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+ psicanálise
Para ensaísta, psicanálise é fundada em noções interpretativas sem base empírica
O gênio da retórica
Frederick Crews
especial para a Folha
Terá Freud sondado as profundezas da psique como muitos em romaria à exposição da Biblioteca
do Congresso sem dúvida irão supor e continuar
acreditando na volta para casa? Ou terá simplesmente atravancado nossa concepção da psique com um
labirinto de canos mal-ajambrados (1), fazendo os dejetos de sua estranha imaginação circularem pelo nosso
saber médico e cultural? Alimentar tão ímpia questão é
considerar se a autocomplacente "intelligentsia" de
nossa época talvez tenha sido, talvez ainda seja, não menos iludida do que o foram antes os que acreditavam
em chaves mestras para o sentido.
Mas o que poderia ser mais provável que isso? Afinal,
a psicanálise não seria o primeiro sistema a extorquir fidelidade de modernos intelectuais seculares sem ser
nem metodologicamente escrupuloso, escorado em fatos, nem livre de consequências daninhas.
A freudolatria, em sua veia mais exaltada, beira a franca veneração religiosa, como quando, por exemplo, um
filósofo do contrário perspicaz retrata o seu ídolo como
um grande sábio e curandeiro que "fez tanto para a humanidade quanto nenhum outro ser humano que viveu" (Wollheim). A visão da maioria, porém, é mais
temperada, combinando dúvida e respeito em doses
aproximadamente iguais. Sim, pois muita gente imparcial diz consigo: Freud cometeu alguns deslizes que remontam ao "Zeitgeist" (espírito do tempo) de sua era
vitoriana tardia, mas foi também um desbravador que
nos proporcionou um novo modo "de explicar nossas
manias, fantasias e aflições neuróticas, remetendo a
crenças e desejos inconscientes" (Rorty). Não foi ele um
de nossos "fundadores da discursividade", um titã da
inovação que, portanto, não estaria "sujeito a se conformar aos cânones da ciência" (Goodheart)?
Voto pela complexidade
E certamente, presume-se, ele permanece nosso único esteio contra o retrocesso a um positivismo e associacionismo rasteiros. Como formulou um partidário, "Será que devemos ver os
seres humanos como tendo profundidade, como complexos organismos psicológicos que geram camadas de
sentido subjacentes à superfície de seu próprio entendimento? Ou devemos nos tomar como transparentes a
nós mesmos?" (Lear). Um voto pela complexidade, parece, é automaticamente um voto para Freud.
Embora em princípio atraente, essa linha de raciocínio é tanto a-histórica quanto ilógica. Como Lancelot
Law Whyte e Henri F. Ellenberger mostraram há tempos, Freud não merece nenhum crédito por nos ter introduzido ao "inconsciente", um lugar-comum romântico com uma linhagem que remonta a Platão. Nietzsche, em particular, antecipou muito do que soa profundo em Freud e o fez com vivaz sagacidade, não com diagramas e com falsas e cabotinas histórias de cura (Anzieu; Lehrer; Gellner).
Tampouco devemos confundir o inconsciente psicodinâmico de Freud, uma insubstancial porção da mente que supostamente conspira e subverte, expia, rememora, simboliza, joga com palavras, cifra seus pensamentos em sintomas e briga consigo mesma enquanto
o sujeito permanece deslembrado com o funcionamento mental inconsciente, cuja existência é incontroversa e
pode ser prontamente demonstrada (Kihlstrom).
A originalidade de Freud, veremos, está exatamente
onde ele é mais vulnerável, em sustentar que hipotéticas
paralisias, espasmos, alergias, úlceras, fobias, compulsões e obsessões psicogênicas podem ser tanto compreendidas quanto curadas rebatendo as reveladoras
características da "livre associação" do sujeito e pressionando a regurgitação das memórias ou fantasias por
trás delas -um método, dizem, que rende os pensamentos secretos determinantes dos sonhos e lapsos. Esse tiro no escuro diagnóstico e terapêutico, em combinação com as exóticas etiologias, os diversos modelos
de controle do instinto e as temerárias explicações da
história e pré-história que daí foram deduzidas, constituem a única e específica contribuição de Freud ao legado intelectual de nossa era.
Onde, exatamente, na edição standard das "Obras
Psicológicas Completas", podemos encontrar a necessária evidência para começar a autenticar as suas principais hipóteses? A surpreendente resposta é: em lugar
nenhum. Claro, o texto de Freud oferece muitas garantias de que ele efetivamente curou tal ou qual paciente
ou ficou satisfeito por ter solucionado tal ou qual mistério; mas qualquer charlatão poderia dizer o mesmo.
Menção também é feita a provas passadas e futuras,
fundadas em impecável pesquisa, mas elas não podem
ser localizadas em lugar nenhum dos seus 24 volumes.
A coisa mais próxima de dados tangíveis nos escritos
psicológicos de Freud parece ser a engenhosa e divertida fieira de trocadilhos que ele nos diz ter colecionado
em sua sala de consulta -trocadilhos que supostamente mostram como, num dado caso, o espírito do paciente seguiu uma cadeia de associação que expressa um
disfarçado motivo sexual ou agressivo.
Mas os trocadilhos vinham a ser do próprio Freud,
atribuídos falsamente ao inconsciente de seus pacientes
de modo a forjar nexos temáticos que ninguém, senão
um freudiano, pudesse detectar. Assim, as ousadas inferências biográficas que Freud baseou em tal "indício"
não são concludentes. Todo o sistema do pensamento
psicanalítico clássico não repousa em nada mais substancial senão na palavra de Freud de que ele é verdadeiro. E é por isso que um antigo Nobel de Medicina, sir
Peter Medawar, ficou famoso ao condenar esse sistema
como um estupendo conto-do-vigário intelectual.
Zombar do senso comum
Em repúdio a tão desiludida perspectiva, uma quantidade de apologistas de
inclinação filosófica afirmaram recentemente que os
credos psicanalíticos são meramente uma extensão
plausível de nosso modo habitual de inferir motivos
(Davidson; Wollheim; Cavell; T. Nagel; Rorty; Lear;
Levy; Forrester). Se esses pensadores estão certos, desafiar Freud seria lançar desnecessária dúvida no próprio
senso comum. Mas a verdade é que a psicanálise clássica zomba a cada passo do senso comum.
A experiência comum não nos ensina, por exemplo,
que sentimentos de aparência benévola são sempre defesas contra outros mais primários, hostis e/ou libidinosos; que a força de um desejo pode ser aferida pela severidade da proibição social contra ele; que cada peculiaridade no comportamento de alguém tem de provir de
uma específica provação infantil; que um sintoma tem
de aludir simbolicamente ao trauma reprimido a ele
subjacente; que um certo trauma sepulto tem de ser
realçado para que uma neurose seja subjugada; ou que cada costume, cada ideal cívico, cada obra de arte tenham de ser obtidos à custa de somas de insubstituível
libido que deixam a "civilização" cada vez mais empobrecida eroticamente. Todas essas são hipóteses idiossincráticas e contra-intuitivas, porém figuram entre os
axiomas que permitem aos freudianos pôr de lado as
aparências e lograr o que consideram ser a profundidade explicativa.
Alguns traços da psicanálise clássica, com certeza,
têm um certo ar de verdade. Em particular, não se pode
descartar facilmente a hipótese de que "mecanismos de
defesa", tais como projeção, identificação e recusa, afetam as produções mentais. Mesmo um crítico contundente como Adolf Grünbaum admitiu repetidas vezes o
fascínio intuitivo de tais conceitos. E não resta dúvida
de que sua evocação permite façanhas hermenêuticas
de deslumbrante engenhosidade para serem postas em
prática com base em declarações, textos e obras de arte.
Contudo aqui há um sério problema que os sectários
da psicanálise recusam fielmente abordar. Freud não
nos deixou nenhum critério para distinguir se uma dada expressão deve ser tomada ao pé da letra ou considerada como uma solução conciliatória moldada por tal
ou qual defesa inconsciente contra um desejo ou uma
fantasia. Assim, não podemos sustentar que a consciência dos mecanismos de defesa nos põe no rumo do conhecimento confiável sobre um dado tema psíquico.
Pelo contrário, a noção desses mecanismos simplesmente amplia o alcance da licença arbitrária à disposição do intérprete, que não terá dificuldade, como Freud
certamente não teve, em moer a conduta e a história do
paciente, transformando-as na salsicha que são os complexos típicos, as cenas primordiais reprimidas e coisas
do gênero. Ironicamente, é justamente essa superabundância de oportunidades para traçar nexos temáticos
que impede o método freudiano de fazer jus à complexidade da motivação com a qual estamos sempre às voltas, inclusive o próprio Freud, infinitamente volúvel e
dramático que era.
Crise progressiva no sistema
Aliás, a flexibilidade quase infinita dos mecanismos de defesa pode ser
vista, em última instância, não somente como a garantia de que os freudianos jamais encontrarão material
não-interpretável, mas também como a mais profunda
fonte de suas disputas e desavenças internas.
Todo intérprete psicanalítico é prontamente capaz de
armar uma "lógica inconsciente" para dar a razão de
uma certa atitude, de um certo credo, protesto, poema
ou sonho; mas outros intérpretes psicanalíticos inevitavelmente discordarão; e, já que todas as partes simplesmente seguem os seus palpites, entoando o estribilho
numa canção escolhida ao acaso, é impossível encontrar uma base empírica para se decidir por esta ou aquela versão. A própria profusão de leituras engenhosas,
mas conflitantes, todas recorrendo aos mesmos meios
de inferência, gera uma progressiva crise no sistema,
cujo avanço institucional tem de continuar drasticamente centrífugo, dando à luz escolas e panelinhas que
se excomungam mutuamente.
A essa altura o leitor terá compreendido que não me
incluo entre aqueles que vêem na psicanálise plausibilidade suficiente para esperar uma clarificação futura das
ambiguidades e uma reaproximação dos valores da
ciência responsável. Considero que o sistema de Freud
está em apuros mais graves que esse.
Teorias não testadas
Como mostrou Frank Cioffi, a teoria freudiana não é um conjunto de proposições
adequadamente limitadas, operacionalmente significativas, mas sim amplamente não testadas, simplesmente
defendidas por seus partidários contra a avaliação rigorosa. Ao contrário, as próprias proposições nebulosas
lançam mão de provas extraídas de uma esfera calculadamente inexaminável, e uma correção integral dessa
falha simplesmente faria desaparecer o corpo da doutrina. Nas palavras mordazes, mas judiciosas, de Ernest
Gellner, "a evasão não é introduzida para salvar a teoria,
ela é a teoria".
Pensem, por exemplo, no modo de Freud construir o
inconsciente, uma entidade que, a princípio, falava somente a Freud e, mais tarde, somente aos freudianos.
Eis aqui um exemplo da concretude fora de propósito
que Wittgenstein satirizaria no conceito do "sr. Ninguém". Ao evocar um segundo espírito prematuramente arguto, que absolutamente não esquece, que faz trocadilhos multilíngues, que se oculta, mas deixa sua marca mesmo nos aparentes detalhes, Freud anunciou que
improvisaria leis e interpretações sem evidência empírica, colhendo "provas" das mais inocentes circunstâncias e declarando-as remontáveis, com gnóstica certeza,
a ocorrências deformadoras nos primeiros anos de seus
pacientes. O inconsciente, "dinamicamente" concebido, não é tanto um segmento da mente quanto uma senha para subverter as aparências e chegar a conclusões
preestabelecidas.
Algo semelhante pode ser dito da regra do estrito determinismo psíquico -a idéia de que cada ação isolada, mesmo a escolha de um número aparentemente
aleatório, pode ser remontada, em princípio, aos trabalhos do conflito mental inconsciente. Essa noção mostrou-se palpitante a humanistas acadêmicos, que ainda
se admiram com o que erroneamente consideram ser a
ascética obediência de Freud ao etos científico.
Não, estrito determinismo era apenas outro nome para a "hybris" de Freud, sua recusa em reconhecer que
quaisquer pensamentos, atos ou estados físicos talvez
estejam fora do alcance de seu rolo compressor hermenêutico. Do mesmo modo, a chamada "sobredeterminação" da causalidade psíquica, segundo a qual uma
ação ou expressão pode conter uma variedade de significados secretos, foi a licença que Freud outorgou a si
mesmo para desfiar múltiplas interpretações sem ser
perturbado pelas contradições entre elas.
Tais eram as ferramentas, não de um cientista, mas de
um megalomaníaco intelectual. Sendo assim, a teoria
psicanalítica clássica deve ser vista não como um conjunto de inferências sóbrias (embora improváveis) da
"experiência clínica", mas antes como uma máquina de
movimento perpétuo, um mecanismo livre de atritos,
gerador de discursos irrefutáveis.
Falência intelectual
Quanto a essas "fundamentais contribuições para a compreensão das origens das
pulsões e dos conflitos" que o folheto da Biblioteca do
Congresso caridosamente atribuiu a Freud, descobriremos que elas evaporam tão logo se pergunte o que sejam. Os freudianos estão na defensiva, e as estratégias
de defesa que adotam são elas próprias sintomáticas da
falência intelectual. Em vez de tentar mostrar que Freud
inferiu corretamente o trauma infantil a partir da livre
associação, ou que suas leis mentais estão realmente
vinculadas de forma clara e adequada à observação, eles
lançam mão de critérios de prova mais frouxos.
Os críticos, sustentam eles, ignoram as percepções
modernas da natureza relativa da ciência. Somos então
brindados com uma tendenciosa sinopse da concepção
da história científica de Thomas Kuhn (1922-1996), segundo a qual uma suposta incomensurabilidade entre
paradigmas concorrentes é tomada como sinônimo (a
despeito dos opositores de Kuhn) de que "prova" é tudo
quanto os partidários de um dado paradigma declaram
ser. Não precisamos nos preocupar, diz o argumento,
com o uso que Freud faz de sua própria teoria para justificar as razões dessa teoria, uma vez que percebemos
agora que todas as teorias tomam iguais liberdades.
Mas, como mostra Barbara von Eckardt, essa posição
em voga é oca. Por mais carregadas de teoria que sejam
em geral nossas idéias e percepções, é tanto possível
quanto necessário ser teoricamente neutro naquilo que
conta: excluindo a circularidade de um teste ou uma
justificativa. Assim, o fato de que os argumentos científicos nunca prescindem de pressupostos não é desculpa
para a clamorosa petição de princípio da psicanálise.
Ademais, a acusação a que está sujeito o freudismo
não tem nada a ver com os rarefeitos debates na filosofia ou sociologia da ciência. Antes, ela reside naquilo
que Sebastiano Timpanaro chama "um nível muito
mais modesto e artesanal", o dos lances furtivos que seriam julgados inaceitáveis não somente na ciência, mas
na conduta dos afazeres diários.
A verdadeira questão é simples: quão indulgentes
queremos ser ante a postura "eu-sou-cara-você-é-coroa" de um pensador idolatrado?
Cativante mito prometéico
A resposta, para
muitos freudianos, é que não devemos ser menos indulgentes do que foram os contemporâneos de Freud. Seria anacrônico, somos advertidos, submeter Freud a padrões de prova concebidos bem mais tarde. Mas isso é
ser injusto com a sagacidade de nossos cientistas do
passado. Anos antes de reescrever a história psicanalítica como um cativante mito prometéico, Freud foi recebido com mais ceticismo que nas seis décadas desde a
sua morte. Seus inconversos contemporâneos viram a
futilidade de suas pretensões com admirável clareza.
Foi Fliess, o amigo mais próximo de Freud, que salientou em 1901 que Freud atribuía seus próprios pensamentos ao intelecto de seus pacientes. Foi C.G. Jung, em
1906, muito antes de se desavir com Freud, que observou que a terapia psicanalítica "nem sempre oferece na
prática o que dela se espera na teoria". Foi Gustav Aschaffenburg, também em 1906, que lamentou que a
apresentação dos casos feita por Freud fosse inadequada, que ele guiasse seus pacientes a revelações sexuais
especiosas e que insistisse em interpretações de sonho
propícias, sem levar em consideração alternativas igualmente plausíveis.
E, já o primeiro número da "Psychoanalytic Review",
em 1913, continha um artigo afirmando que "não há absolutamente nada no universo que não possa ser prontamente transformado em símbolo sexual. (...) Podemos explicar, pelos princípios freudianos, por que as árvores deitam raízes no solo; por que escrevemos com
canetas; por que pomos um quarto de litro de vinho numa garrafa em vez de pendurá-lo num gancho como
um presunto e assim por diante (...) As curas resultantes
do tratamento freudiano não têm valor de prova, em
apoio aos dogmas freudianos" (Dunlap).
Aliás, não foi um crítico recente, mas Pierre Janet, um
contemporâneo de Freud, que, em 1925, formulou estas
críticas devastadoras tanto de sua teoria quanto de sua
terapia: "Nenhum fator que opera em igual medida entre os enfermos e os sãos pode ter importância patogênica. (...) A meu ver, parece que o método psicanalítico
é, antes de tudo, um método de construção simbólica e
arbitrária; mostra como os fatos "poderiam ser" explicados se a causação sexual das neuroses tivesse sido definitivamente aceita; mas a sua aplicação não pode ser
adotada enquanto essa teoria ainda não estiver provada. (...) O mero fato de um evento ter desempenhado
um papel há muito tempo não prova que ainda desempenhe hoje um papel importante. (...) Uma infecção microbiana no passado pode ter debilitado irreparavelmente a vítima e, no entanto, ter cessado por inteiro no
presente. No último caso, não faremos nenhum bem ao
paciente adotando medidas de desinfecção".
À luz de tão discriminadas declarações, os
únicos que dão abrigo a critérios lassos de
validação parecem ser os próprios freudianos, especialmente os que sustentam hoje
que a ciência não tem mais peso em nosso
juízo proposicional do que a literatura.
Outra variante do argumento anticiência
é expressa por aqueles que nos dizem, seguindo Paul Ricoeur e Jürgen Habermas,
que a psicanálise não é uma ciência, mas
uma atividade hermenêutica (interpretativa), caso no qual deveria ser julgada somente em bases intuitivas e empáticas, não empíricas. O próprio Freud, porém, de forma
recorrente e enfática, declarou ser o fruto de
sua imaginação uma ciência. Ao contrário
de Ricoeur e Habermas, ele notou que mesmo os seus argumentos sobre o "sentido"
estavam ligados a hipóteses causais que não
poderiam ser postas de lado sem eviscerar o
sistema inteiro.
E sabia que afirmações sobre etiologia,
diagnose e prognose, desenvolvimento psicossexual, estrutura mental, a formação de
sonhos e lapsos e os rumos para a cura não
eram mais interpretativas, em sua natureza,
do que afirmações sobre estratos geológicos
ou germes. O fato de as crenças freudianas
não estarem afiançadas por nada além de
interpretações é sem dúvida estranho, mas
os esforços para tornar essa deficiência uma
vantagem argumentativa estão fadados ao
fracasso. "O que fazer então", pergunta um
analista de inclinação hermenêutica, fingindo sobressalto, "desistir de interpretar as
pessoas?" (Lear). Não, simplesmente reconhecer a gritante diferença entre interpretações e pretensas leis mentais.
Outra estratégia, de maneira alguma incompatível com a última, é sacrificar o patriarca Freud para a perpetuação de sua
horda. Freud tinha suas limitações, diz o argumento,
mas os psicanalistas desde há muito as corrigiram e
passaram a novas descobertas clínicas e a refinamentos
técnicos. Mas quem, afinal, fez o alegado progresso? Teriam sido os freudianos clássicos, os annafreudianos
acadêmicos, os ressurgentes ferenczianos mãos-na-massa, os lacanianos, os kristevanos...? (...) Mas sobre
qual princípio geralmente aceito algum modo de "ir
além de Freud" se revelou superior à miríade de seus rivais? Aqueles que se vangloriam do progresso rezam
para que não corramos os olhos pela tabela de suas próprias mercadorias no bazar cada vez mais extenso do
mercado livre e negro da "psicanálise".
Além do mais, as conflitantes inovações na área recorrem todas à mesma fonte de experiências, a saber, a interação clínica entre terapeuta e paciente, com particular ênfase nos dois traços que permanecem praticamente universais, a análise da livre associação e a análise da
transferência. A lógica pode mostrar como nenhum
desses procedimentos é fidedigno, que, se um método
supostamente confiável produz uma sequência infinita
de resultados incompatíveis e se não é possível especificar um meio de nem sequer começar a resolver as diferenças, algo deve estar fundamentalmente errado.
Tendo-se apartado de Freud, mas ainda assim encontrando-se sob ataque, alguns analistas estão
preparados para fazer uma última adaptação mais drástica e promissora que qualquer outra considerada até agora. Admitem
de forma tácita ou mesmo explícita a justiça
das críticas revisionistas e, coerentemente,
dão adeus a todo o corpo da doutrina clínica e metapsicológica sobre memórias traumáticas, complexos reprimidos, fases libidinais, pulsões e inibições.
A teoria psicanalítica, dizem agora, deve
circunscrever-se ao que pode ser observado
sobre a operação de transferência e contratransferência no ambiente clínico. Em vez
de tentar trazer à tona os traumas, doutor e
paciente devem juntos dar feição a uma fábula de identidade que realce o ego, por
meio da qual o paciente possa dali em diante ser guiado e engrandecido.
Esse minimalismo é, em muitos aspectos,
um desdobramento bem-vindo. Possui a
considerável virtude de dar cabo do capengante modelo psicodinâmico de Freud e de
suas sempre dissimuladas alegações de cura. Porém aqui ainda se ignora algo. Onde
foi mostrado que o meio mais eficaz de
abordar a queixa atual do paciente seja um
prolongado corpo-a-corpo emocional com
o terapeuta? O fundamento de Freud para
essa onerosa dieta era equivocado, mas ao
menos era um fundamento; ele nunca imaginou que a transferência devesse ser buscada por amor dela própria. Caminhando a
psicanálise para o seu segundo século, contudo, essa mais custosa e mais demorada
das terapias tenta sobreviver enquanto a
sua estrutura intelectual cai pelas tabelas.
"As idéias de Freud, que dominaram a história da psiquiatria pelos últimos 50 anos",
escreve Edward Shorter, "estão agora desaparecendo como as últimas neves do inverno". Estará próxima a vez da psicanálise, entendida como um tratamento para a neurose?
Ainda assim, persiste a figura enigmática e fascinante
de Freud. Que ele tenha sido capaz de se retratar tão
triunfante como herói e profeta, vendendo tal imagem
aos pensadores atuais que fazem praça de seu inflexível
ceticismo, indica que ele foi realmente um dos mais extraordinários personagens da era moderna. Mas mesmo o seu gênio retórico não pode ser plenamente apreciado até compreendermos que, desde o princípio, a retórica tinha de encobrir um fiasco terapêutico e científico. Somente Freud, tão obstinado, versátil e cínico
quanto ambicioso, poderia transformar o fracasso em
sucesso autopromocional numa escala tão grandiosa.
Nota
1. Trocadilho em inglês entre o verbo "to plumb" (sondar,
perscrutar) e o substantivo "plumbing" (encanamento).
Frederick Crews é professor emérito de língua inglesa na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), e autor de "As Guerras da Memória - O Legado de Freud em Xeque" (Paz e Terra), entre outros. O texto
acima é uma versão da introdução do autor para o livro "Unauthorized Freud" (Penguin Books, EUA).
Tradução de José Marcos Macedo.
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