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+ debate
O psicanalista Contardo Calligaris rebate crítica de que veria
a cordialidade como inata a um hipotético caráter brasileiro
Acusação sem endereço
Contardo Calligaris
especial para a Folha
No caderno Mais! do último 9 de janeiro, João Cezar de Castro Rocha
propõe algumas críticas ao meu ensaio
"Do Homem Cordial ao Homem Vulgar", publicado neste mesmo caderno
em 12 de dezembro de 99.
Na verdade, concordo com quase todas as suas críticas, só não entendo a
quem elas se endereçam. Fico olhando
por cima de meu ombro para ver se há
alguém atrás de mim com quem meu
crítico estaria falando, pois não me reconheço no que ele parece ler em meu
texto. Faço parte de uma geração que,
no catálogo das boas maneiras, aprendeu a descartar o acusatório "você não
entendeu" e preferir o mais humilde
"não me expressei direito". Então é isso:
devo ter-me expressado mal e aproveito
agora para melhorar.
Herança genética
Segundo meu
crítico, eu compreenderia "a cordialidade como índice de um hipotético caráter brasileiro". É engraçado: nunca desisti de mandar brasa contra a caracterologia nacional e agora acabo convencendo João Rocha de que é nisso mesmo que acredito. Eta imperfeição da linguagem humana! Dito com clareza: não
acredito, nunca acreditei, nem acredito
que acreditarei um dia na existência de
um caráter nacional brasileiro que desceria do céu como uma herança genética ou mesmo histórica.
Nenhuma brasilidade garante uma
continuidade cordial atrás dos percalços da história brasileira. A cordialidade
não é um traço inato da personalidade
brasileira (a qual, por sua vez, não é
uma entidade nem física nem metafísica). Ser cordial é um hábito (no sentido
aristotélico) que resulta de um tipo dominante de relações sociais. Portanto a
sociedade brasileira não é o efeito de
nossa congênita cordialidade. Ao contrário, podemos nos servir da cordialidade para descrever de maneira colorida e sensível as formas de vida que resultam de uma organização social em
que (resumindo) a ordem privada se
impõe à ordem pública.
Não sei por que Rocha também considera que a cordialidade seria para mim
só brasileira ou que eu compreenderia
Sergio Buarque "exclusivamente como
uma interpretação da formação social
brasileira", negligenciando a relevância
teórica de suas análises.
Sigo olhando por cima de meu ombro
esquerdo e direito: ninguém, então é comigo mesmo. Mas não vejo de onde essa impressão chega até meu crítico. Talvez seja porque tenho a reputação de
nunca ter viajado fora do Brasil. Bom,
trégua de ironia: o hábito da cordialidade resulta de uma configuração social
que é banal.
Máfia e mortadela
No quadro limitado e ("hélas!", relativamente) breve de
minha vida já me deparei com algo análogo: foi na Itália, no pós-guerra. A mesma herança de um mundo rural que o
fascismo não mudou. A mesma constituição dos traços "cordiais" em uma espécie de fetiche (o termo de Teresa Sales
é insubstituível) nacional.
Em vez de carnaval, samba e futebol,
na Itália foi mandolina, pizza, mortadela, máfia, "mare chiaro" e "sole mio".
Curiosamente, quando o milagre dos
anos 50 e 60 impôs uma modernização
política e produtiva, as elites também
evoluíram para a vulgaridade (que tampouco é uma prerrogativa do espírito
brasileiro).
O ensaio trata do Brasil de hoje e descreve uma transição social que poderia
ser apresentada em termos suficientemente abstratos para fazer feliz qualquer weberiano. Melhor ainda, ela poderia facilmente ser encontrada em outros momentos e lugares.
No Brasil de hoje, como na Itália do
milagre, a vulgaridade acontece quando
uma modalidade moderna da divisão
social e do exercício do poder é adotada
pelas elites sem que o tecido social se altere em consequência. Mais especificamente, a vulgaridade acontece quando
a ostentação -peça-chave da organização social moderna- é acatada sem
seu corolário de mobilidade social.
A ostentação perde assim sua função
de alimentar a inveja generalizada como motor da competição e, portanto,
do desenvolvimento. Ela se torna a caricatura ou o travesti de uma forma arcaica de opressão. Não é difícil entrever
que essa conjuntura é tão banal quanto
o fato de que as elites da periferia do
neoliberalismo se globalizam facilmente sem renunciar às formas (eventualmente arcaicas) de domínio que garantem seus privilégios.
Brutalidade abstrata
Enfim, entre João Rocha e eu há pelo menos um
ponto de discordância, sem mal-entendido. Meu crítico se surpreende que, na
conclusão do ensaio, eu aposte numa
cordialidade brasileira anterior à vulgaridade. Nessa esperança, ele vê mais
uma complacência em relação à brasilidade que não existe.
Ora, sem fascínio pelo fetiche do caráter nacional e sem saudosismo, parece-me possível desejar que resíduos da formação social nacional permaneçam como hábito de comportamento e, quem
sabe, aliviem a brutalidade abstrata que
a modernização globalizada promete a
todos.
É possível que, como escreve Carlos
Drummond, citado por meu crítico, "os
brasileiros" não existam. Razão a mais
para tentar inventá-los direito. Como
nenhuma invenção se faz a partir de zero, se der para escolher, gostaria delevar
para o futuro um pouco da "cordialidade generosa" do povo que eu evocava
-confesso, sim, com ternura e simpatia- no fim de meu ensaio.
Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor
de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática). Ele assina, nas quintas-feiras,
uma coluna na Ilustrada, da Folha.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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