São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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PONTO DE FUGA

Mitos

JORGE COLI
especial para a Folha

A Semana de Arte Moderna ocorreu há 80 anos. Em São Paulo, neste aniversário, três mostras importantes giram à volta da questão moderna nas artes brasileiras. Uma delas encerra-se por estes dias, no MAM: ela põe em paralelo Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral. Outra, que ocorre na Faap, é uma retrospectiva intitulada "Brasil 1920-1950, da Antropofagia a Brasília". A última, no CCBB, expõe "Arte Brasileira na Coleção Fadel - Da Inquietação do Moderno à Autonomia da Linguagem". Juntas, elas encerram um conjunto excepcional de obras, algumas bastante raras. Nenhuma, porém, satisfaz inteiramente enquanto reflexão. O paralelo entre Di e Tarsila se sustenta pela boa intuição na escolha das telas, tarefa delicada em se tratando, por razões diferentes, de pintores bastante irregulares. Mas a comparação impossível entre dois artistas irreconciliáveis trava um diálogo de surdos. Acrescente-se uma ausência de rigor em temas e datas, uma visão pseudo-sociológica constrangedora de tão rasa, o emprego desarmado e desprevenido de noções como "realidade brasileira".
Ao contrário, na mostra da Faap, ampla, ambiciosa, pontuada por obras-chave, paira um espírito minucioso e aplicado de manual. Pena que a concentração necessária seja bastante perturbada por fundos sonoros superpostos e misturados em cacofonia involuntária.
Enfim, a coleção particular de Hecilda e Sérgio Fadel traz, ao público, obras incomuns e de primeira água.

Cidades - A mostra da coleção Fadel é a única a ser acompanhada por uma proposta de revisão histórica. A própria natureza dos objetos reunidos permite tornar relativa a preponderância paulista nas novidades modernas, causada pelo estrépito da "Semana". É um grande mérito, sem dúvida, que a exposição tenha sublinhado esse aspecto. Mas seria preciso ir além de um jogo SP x Rio, que pode seduzir, mas que é redutor.

Temperos - Está para ser escrita uma história sobre as modernas artes brasileiras que preserve ramificações complexas, evitando velhas categorias e velhas polêmicas. Nenhuma das três mostras paulistanas sobre a modernidade no Brasil tenta, de modo consistente, um recuo e uma leitura renovada da questão. Oitenta anos depois, os mesmos programas propostos são retomados quase sem discussão, como estes: "brasilidade" nas artes, vinculada a uma suspeita identidade nacional; oposição ao "academismo", noção que outrora tinha valor polêmico e que hoje se esvaziou de sentido; celebração da "antropofagia", inventada um pouco mais tarde, por volta de 1928.
Oswald de Andrade tinha um sentido infalível da fórmula. Em tempos de valorização internacional dos mais variados primitivismos, ele encontrou um rótulo para recobrir, ao mesmo tempo, nacionalismo e internacionalização. A etiqueta antropofágica propulsava, dentro da cultura brasileira, com humor truculento e veemência de estilo, um princípio bem genérico: que o impacto cultural sobre um indivíduo ou um grupo é sempre, de alguma forma, assimilado e reelaborado. Ora, a palavra antropofagia, que tem sua data e teve o seu tempo, é ainda hoje empregada como conceito teórico específico ao Brasil. Entre outras coisas, ela oferece uma ilusão de superioridade: só nós sabemos deglutir, para transformar em força expressiva "brasileira", os pitéus fabricados por outras culturas...

Prisma - Há uma urgência em renovar olhares, em tomar distâncias às heranças culturais recentes, evitando eternas reiterações. As artes, todas as artes, seriam bons terrenos para as discussões sobre a própria idéia que encerra a palavra brasileiro. Não para que se defina o ser brasileiro no presente, diante de outras nações, como se fazia antes. Mas para retraçar as características que foram atribuídas a essa noção ao longo dos dois últimos séculos. Com isso, a inteligência dos fenômenos culturais ocorridos neste recorte geográfico chamado Brasil certamente ganharia muito.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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