São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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A HIstÓRiA DE AriADNe, POR eLA MesMA

por Louis Begley

Ela sabia a história de sua família, o futuro da família e, nela, o seu próprio futuro. Seu pai, o rei Minos, lhe havia contado. Além disso, ultimamente, rápidas visões desse futuro haviam surgido, em lampejos, ante os seus olhos. Sonhos ou revelações? Não tinha certeza. Este saber a deixava triste, envaidecida e envergonhada. Sua irmã Fedra e ela, ambas suicidas, enforcadas pelas próprias mãos! O Minotauro, seu meio-irmão, assassinado! A nau ateniense, com Teseu a bordo, já estava a caminho, vindo de Creta. Saber que a desgraça se desencadearia muito em breve a deixava aflita. Numa tarde dourada, ela se dirigiu à corte onde sabia que encontraria o pai, recostado em seu coxim de ouro e prata, ajoelhou-se a seu lado, chorou e lhe revelou seus temores. Sabia que o pai a consolaria. O rei ouviu com atenção, afagou o cabelo da filha e disse: Coragem, minha Ariadne. Aquilo que há de vir está sempre diante dos olhos de Zeus e não pode mudar; para nós, que somos seus filhos, ele só revela a porção do futuro cuja visão conseguimos suportar; mas nem mesmo ele pode subjugar as leis da Necessidade. O passado vive na mente dos mortais. Aquilo que há de acontecer não é o mesmo que eles irão conhecer ou lembrar.
Por que é assim, pai? -perguntou Ariadne. Como aquilo que aconteceu pode ser desfeito? Minha filha adorada, respondeu Minos, o passado é apenas o que os poetas nos contam. Mentirosos natos, todos eles, como os que cantam em troca de comida na mesa do meu banquete. Inteligência e memória degeneradas; para cada fato ocorrido, eles inventarão, a cada geração, outros dez, que jamais aconteceram, e cada geração acrescentará suas inumeráveis invenções. Muito depois, homens ainda mais inconsequentes, chamados historiadores, continuarão a reescrever o passado, até que fábulas ocupem o seu lugar.
Ariadne refletiu bastante. Pai, disse ela, o senhor mostrou-me o caminho. Para nós, mortais, o futuro é breve; o passado pode ser eterno. A fim de salvar minha honra, criarei a minha própria história dos infortúnios que estão para se abater sobre mim. Eis aqui como a história há de ser contada: eu, Ariadne, sabia que a nau ateniense de velas negras traria, mais uma vez, para o senhor, meu pai, o tributo anual de Atenas -sete rapazes e sete virgens de grande beleza- destinados a saciar a fome de carne humana e aplacar a sede de sangue humano do meu meio-irmão, o Minotauro. Eu também sabia que o herói Teseu, filho do rei de Atenas, estava entre eles e que jurara matar o Minotauro. Moviam-no a vingança e a aversão à natureza do Minotauro, em parte humano e em parte animal, e à união da qual foi ele o fruto, quando a rainha Pasifae, minha mãe, enlouquecida por Posêidon, deixou que o touro do deus do mar a cobrisse.
Escondida dentro de uma vaca de madeira que Dédalo fabricou para ela, Pasifae abaixou-se e entregou-se ao touro. Mais tarde, o senhor mandou Dédalo construir o Labirinto onde, envergonhado, o senhor escondeu o Minotauro. E eu conhecia a profecia que haviam feito a Teseu: que eu haveria de me apaixonar por ele com tanto ardor que trairia o meu país e o meu meio-irmão. Teseu, com a minha ajuda, entraria no labirinto, apanharia o Minotauro de surpresa e mataria o monstro com corpo de touro e um belo rosto de homem, usando uma espada que eu, às escondidas, pusera em suas mãos. Depois, orientado por mim e com a ajuda de um novelo de linha que eu lhe dera, Teseu escaparia do labirinto e embarcaria de volta para a sua terra, ao lado de seus companheiros e tendo a mim por concubina. Nada disso vai acontecer! Eu, pobre de mim, me entregarei a Teseu. Mas, a fim de me humilhar e relembrar a vergonha do touro e de Pasifae, o louco vai me possuir como fazem os cães. O insulto me deixará furiosa e reanimará meu amor pelo Minotauro, como homem e como touro. O senhor sabe que respeito, por igual, todos os seres vivos. Pelo sexo, porém, me entrego ao touro em qualquer momento. Prevenido por mim, o Minotauro vai devorar Teseu e os outros treze atenienses. Depois, urrando feliz, com uma guirlanda de rosas em volta do pescoço, ele pedirá a minha mão, que o senhor, de bom grado, cederá. E assim, depois que Zeus tiver chamado o senhor para o lado dele, o Minotauro e eu e os nossos filhos, até a décima geração, reinaremos na rica e fértil Atenas.


Louis Begley é escritor polonês radicado nos Estados Unidos. É autor de, entre outros, "Despedida em Veneza" e "Schmidt Libertado" (Cia. das Letras).
Tradução de Rubens Figueiredo.


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