São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005 |
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+ autores Polêmica sobre a epidemia de obesidade no Brasil aponta para a tendência da opinião pública nacional em desprezar o trabalho reflexivo e valorizar a conclusão apressada e de efeito Sociedade dos bacharéis
RENATO MEZAN
O importante é estabelecer relações que comportem evidência, e vemos imediatamente o risco de tomarmos por verdadeiras relações cuja principal característica é confortar nossa angústia de não saber e, portanto, de não podermos nos defender dos perigos que rondam nossa existência. Dois mil anos de filosofia foram dedicados a definir o que é verdade e o que é erro, e a discussão ainda permanece em aberto; não é aqui o lugar de nos estendermos sobre ela. Mas alguns pontos foram estabelecidos além de qualquer dúvida, e um deles é que de duas afirmações paralelas nada se pode concluir, porque não há termo médio que permita passar das premissas à conclusão. Ora, me dirá o leitor, desnutrição e obesidade não são extremos de uma mesma coisa -a alimentação- que portanto serviria como termo médio? Apesar das aparências, a resposta é não. Chuva e sol também são extremos do "tempo", e nem por isso se pode deduzir da presença de um aqui que seja certo (ou errado) afirmar a presença (ou ausência) do outro acolá. E isso porque não se trata de uma oposição abstrata, caso em que efetivamente se trataria de termos contrários, mas de realidades: afirma-se que a existência de "A" (obesidade) cancela ou torna menos relevante a existência de "B" (desnutrição). É aqui que reside a falácia. Mas por que, se ela é tão óbvia, pessoas inteligentes persistiram em não a enxergar? Mesmo que fosse válida a teoria conspiratória ("querem torpedear os programas socais"), ela só daria conta das intenções sinistras dos que desqualificaram a pesquisa, porém não do absurdo lógico que estamos comentando. Vale a pena ir mais longe: a partir deste exemplo do bestialógico nacional -que Stanislaw Ponte Preta [1923-68] chamava acertadamente de "Febeapá", acrônimo de "Festival de Besteiras que Assola o País"- , talvez possamos identificar um aspecto da vida brasileira que vai muito além dele. "Coisa de obsessivo" Trata-se da tendência a evitar o árduo caminho da demonstração, saltando diretamente para o garboso território das conclusões. Em outras palavras, o passo a passo indispensável em tantas coisas, no pensamento como na vida, é visto como aborrecido; a minúcia, o cuidado com a verificação, o necessário asseguramento de que o que fizemos está "em ordem" antes de passar à etapa seguinte -tudo isso, que não tem charme nem brilho, mas garante que o próximo passo será dado com segurança, tende a ser desconsiderado como "coisa de obsessivo", incompatível com a inventividade e a exuberância que caracterizam nosso compatriotas. Talvez estejamos diante do ressurgimento -se é que alguma vez ele se extinguiu, o que me parece muito duvidoso- do famoso "espírito bacharelesco", hoje "aggiornato" com um fascínio pelos números que o parecem contradizer, mas na verdade é apenas a sua vestimenta contemporânea. O próprio do espírito bacharelesco é a verborragia, a retórica pela retórica e, sobretudo, o diletantismo, ou seja, a mania de falar (bonito, de preferência) daquilo que só se conhece superficialmente. É claro que a retórica, nesse caso, serve para distrair a platéia, evitando que ela se dê conta de quão tolos são os argumentos do orador. Ora, a versão contemporânea do estilo condoreiro parece consistir no uso indiscriminado dos números. Qualquer informação nos vem quantificada, como se quantificá-la fosse o mesmo que compreendê-la. Assim, ficamos sabendo que as vendas à vista neste Natal foram tanto por cento superiores às do ano passado etc. O que não nos é dito é se a escala de comparação (de um ano para outro) é relevante e por quê. O critério de relevância, é óbvio, só pode ser utilizado se temos presente o contexto da informação, e assim retornamos ao ponto de partida do presente argumento. [O escritor] Oscar Wilde disse certa vez que "há um M em Monmouth e um M em Macedônia, mas nada se aprende a partir desta analogia". Precisamos distinguir com mais cuidado entre o essencial e o acessório, o aleatório e o seqüencial, o significativo e o irrelevante. Partes entre si Nunca é demais lembrar que "razão" significa primeiramente proporção, e esta se refere à relação das partes entre si e com o todo do qual são partes. E não me venham dizer que vivemos na era pós-moderna, em que prevalece a estética do fragmento etc. Toda sensação é por natureza fragmentária, assim como toda informação; é nossa tarefa as com-por, pô-las junto umas das outras, a fim de discernir seu sentido e sua relevância (termo que vem de relevo, como algo que se destaca contra um fundo liso). Isso pode ser trabalhoso, mas até o cético Wilde -para quem "não há lógica que possa tornar os homens razoáveis"- completou sua frase assim: "Mas sempre é útil analisar, formular e investigar". Amém. Renato Mezan é psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "Freud - A Trama dos Conceitos" (Perspectiva) e "Psicanálise, Judaísmo - Ressonâncias" (Imago), entre outros livros. Texto Anterior: Biblioteca básica: "Cadernos de Literatura Brasileira" Próximo Texto: + ensaio: A saúde totalitária Índice |
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