tornam mais ricos, e os pobres, mais pobres. Para sanar essa contradição se louva o desenvolvimento sem que se pense a raiz de suas condições de possibilidade. Desse modo, o retorno do mesmo abriga em si a idéia de um progresso, a vontade de um ir além, da conquista da igualdade e também da liberdade, por mais antagônicos que esses anseios se tenham mostrado.
Hoje sabemos que tudo o que é sólido se dissolve no ar; sólido que não precisa ter a dureza da pedra, mas que se congela como aquelas palavras que perdem sentido de tanto serem repetidas. A repetição no seio da política por certo esvazia o seu sentido, mas igualmente o dissolve e sugere os limites de sua forma atual. Um deles não consiste em acuar a discussão política nas fronteiras do Estado nacional? A globalização implica tratamento global dos problemas, de sorte que é no jogo entre a política nacional e a discussão e criação de instituições democráticas internacionais que tais problemas poderão ser enfrentados. A construção da Comunidade Européia exemplifica esse extravasamento.
Não creio que a discussão possa levar à paz universal, pois o conflito e o uso da força fazem parte da política, mas uma teia de instituições capazes de conformar as forças capitalistas, emprestando-lhes novos sentidos, estará mais equipada para discutir e refundar os sentidos de nossa própria sociabilidade.

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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