São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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VONTADE DE POTÊNCIA


Dois primeiros volumes de "As Ilusões Armadas", de Elio Gaspari, buscam decifrar os dilemas e contradições subjacentes ao período de implantação do regime militar no Brasil, entre 1964 e 74


Aspásia Camargo
especial para a Folha

As Ilusões Armadas" [rubrica que engloba os recém-lançados "A Ditadura Envergonhada" e "A Ditadura Escancarada", um terceiro volume, que deve sair em agosto de 2003, e outros dois, ainda sem previsão da data de publicação], de Elio Gaspari, é um livro-síntese que retrata e interpreta com ousadia os anos críticos de implantação do regime militar em meio a graves contradições e dilemas. Como ele mesmo diz, é comum tentar explicar como tais experiências começam, mas raramente alguém se dispõe a decifrar como terminam. A primeira parte do problema parece estar agora esclarecida. O primeiro grande momento de "As Ilusões Armadas" se tece em torno da precária e caótica tomada do poder em 64, que nos expõe as Forças Armadas divididas entre lideranças em disputa. A vontade de poder que acomete os militares surge do vácuo de um projeto civil sindical-populista, precariamente desenhado no confronto contra João Goulart [presidente de 61 a 64, quando foi deposto pelo golpe militar] e Leonel Brizola, mas sempre buscando uma identidade e uma institucionalização que o regime jamais alcançou.

Grande bagunça
Segue-se a desastrada construção do Serviço Nacional de Informações (SNI) e a visão patética das diversas correntes insurrecionais de resistência que expõem a fragilidade do regime, refletida também na de seus próprios combatentes. A leitura permite, no entanto, ir mais longe, buscando extrair conclusões, pois o autor não se exime de interpretar tendências e fatos, chamando a atenção para os desencontros e incongruências do regime que se instaura vagamente imbuído da missão institucional de mudar o Brasil, extirpando os seus vícios mais profundos: corrupção, radicalismo ideológico, clientelismo eleitoreiro, demagogia política. O regime foi, aos poucos, evoluindo para pior, até o muro de contenção da era Geisel (74-79), que recuperou o controle sobre os quartéis, restaurando a hierarquia militar corroída pela escalada da violência e da tortura e pelos instintos anárquicos dentro da corporação. Aguardamos, porém, uma análise equivalente da derrocada, para entender melhor por que o ocaso do regime foi tão lento. O general Golbery [do Couto e Silva (1911-87), criador do SNI" já havia antecipado que o regime militar terminou não apenas porque a sociedade se tornou mais consciente e os empresários mais exigentes, mas também porque o regime se converteu em uma grande bagunça, vítima de seu próprio descontrole.

Vasta biografia
O poder debilitado tornou-se vítima do buraco negro da centralização excessiva, da ilegalidade e dos interesses pessoais e, sobretudo, da desordem institucional, com desequilíbrio das contas públicas e ainda os restos de um passado de desigualdades que não parece ter sido prioridade de governo. O texto, de leitura fascinante e acessível, incorpora vasta bibliografia, composta de arquivos, relatos e memórias, agora enriquecidos pelo arquivo privado de Golbery, uma preciosidade que convém ressaltar. Que Elio Gaspari é um apaixonado pela história, sempre soubemos -e seus leitores disso sempre tiraram o maior proveito. Mas o que este livro tão longamente esperado nos oferece de mais precioso é a cuidadosa reconstituição dos fatos e dos personagens com seus estilos próprios, ambições e interesses, inaugurando o regime de consulado no qual havia ditadura, mas sem ditador. É como se episódios bem conhecidos adquirissem vida nova, tornando-se mais próximos e compreensíveis. A leitura de "As Ilusões Armadas" oferece também interpretações mais ambiciosas sobre os fatos que analisa e que revela. O regime, aponta Gaspari, teve de saída graves problemas de legitimidade jamais resolvidos, particularmente com os intelectuais, estudantes e formadores de opinião. Sofreu também de uma obsolescência crônica, visto que o seu conservadorismo de direita não permitiu a incorporação das aspirações à esquerda por grandes reformas estruturais, algumas timidamente realizadas dentro de um processo vigoroso de desmobilização que entregou o poder à burocracia.

Centralismo de 1930
Internamente os dirigentes perceberam, desde o início, que seria impossível ganhar eleições diretas e cumprir com êxito os rituais democráticos, já que o regime militar era tão impopular. Castello Branco [presidente de 64 a 67" tentou manter um meio termo no qual democracia e intervencionismo pudessem se recompor diretamente. Mas suas ambiguidades políticas -evitando confrontar diretamente os radicais ou ceder completamente a eles- acabaram fragilizando suas oportunidades de crescimento.
No entanto a fratura maior foi, sem dúvida, repetir em 1964 o centralismo intervencionista de 1930, na época em mãos de tenentes que, em 1964, tornaram-se generais. Internacionalmente, o desencontro não podia ser mais desastrado. Enquanto a década de 60 inaugura a entrada em cena de grandes movimentos sociais cada vez mais ávidos de uma renovação geracional e de um choque de novas idéias, no Brasil um velho estamento burocrático tomava o poder, na contramão da história, negando as oportunidades de um liberalismo mais moderado, mais atento à modernização tecnológica e à nova lógica da integração regional e dos movimentos sociais.
A ousadia e segurança da interpretação desse período controvertido permitem desvendar os nexos desconexos de um regime sem grandeza, cuja missão inicial era devolver o poder aos civis, mas que acabou mediocremente dominando o país durante um quarto de século.


Aspásia Camargo é diretora do Centro Internacional de Desenvolvimento Sustentável da Fundação Getúlio Vargas e doutora em sociologia pelo Instituto de Altos Estudos em Ciências Sociais da Universidade de Paris (França). É autora de "1937-O Golpe Silencioso" (ed. Rio Fundo).

A Ditadura Envergonhada
424 págs., R$ 40,00
de Elio Gaspari. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3167-0801).

A Ditadura Escancarada
512 págs., R$ 44,00
de Elio Gaspari. Companhia das Letras.



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