São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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+ psicanálise
Para ensaísta, psicanálise é fundada em noções interpretativas sem base empírica
O gênio da retórica

Frederick Crews
especial para a Folha

Terá Freud sondado as profundezas da psique como muitos em romaria à exposição da Biblioteca do Congresso sem dúvida irão supor e continuar acreditando na volta para casa? Ou terá simplesmente atravancado nossa concepção da psique com um labirinto de canos mal-ajambrados (1), fazendo os dejetos de sua estranha imaginação circularem pelo nosso saber médico e cultural? Alimentar tão ímpia questão é considerar se a autocomplacente "intelligentsia" de nossa época talvez tenha sido, talvez ainda seja, não menos iludida do que o foram antes os que acreditavam em chaves mestras para o sentido. Mas o que poderia ser mais provável que isso? Afinal, a psicanálise não seria o primeiro sistema a extorquir fidelidade de modernos intelectuais seculares sem ser nem metodologicamente escrupuloso, escorado em fatos, nem livre de consequências daninhas. A freudolatria, em sua veia mais exaltada, beira a franca veneração religiosa, como quando, por exemplo, um filósofo do contrário perspicaz retrata o seu ídolo como um grande sábio e curandeiro que "fez tanto para a humanidade quanto nenhum outro ser humano que viveu" (Wollheim). A visão da maioria, porém, é mais temperada, combinando dúvida e respeito em doses aproximadamente iguais. Sim, pois muita gente imparcial diz consigo: Freud cometeu alguns deslizes que remontam ao "Zeitgeist" (espírito do tempo) de sua era vitoriana tardia, mas foi também um desbravador que nos proporcionou um novo modo "de explicar nossas manias, fantasias e aflições neuróticas, remetendo a crenças e desejos inconscientes" (Rorty). Não foi ele um de nossos "fundadores da discursividade", um titã da inovação que, portanto, não estaria "sujeito a se conformar aos cânones da ciência" (Goodheart)?

Voto pela complexidade
E certamente, presume-se, ele permanece nosso único esteio contra o retrocesso a um positivismo e associacionismo rasteiros. Como formulou um partidário, "Será que devemos ver os seres humanos como tendo profundidade, como complexos organismos psicológicos que geram camadas de sentido subjacentes à superfície de seu próprio entendimento? Ou devemos nos tomar como transparentes a nós mesmos?" (Lear). Um voto pela complexidade, parece, é automaticamente um voto para Freud. Embora em princípio atraente, essa linha de raciocínio é tanto a-histórica quanto ilógica. Como Lancelot Law Whyte e Henri F. Ellenberger mostraram há tempos, Freud não merece nenhum crédito por nos ter introduzido ao "inconsciente", um lugar-comum romântico com uma linhagem que remonta a Platão. Nietzsche, em particular, antecipou muito do que soa profundo em Freud e o fez com vivaz sagacidade, não com diagramas e com falsas e cabotinas histórias de cura (Anzieu; Lehrer; Gellner). Tampouco devemos confundir o inconsciente psicodinâmico de Freud, uma insubstancial porção da mente que supostamente conspira e subverte, expia, rememora, simboliza, joga com palavras, cifra seus pensamentos em sintomas e briga consigo mesma enquanto o sujeito permanece deslembrado com o funcionamento mental inconsciente, cuja existência é incontroversa e pode ser prontamente demonstrada (Kihlstrom). A originalidade de Freud, veremos, está exatamente onde ele é mais vulnerável, em sustentar que hipotéticas paralisias, espasmos, alergias, úlceras, fobias, compulsões e obsessões psicogênicas podem ser tanto compreendidas quanto curadas rebatendo as reveladoras características da "livre associação" do sujeito e pressionando a regurgitação das memórias ou fantasias por trás delas -um método, dizem, que rende os pensamentos secretos determinantes dos sonhos e lapsos. Esse tiro no escuro diagnóstico e terapêutico, em combinação com as exóticas etiologias, os diversos modelos de controle do instinto e as temerárias explicações da história e pré-história que daí foram deduzidas, constituem a única e específica contribuição de Freud ao legado intelectual de nossa era. Onde, exatamente, na edição standard das "Obras Psicológicas Completas", podemos encontrar a necessária evidência para começar a autenticar as suas principais hipóteses? A surpreendente resposta é: em lugar nenhum. Claro, o texto de Freud oferece muitas garantias de que ele efetivamente curou tal ou qual paciente ou ficou satisfeito por ter solucionado tal ou qual mistério; mas qualquer charlatão poderia dizer o mesmo. Menção também é feita a provas passadas e futuras, fundadas em impecável pesquisa, mas elas não podem ser localizadas em lugar nenhum dos seus 24 volumes. A coisa mais próxima de dados tangíveis nos escritos psicológicos de Freud parece ser a engenhosa e divertida fieira de trocadilhos que ele nos diz ter colecionado em sua sala de consulta -trocadilhos que supostamente mostram como, num dado caso, o espírito do paciente seguiu uma cadeia de associação que expressa um disfarçado motivo sexual ou agressivo. Mas os trocadilhos vinham a ser do próprio Freud, atribuídos falsamente ao inconsciente de seus pacientes de modo a forjar nexos temáticos que ninguém, senão um freudiano, pudesse detectar. Assim, as ousadas inferências biográficas que Freud baseou em tal "indício" não são concludentes. Todo o sistema do pensamento psicanalítico clássico não repousa em nada mais substancial senão na palavra de Freud de que ele é verdadeiro. E é por isso que um antigo Nobel de Medicina, sir Peter Medawar, ficou famoso ao condenar esse sistema como um estupendo conto-do-vigário intelectual.

Zombar do senso comum
Em repúdio a tão desiludida perspectiva, uma quantidade de apologistas de inclinação filosófica afirmaram recentemente que os credos psicanalíticos são meramente uma extensão plausível de nosso modo habitual de inferir motivos (Davidson; Wollheim; Cavell; T. Nagel; Rorty; Lear; Levy; Forrester). Se esses pensadores estão certos, desafiar Freud seria lançar desnecessária dúvida no próprio senso comum. Mas a verdade é que a psicanálise clássica zomba a cada passo do senso comum.
A experiência comum não nos ensina, por exemplo, que sentimentos de aparência benévola são sempre defesas contra outros mais primários, hostis e/ou libidinosos; que a força de um desejo pode ser aferida pela severidade da proibição social contra ele; que cada peculiaridade no comportamento de alguém tem de provir de uma específica provação infantil; que um sintoma tem de aludir simbolicamente ao trauma reprimido a ele subjacente; que um certo trauma sepulto tem de ser realçado para que uma neurose seja subjugada; ou que cada costume, cada ideal cívico, cada obra de arte tenham de ser obtidos à custa de somas de insubstituível libido que deixam a "civilização" cada vez mais empobrecida eroticamente. Todas essas são hipóteses idiossincráticas e contra-intuitivas, porém figuram entre os axiomas que permitem aos freudianos pôr de lado as aparências e lograr o que consideram ser a profundidade explicativa. Alguns traços da psicanálise clássica, com certeza, têm um certo ar de verdade. Em particular, não se pode descartar facilmente a hipótese de que "mecanismos de defesa", tais como projeção, identificação e recusa, afetam as produções mentais. Mesmo um crítico contundente como Adolf Grünbaum admitiu repetidas vezes o fascínio intuitivo de tais conceitos. E não resta dúvida de que sua evocação permite façanhas hermenêuticas de deslumbrante engenhosidade para serem postas em prática com base em declarações, textos e obras de arte. Contudo aqui há um sério problema que os sectários da psicanálise recusam fielmente abordar. Freud não nos deixou nenhum critério para distinguir se uma dada expressão deve ser tomada ao pé da letra ou considerada como uma solução conciliatória moldada por tal ou qual defesa inconsciente contra um desejo ou uma fantasia. Assim, não podemos sustentar que a consciência dos mecanismos de defesa nos põe no rumo do conhecimento confiável sobre um dado tema psíquico. Pelo contrário, a noção desses mecanismos simplesmente amplia o alcance da licença arbitrária à disposição do intérprete, que não terá dificuldade, como Freud certamente não teve, em moer a conduta e a história do paciente, transformando-as na salsicha que são os complexos típicos, as cenas primordiais reprimidas e coisas do gênero. Ironicamente, é justamente essa superabundância de oportunidades para traçar nexos temáticos que impede o método freudiano de fazer jus à complexidade da motivação com a qual estamos sempre às voltas, inclusive o próprio Freud, infinitamente volúvel e dramático que era.

Crise progressiva no sistema
Aliás, a flexibilidade quase infinita dos mecanismos de defesa pode ser vista, em última instância, não somente como a garantia de que os freudianos jamais encontrarão material não-interpretável, mas também como a mais profunda fonte de suas disputas e desavenças internas.
Todo intérprete psicanalítico é prontamente capaz de armar uma "lógica inconsciente" para dar a razão de uma certa atitude, de um certo credo, protesto, poema ou sonho; mas outros intérpretes psicanalíticos inevitavelmente discordarão; e, já que todas as partes simplesmente seguem os seus palpites, entoando o estribilho numa canção escolhida ao acaso, é impossível encontrar uma base empírica para se decidir por esta ou aquela versão. A própria profusão de leituras engenhosas, mas conflitantes, todas recorrendo aos mesmos meios de inferência, gera uma progressiva crise no sistema, cujo avanço institucional tem de continuar drasticamente centrífugo, dando à luz escolas e panelinhas que se excomungam mutuamente. A essa altura o leitor terá compreendido que não me incluo entre aqueles que vêem na psicanálise plausibilidade suficiente para esperar uma clarificação futura das ambiguidades e uma reaproximação dos valores da ciência responsável. Considero que o sistema de Freud está em apuros mais graves que esse.

Teorias não testadas
Como mostrou Frank Cioffi, a teoria freudiana não é um conjunto de proposições adequadamente limitadas, operacionalmente significativas, mas sim amplamente não testadas, simplesmente defendidas por seus partidários contra a avaliação rigorosa. Ao contrário, as próprias proposições nebulosas lançam mão de provas extraídas de uma esfera calculadamente inexaminável, e uma correção integral dessa falha simplesmente faria desaparecer o corpo da doutrina. Nas palavras mordazes, mas judiciosas, de Ernest Gellner, "a evasão não é introduzida para salvar a teoria, ela é a teoria". Pensem, por exemplo, no modo de Freud construir o inconsciente, uma entidade que, a princípio, falava somente a Freud e, mais tarde, somente aos freudianos. Eis aqui um exemplo da concretude fora de propósito que Wittgenstein satirizaria no conceito do "sr. Ninguém". Ao evocar um segundo espírito prematuramente arguto, que absolutamente não esquece, que faz trocadilhos multilíngues, que se oculta, mas deixa sua marca mesmo nos aparentes detalhes, Freud anunciou que improvisaria leis e interpretações sem evidência empírica, colhendo "provas" das mais inocentes circunstâncias e declarando-as remontáveis, com gnóstica certeza, a ocorrências deformadoras nos primeiros anos de seus pacientes. O inconsciente, "dinamicamente" concebido, não é tanto um segmento da mente quanto uma senha para subverter as aparências e chegar a conclusões preestabelecidas. Algo semelhante pode ser dito da regra do estrito determinismo psíquico -a idéia de que cada ação isolada, mesmo a escolha de um número aparentemente aleatório, pode ser remontada, em princípio, aos trabalhos do conflito mental inconsciente. Essa noção mostrou-se palpitante a humanistas acadêmicos, que ainda se admiram com o que erroneamente consideram ser a ascética obediência de Freud ao etos científico. Não, estrito determinismo era apenas outro nome para a "hybris" de Freud, sua recusa em reconhecer que quaisquer pensamentos, atos ou estados físicos talvez estejam fora do alcance de seu rolo compressor hermenêutico. Do mesmo modo, a chamada "sobredeterminação" da causalidade psíquica, segundo a qual uma ação ou expressão pode conter uma variedade de significados secretos, foi a licença que Freud outorgou a si mesmo para desfiar múltiplas interpretações sem ser perturbado pelas contradições entre elas. Tais eram as ferramentas, não de um cientista, mas de um megalomaníaco intelectual. Sendo assim, a teoria psicanalítica clássica deve ser vista não como um conjunto de inferências sóbrias (embora improváveis) da "experiência clínica", mas antes como uma máquina de movimento perpétuo, um mecanismo livre de atritos, gerador de discursos irrefutáveis.

Falência intelectual
Quanto a essas "fundamentais contribuições para a compreensão das origens das pulsões e dos conflitos" que o folheto da Biblioteca do Congresso caridosamente atribuiu a Freud, descobriremos que elas evaporam tão logo se pergunte o que sejam. Os freudianos estão na defensiva, e as estratégias de defesa que adotam são elas próprias sintomáticas da falência intelectual. Em vez de tentar mostrar que Freud inferiu corretamente o trauma infantil a partir da livre associação, ou que suas leis mentais estão realmente vinculadas de forma clara e adequada à observação, eles lançam mão de critérios de prova mais frouxos. Os críticos, sustentam eles, ignoram as percepções modernas da natureza relativa da ciência. Somos então brindados com uma tendenciosa sinopse da concepção da história científica de Thomas Kuhn (1922-1996), segundo a qual uma suposta incomensurabilidade entre paradigmas concorrentes é tomada como sinônimo (a despeito dos opositores de Kuhn) de que "prova" é tudo quanto os partidários de um dado paradigma declaram ser. Não precisamos nos preocupar, diz o argumento, com o uso que Freud faz de sua própria teoria para justificar as razões dessa teoria, uma vez que percebemos agora que todas as teorias tomam iguais liberdades. Mas, como mostra Barbara von Eckardt, essa posição em voga é oca. Por mais carregadas de teoria que sejam em geral nossas idéias e percepções, é tanto possível quanto necessário ser teoricamente neutro naquilo que conta: excluindo a circularidade de um teste ou uma justificativa. Assim, o fato de que os argumentos científicos nunca prescindem de pressupostos não é desculpa para a clamorosa petição de princípio da psicanálise. Ademais, a acusação a que está sujeito o freudismo não tem nada a ver com os rarefeitos debates na filosofia ou sociologia da ciência. Antes, ela reside naquilo que Sebastiano Timpanaro chama "um nível muito mais modesto e artesanal", o dos lances furtivos que seriam julgados inaceitáveis não somente na ciência, mas na conduta dos afazeres diários. A verdadeira questão é simples: quão indulgentes queremos ser ante a postura "eu-sou-cara-você-é-coroa" de um pensador idolatrado?

Cativante mito prometéico
A resposta, para muitos freudianos, é que não devemos ser menos indulgentes do que foram os contemporâneos de Freud. Seria anacrônico, somos advertidos, submeter Freud a padrões de prova concebidos bem mais tarde. Mas isso é ser injusto com a sagacidade de nossos cientistas do passado. Anos antes de reescrever a história psicanalítica como um cativante mito prometéico, Freud foi recebido com mais ceticismo que nas seis décadas desde a sua morte. Seus inconversos contemporâneos viram a futilidade de suas pretensões com admirável clareza.
Foi Fliess, o amigo mais próximo de Freud, que salientou em 1901 que Freud atribuía seus próprios pensamentos ao intelecto de seus pacientes. Foi C.G. Jung, em 1906, muito antes de se desavir com Freud, que observou que a terapia psicanalítica "nem sempre oferece na prática o que dela se espera na teoria". Foi Gustav Aschaffenburg, também em 1906, que lamentou que a apresentação dos casos feita por Freud fosse inadequada, que ele guiasse seus pacientes a revelações sexuais especiosas e que insistisse em interpretações de sonho propícias, sem levar em consideração alternativas igualmente plausíveis.
E, já o primeiro número da "Psychoanalytic Review", em 1913, continha um artigo afirmando que "não há absolutamente nada no universo que não possa ser prontamente transformado em símbolo sexual. (...) Podemos explicar, pelos princípios freudianos, por que as árvores deitam raízes no solo; por que escrevemos com canetas; por que pomos um quarto de litro de vinho numa garrafa em vez de pendurá-lo num gancho como um presunto e assim por diante (...) As curas resultantes do tratamento freudiano não têm valor de prova, em apoio aos dogmas freudianos" (Dunlap).
Aliás, não foi um crítico recente, mas Pierre Janet, um contemporâneo de Freud, que, em 1925, formulou estas críticas devastadoras tanto de sua teoria quanto de sua terapia: "Nenhum fator que opera em igual medida entre os enfermos e os sãos pode ter importância patogênica. (...) A meu ver, parece que o método psicanalítico é, antes de tudo, um método de construção simbólica e arbitrária; mostra como os fatos "poderiam ser" explicados se a causação sexual das neuroses tivesse sido definitivamente aceita; mas a sua aplicação não pode ser adotada enquanto essa teoria ainda não estiver provada. (...) O mero fato de um evento ter desempenhado um papel há muito tempo não prova que ainda desempenhe hoje um papel importante. (...) Uma infecção microbiana no passado pode ter debilitado irreparavelmente a vítima e, no entanto, ter cessado por inteiro no presente. No último caso, não faremos nenhum bem ao paciente adotando medidas de desinfecção".
À luz de tão discriminadas declarações, os únicos que dão abrigo a critérios lassos de validação parecem ser os próprios freudianos, especialmente os que sustentam hoje que a ciência não tem mais peso em nosso juízo proposicional do que a literatura.
Outra variante do argumento anticiência é expressa por aqueles que nos dizem, seguindo Paul Ricoeur e Jürgen Habermas, que a psicanálise não é uma ciência, mas uma atividade hermenêutica (interpretativa), caso no qual deveria ser julgada somente em bases intuitivas e empáticas, não empíricas. O próprio Freud, porém, de forma recorrente e enfática, declarou ser o fruto de sua imaginação uma ciência. Ao contrário de Ricoeur e Habermas, ele notou que mesmo os seus argumentos sobre o "sentido" estavam ligados a hipóteses causais que não poderiam ser postas de lado sem eviscerar o sistema inteiro.
E sabia que afirmações sobre etiologia, diagnose e prognose, desenvolvimento psicossexual, estrutura mental, a formação de sonhos e lapsos e os rumos para a cura não eram mais interpretativas, em sua natureza, do que afirmações sobre estratos geológicos ou germes. O fato de as crenças freudianas não estarem afiançadas por nada além de interpretações é sem dúvida estranho, mas os esforços para tornar essa deficiência uma vantagem argumentativa estão fadados ao fracasso. "O que fazer então", pergunta um analista de inclinação hermenêutica, fingindo sobressalto, "desistir de interpretar as pessoas?" (Lear). Não, simplesmente reconhecer a gritante diferença entre interpretações e pretensas leis mentais.
Outra estratégia, de maneira alguma incompatível com a última, é sacrificar o patriarca Freud para a perpetuação de sua horda. Freud tinha suas limitações, diz o argumento, mas os psicanalistas desde há muito as corrigiram e passaram a novas descobertas clínicas e a refinamentos técnicos. Mas quem, afinal, fez o alegado progresso? Teriam sido os freudianos clássicos, os annafreudianos acadêmicos, os ressurgentes ferenczianos mãos-na-massa, os lacanianos, os kristevanos...? (...) Mas sobre qual princípio geralmente aceito algum modo de "ir além de Freud" se revelou superior à miríade de seus rivais? Aqueles que se vangloriam do progresso rezam para que não corramos os olhos pela tabela de suas próprias mercadorias no bazar cada vez mais extenso do mercado livre e negro da "psicanálise".
Além do mais, as conflitantes inovações na área recorrem todas à mesma fonte de experiências, a saber, a interação clínica entre terapeuta e paciente, com particular ênfase nos dois traços que permanecem praticamente universais, a análise da livre associação e a análise da transferência. A lógica pode mostrar como nenhum desses procedimentos é fidedigno, que, se um método supostamente confiável produz uma sequência infinita de resultados incompatíveis e se não é possível especificar um meio de nem sequer começar a resolver as diferenças, algo deve estar fundamentalmente errado.
Tendo-se apartado de Freud, mas ainda assim encontrando-se sob ataque, alguns analistas estão preparados para fazer uma última adaptação mais drástica e promissora que qualquer outra considerada até agora. Admitem de forma tácita ou mesmo explícita a justiça das críticas revisionistas e, coerentemente, dão adeus a todo o corpo da doutrina clínica e metapsicológica sobre memórias traumáticas, complexos reprimidos, fases libidinais, pulsões e inibições.
A teoria psicanalítica, dizem agora, deve circunscrever-se ao que pode ser observado sobre a operação de transferência e contratransferência no ambiente clínico. Em vez de tentar trazer à tona os traumas, doutor e paciente devem juntos dar feição a uma fábula de identidade que realce o ego, por meio da qual o paciente possa dali em diante ser guiado e engrandecido.
Esse minimalismo é, em muitos aspectos, um desdobramento bem-vindo. Possui a considerável virtude de dar cabo do capengante modelo psicodinâmico de Freud e de suas sempre dissimuladas alegações de cura. Porém aqui ainda se ignora algo. Onde foi mostrado que o meio mais eficaz de abordar a queixa atual do paciente seja um prolongado corpo-a-corpo emocional com o terapeuta? O fundamento de Freud para essa onerosa dieta era equivocado, mas ao menos era um fundamento; ele nunca imaginou que a transferência devesse ser buscada por amor dela própria. Caminhando a psicanálise para o seu segundo século, contudo, essa mais custosa e mais demorada das terapias tenta sobreviver enquanto a sua estrutura intelectual cai pelas tabelas. "As idéias de Freud, que dominaram a história da psiquiatria pelos últimos 50 anos", escreve Edward Shorter, "estão agora desaparecendo como as últimas neves do inverno". Estará próxima a vez da psicanálise, entendida como um tratamento para a neurose?
Ainda assim, persiste a figura enigmática e fascinante de Freud. Que ele tenha sido capaz de se retratar tão triunfante como herói e profeta, vendendo tal imagem aos pensadores atuais que fazem praça de seu inflexível ceticismo, indica que ele foi realmente um dos mais extraordinários personagens da era moderna. Mas mesmo o seu gênio retórico não pode ser plenamente apreciado até compreendermos que, desde o princípio, a retórica tinha de encobrir um fiasco terapêutico e científico. Somente Freud, tão obstinado, versátil e cínico quanto ambicioso, poderia transformar o fracasso em sucesso autopromocional numa escala tão grandiosa.



Nota
1. Trocadilho em inglês entre o verbo "to plumb" (sondar, perscrutar) e o substantivo "plumbing" (encanamento).



Frederick Crews é professor emérito de língua inglesa na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), e autor de "As Guerras da Memória - O Legado de Freud em Xeque" (Paz e Terra), entre outros. O texto acima é uma versão da introdução do autor para o livro "Unauthorized Freud" (Penguin Books, EUA). Tradução de José Marcos Macedo.


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