|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
"Reflexões sobre Poesia e Ética" traz textos de Kaváfis traduzidos por José Paulo Paes
A poesia em gestação
RINALDO GAMA
especial para a Folha
Entre os incontáveis serviços intelectuais que prestou ao país, o
poeta, ensaísta e tradutor José
Paulo Paes, morto no dia 9 de outubro aos 72 anos, orgulhava-se,
com a discrição que lhe era característica, de ter traduzido diretamente do grego e apresentado ao
público brasileiro, em 1981, os
poemas de Konstantinos Kaváfis
(1863-1933). Nascido em Alexandria, no Egito, Kaváfis é um dos
mais célebres poetas da língua grega da modernidade.
Sua poesia, de extração simbolista, foi admirada por T.S. Eliot,
F.T. Marinetti, G. Ungaretti, E.M.
Forster, Lawrence Durrell (que o
homenageou no seu "Quarteto de
Alexandria") e Marguerite Yourcenar, entre outros. Uma coincidência fez com que a tradução de
um novo volume de Konstantinos
Kaváfis, "Reflexões sobre Poesia e
Ética", desta vez reunindo textos
em prosa, se transformasse num
dos últimos trabalhos de Paes. Em
Portugal, este Kaváfis prosador foi
publicado em 1994.
Na "tentativa de descrição crítica", como preferiu classificar o
ensaio definitivo que antecedia os
"Poemas" (Nova Fronteira) de
Konstantinos Kaváfis, José Paulo
Paes já fazia referência à produção
em prosa do poeta. "Afora os
poemas canônicos, chegaram até
nós vários outros, que o poeta não
julgou dignos de figurar entre
aqueles, além de textos em prosa
(...), de inegável interesse para o
melhor conhecimento de sua personalidade e de sua biografia, mas
que nada lhe acrescentam à obra
criativa", escreveu. Na apresentação de "Reflexões", Paes reelaborou tal postura, ressaltando que
aquelas "breves notas íntimas",
interessam "antes do mais, pela
singularidade de serem praticamente os únicos textos em
prosa de alguém que só se
exprimira literariamente em
versos (...),
mas interessam também e
sobretudo (...)
pelo jogo interativo entre
metalinguagem e linguagem que estabelecem
com a poesia de seu autor".
Escritas entre 1902 e 1911, aparentemente para consumo próprio, as "Reflexões" só vieram a
público em 1983, por iniciativa de
G.P. Savvídis, que 15 anos antes
organizara uma coletânea de poemas inéditos do autor de "À Espera dos Bárbaros", pouco dado à
divulgação até mesmo de sua obra
poética. "Kaváfis não faz três coisas: dar conferências, conceder
entrevistas e escrever prosa", dizia o próprio poeta quando o assunto era seu trabalho como prosador. Compreende-se.
Os textos em prosa de Konstantinos Kaváfis explicam, sim, muitos de seus versos. Mas ficam
aquém deles. Revoltam-se, é verdade, contra um moralismo algo
hipócrita (o poeta era homossexual), sem alcançar, no entanto, a amplitude de sua
poesia (na dúvida, leia-se, o
clássico "Muros", poema,
aliás, anterior a
1911: "Ergueram à minha
volta altos muros de pedra/
Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora/ Isolaram-me do
mundo sem que eu percebesse").
Algumas notas, inclusive, soam
dispensáveis, como a de número
16, que diz: "Quem se entusiasma
em demasia não consegue realizar
um bom trabalho; quem nunca se
entusiasma tampouco".
Os melhores momentos do livro
estão nos textos em que Kaváfis,
"um poeta para poucos", nas palavras de Otto Maria Carpeaux,
discute a questão da sinceridade
na arte, tema que incorpora o problema da dinâmica entre sentimento e expressão. "Nunca vivi
no campo. Tampouco lá passei,
como outras pessoas, breves temporadas. Entretanto, escrevi um
poema no qual celebro o campo
(...). Trata-se verdadeiramente de
insinceridade? Não mente sempre
a arte? E não é quando mente mais
que ela se revela mais criativa?",
pergunta ele logo na primeira de
suas "Reflexões". Aqui, Konstantinos Kaváfis lembra o português Fernando Pessoa
(1888-1935), autor do notável
"Autopsicografia". Não por acaso, no referido ensaio introdutório
às traduções dos poemas de Kaváfis, Paes fazia um longo paralelo
entre os dois escritores.
Ao contrário de Pessoa, de um
Octavio Paz (1914-1998) ou do
próprio José Paulo, Konstantinos
Kaváfis, ao que se sabe, não fez da
prosa de reflexão metalinguística
uma prática que o acompanhasse
ao longo de toda a sua vida. Passado o período em que, segundo
Paes, "sob o estímulo de Baudelaire, Nietzsche e Wilde, buscava
afirmar uma dicção pessoal, (a
qual) chegaria alguns anos mais
tarde, quando se abrisse à vitalidade do grego falado ou demotiki",
ele preferiu militar pela poesia
sendo "apenas" poeta.
Os 154 poemas que considerava
dignos de publicação bastaram
para transformar esse admirador
de Homero e sobretudo de Teócrito (o que talvez explique sua flexibilidade de linguagem) num autor
canônico, cuja produção encontrou no Brasil um divulgador fiel e
talentoso. Conduzidas com a precisão de sempre por José Paulo, estas "Reflexões" acabam tendo o
seu mérito ampliado. Isto porque,
de algum modo, podem levar o
leitor ao que de fato importa na
obra de Kaváfis -a sua poesia.
A OBRA
Reflexões sobre Poesia e
Ética - Konstantinos Kaváfis.
Tradução de José Paulo Paes. Ed.
Ática (r. Barão de Iguape, 110,
CEP 01507-900, SP, tel.
011/278-9322). 78 págs. R$
12,90.
Rinaldo Gama é professor de jornalismo da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), editor
executivo dos "Cadernos de Literatura Brasileira", do Instituto Moreira Salles, e autor de "O
Guardador de Signos - Caeiro em Pessoa".
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|