São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

Polêmica sobre a epidemia de obesidade no Brasil aponta para a tendência da opinião pública nacional em desprezar o trabalho reflexivo e valorizar a conclusão apressada e de efeito

Sociedade dos bacharéis

RENATO MEZAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A recente polêmica em torno das estatísticas sobre obesidade e desnutrição no Brasil deixou pasmos os que ainda têm algum respeito pela lógica. Segundo o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], existem hoje no país mais pessoas com sobrepeso do que passando fome. O que concluir daí? Que existem dois problemas diferentes, é óbvio, cada qual com seus motivos.
Mas não foi isso o que circulou; o surrealismo nacional apressou-se a deduzir que 1) se..., então, a fome não é mais um fenômeno importante no Brasil; 2) se ..., então, ela é menos grave do que a alimentação excessiva ou inadequada. E a resposta dos que pensam de modo diferente também não primou pela coerência: os que afirmavam "1)" e "2)" não estavam dizendo uma bobagem, mas desejavam torpedear os programas sociais do atual governo, fazendo crer que atacam o problema errado.
Poucos foram os que apontaram o evidente sofisma envolvido na discussão. E foi precisamente isso -a conivência latente com a irracionalidade- que me chamou a atenção nessa sucessão de disparates. Por que disparates? E o que nos ensina a leviandade com que foram proferidos? Em primeiro lugar, vejamos o erro de raciocínio: trata-se de duas afirmações paralelas, "existe fome no Brasil", e "existe obesidade no Brasil" -e não contraditórias. Considerar que uma é o oposto da outra é o mesmo que pensar que, porque chove no Rio Grande do Sul, no mesmo dia não pode fazer sol em Pernambuco.

Falta o contexto
Em segundo lugar, a falta de contextualização: quem sofre de fome ou de obesidade? Onde isso acontece, em termos geográficos, de estratificação social etc.? Quais as causas desses fatos? Cada afirmação é apenas parte de um todo, e, sem que este seja minimamente apresentado, é impossível compreender a posição relativa que cada dado nele ocupa e, portanto, o que ele significa. É o apagamento do contexto que permite a ligação arbitrária entre as duas informações, como se fossem contraditórias, e não apenas diferentes.
A busca de relações entre os dados da nossa experiência é uma necessidade humana fundamental, e sua função é tanto intelectual -tornar compreensível o mundo à nossa volta- quanto emocional -proporcionar a segurança que decorre dessa compreensão. Desde que essa segurança seja garantida, pouco importa que as relações encontradas sejam verdadeiras (aqui significando conformes à realidade objetiva) ou imaginárias (aqui significando conformes a um sistema de crenças culturalmente legítimo, como a magia entre os homens primitivos).


O passo a passo indispensável em tantas coisas é visto como aborrecido

O importante é estabelecer relações que comportem evidência, e vemos imediatamente o risco de tomarmos por verdadeiras relações cuja principal característica é confortar nossa angústia de não saber e, portanto, de não podermos nos defender dos perigos que rondam nossa existência.
Dois mil anos de filosofia foram dedicados a definir o que é verdade e o que é erro, e a discussão ainda permanece em aberto; não é aqui o lugar de nos estendermos sobre ela. Mas alguns pontos foram estabelecidos além de qualquer dúvida, e um deles é que de duas afirmações paralelas nada se pode concluir, porque não há termo médio que permita passar das premissas à conclusão.
Ora, me dirá o leitor, desnutrição e obesidade não são extremos de uma mesma coisa -a alimentação- que portanto serviria como termo médio? Apesar das aparências, a resposta é não. Chuva e sol também são extremos do "tempo", e nem por isso se pode deduzir da presença de um aqui que seja certo (ou errado) afirmar a presença (ou ausência) do outro acolá.
E isso porque não se trata de uma oposição abstrata, caso em que efetivamente se trataria de termos contrários, mas de realidades: afirma-se que a existência de "A" (obesidade) cancela ou torna menos relevante a existência de "B" (desnutrição). É aqui que reside a falácia.
Mas por que, se ela é tão óbvia, pessoas inteligentes persistiram em não a enxergar? Mesmo que fosse válida a teoria conspiratória ("querem torpedear os programas socais"), ela só daria conta das intenções sinistras dos que desqualificaram a pesquisa, porém não do absurdo lógico que estamos comentando. Vale a pena ir mais longe: a partir deste exemplo do bestialógico nacional -que Stanislaw Ponte Preta [1923-68] chamava acertadamente de "Febeapá", acrônimo de "Festival de Besteiras que Assola o País"- , talvez possamos identificar um aspecto da vida brasileira que vai muito além dele.

"Coisa de obsessivo"
Trata-se da tendência a evitar o árduo caminho da demonstração, saltando diretamente para o garboso território das conclusões.
Em outras palavras, o passo a passo indispensável em tantas coisas, no pensamento como na vida, é visto como aborrecido; a minúcia, o cuidado com a verificação, o necessário asseguramento de que o que fizemos está "em ordem" antes de passar à etapa seguinte -tudo isso, que não tem charme nem brilho, mas garante que o próximo passo será dado com segurança, tende a ser desconsiderado como "coisa de obsessivo", incompatível com a inventividade e a exuberância que caracterizam nosso compatriotas.
Talvez estejamos diante do ressurgimento -se é que alguma vez ele se extinguiu, o que me parece muito duvidoso- do famoso "espírito bacharelesco", hoje "aggiornato" com um fascínio pelos números que o parecem contradizer, mas na verdade é apenas a sua vestimenta contemporânea. O próprio do espírito bacharelesco é a verborragia, a retórica pela retórica e, sobretudo, o diletantismo, ou seja, a mania de falar (bonito, de preferência) daquilo que só se conhece superficialmente. É claro que a retórica, nesse caso, serve para distrair a platéia, evitando que ela se dê conta de quão tolos são os argumentos do orador.
Ora, a versão contemporânea do estilo condoreiro parece consistir no uso indiscriminado dos números. Qualquer informação nos vem quantificada, como se quantificá-la fosse o mesmo que compreendê-la.
Assim, ficamos sabendo que as vendas à vista neste Natal foram tanto por cento superiores às do ano passado etc. O que não nos é dito é se a escala de comparação (de um ano para outro) é relevante e por quê. O critério de relevância, é óbvio, só pode ser utilizado se temos presente o contexto da informação, e assim retornamos ao ponto de partida do presente argumento.
[O escritor] Oscar Wilde disse certa vez que "há um M em Monmouth e um M em Macedônia, mas nada se aprende a partir desta analogia". Precisamos distinguir com mais cuidado entre o essencial e o acessório, o aleatório e o seqüencial, o significativo e o irrelevante.

Partes entre si
Nunca é demais lembrar que "razão" significa primeiramente proporção, e esta se refere à relação das partes entre si e com o todo do qual são partes. E não me venham dizer que vivemos na era pós-moderna, em que prevalece a estética do fragmento etc. Toda sensação é por natureza fragmentária, assim como toda informação; é nossa tarefa as com-por, pô-las junto umas das outras, a fim de discernir seu sentido e sua relevância (termo que vem de relevo, como algo que se destaca contra um fundo liso).
Isso pode ser trabalhoso, mas até o cético Wilde -para quem "não há lógica que possa tornar os homens razoáveis"- completou sua frase assim: "Mas sempre é útil analisar, formular e investigar". Amém.

Renato Mezan é psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "Freud - A Trama dos Conceitos" (Perspectiva) e "Psicanálise, Judaísmo - Ressonâncias" (Imago), entre outros livros.


Texto Anterior: Biblioteca básica: "Cadernos de Literatura Brasileira"
Próximo Texto: + ensaio: A saúde totalitária
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.