São Paulo, domingo, 22 de novembro de 1998

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LIVROS
"Reflexões sobre Poesia e Ética" traz textos de Kaváfis traduzidos por José Paulo Paes
A poesia em gestação

RINALDO GAMA
especial para a Folha

Entre os incontáveis serviços intelectuais que prestou ao país, o poeta, ensaísta e tradutor José Paulo Paes, morto no dia 9 de outubro aos 72 anos, orgulhava-se, com a discrição que lhe era característica, de ter traduzido diretamente do grego e apresentado ao público brasileiro, em 1981, os poemas de Konstantinos Kaváfis (1863-1933). Nascido em Alexandria, no Egito, Kaváfis é um dos mais célebres poetas da língua grega da modernidade.
Sua poesia, de extração simbolista, foi admirada por T.S. Eliot, F.T. Marinetti, G. Ungaretti, E.M. Forster, Lawrence Durrell (que o homenageou no seu "Quarteto de Alexandria") e Marguerite Yourcenar, entre outros. Uma coincidência fez com que a tradução de um novo volume de Konstantinos Kaváfis, "Reflexões sobre Poesia e Ética", desta vez reunindo textos em prosa, se transformasse num dos últimos trabalhos de Paes. Em Portugal, este Kaváfis prosador foi publicado em 1994.
Na "tentativa de descrição crítica", como preferiu classificar o ensaio definitivo que antecedia os "Poemas" (Nova Fronteira) de Konstantinos Kaváfis, José Paulo Paes já fazia referência à produção em prosa do poeta. "Afora os poemas canônicos, chegaram até nós vários outros, que o poeta não julgou dignos de figurar entre aqueles, além de textos em prosa (...), de inegável interesse para o melhor conhecimento de sua personalidade e de sua biografia, mas que nada lhe acrescentam à obra criativa", escreveu. Na apresentação de "Reflexões", Paes reelaborou tal postura, ressaltando que aquelas "breves notas íntimas", interessam "antes do mais, pela singularidade de serem praticamente os únicos textos em prosa de alguém que só se exprimira literariamente em versos (...), mas interessam também e sobretudo (...) pelo jogo interativo entre metalinguagem e linguagem que estabelecem com a poesia de seu autor".
Escritas entre 1902 e 1911, aparentemente para consumo próprio, as "Reflexões" só vieram a público em 1983, por iniciativa de G.P. Savvídis, que 15 anos antes organizara uma coletânea de poemas inéditos do autor de "À Espera dos Bárbaros", pouco dado à divulgação até mesmo de sua obra poética. "Kaváfis não faz três coisas: dar conferências, conceder entrevistas e escrever prosa", dizia o próprio poeta quando o assunto era seu trabalho como prosador. Compreende-se.
Os textos em prosa de Konstantinos Kaváfis explicam, sim, muitos de seus versos. Mas ficam aquém deles. Revoltam-se, é verdade, contra um moralismo algo hipócrita (o poeta era homossexual), sem alcançar, no entanto, a amplitude de sua poesia (na dúvida, leia-se, o clássico "Muros", poema, aliás, anterior a 1911: "Ergueram à minha volta altos muros de pedra/ Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora/ Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse"). Algumas notas, inclusive, soam dispensáveis, como a de número 16, que diz: "Quem se entusiasma em demasia não consegue realizar um bom trabalho; quem nunca se entusiasma tampouco".
Os melhores momentos do livro estão nos textos em que Kaváfis, "um poeta para poucos", nas palavras de Otto Maria Carpeaux, discute a questão da sinceridade na arte, tema que incorpora o problema da dinâmica entre sentimento e expressão. "Nunca vivi no campo. Tampouco lá passei, como outras pessoas, breves temporadas. Entretanto, escrevi um poema no qual celebro o campo (...). Trata-se verdadeiramente de insinceridade? Não mente sempre a arte? E não é quando mente mais que ela se revela mais criativa?", pergunta ele logo na primeira de suas "Reflexões". Aqui, Konstantinos Kaváfis lembra o português Fernando Pessoa (1888-1935), autor do notável "Autopsicografia". Não por acaso, no referido ensaio introdutório às traduções dos poemas de Kaváfis, Paes fazia um longo paralelo entre os dois escritores.
Ao contrário de Pessoa, de um Octavio Paz (1914-1998) ou do próprio José Paulo, Konstantinos Kaváfis, ao que se sabe, não fez da prosa de reflexão metalinguística uma prática que o acompanhasse ao longo de toda a sua vida. Passado o período em que, segundo Paes, "sob o estímulo de Baudelaire, Nietzsche e Wilde, buscava afirmar uma dicção pessoal, (a qual) chegaria alguns anos mais tarde, quando se abrisse à vitalidade do grego falado ou demotiki", ele preferiu militar pela poesia sendo "apenas" poeta.
Os 154 poemas que considerava dignos de publicação bastaram para transformar esse admirador de Homero e sobretudo de Teócrito (o que talvez explique sua flexibilidade de linguagem) num autor canônico, cuja produção encontrou no Brasil um divulgador fiel e talentoso. Conduzidas com a precisão de sempre por José Paulo, estas "Reflexões" acabam tendo o seu mérito ampliado. Isto porque, de algum modo, podem levar o leitor ao que de fato importa na obra de Kaváfis -a sua poesia.

A OBRA

Reflexões sobre Poesia e Ética - Konstantinos Kaváfis. Tradução de José Paulo Paes. Ed. Ática (r. Barão de Iguape, 110, CEP 01507-900, SP, tel. 011/278-9322). 78 págs. R$ 12,90.


Rinaldo Gama é professor de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), editor executivo dos "Cadernos de Literatura Brasileira", do Instituto Moreira Salles, e autor de "O Guardador de Signos - Caeiro em Pessoa".



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