São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997.

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A grande cena

HAMILTON VAZ PEREIRA
especial para a Folha

Tinha 16 anos. Estava terminando o ginásio quando ``O Rei da Vela'' estreou em São Paulo. Ouvia ``Sgt. Pepper's'' e ``Their Satanic Majesties Request''. Ainda não havia para mim Caetano Veloso e Gilberto Gil. Frequentava o Flamengo, Laranjeiras, Botafogo e Copacabana, pensando em como entrar pra história da minha cidade. Qual seria meu feito extraordinário? Foi então que uma namorada me levou ao Teatro Tablado, e foi lá que ouvi pela primeira vez sobre uma trupe paulista que ganhara fama de tropicalista e promovia um tal de ``O Saldo para o Salto''. Fui assistir ao Teatro Oficina em "Pequenos Burgueses". Vibração total no Teatro João Caetano. Depois, em ``O Rei da Vela'', de Oswald de Andrade. Mais vibração! E em ``Galileu Galilei''! Três espetáculos apresentados ao tumulto dos contemporâneos. Como foi legal conhecer os mundos de Gorki, Oswald e Brecht. Me fortaleceu. Me fez viver com mais intensidade!
Mas... quem eram aquelas pessoas? Quem eram aqueles mortais semelhantes aos deuses? Aquela turma criava um mundo e iluminava o que estava ao redor. Ninguém me contou, eu vi. Quis ser daquela estirpe, ter a minha trupe e fazer aquilo. Ainda não havia para mim o Asdrubal Trouxe o Trombone. Dez anos depois, em 77, porque não conseguia escrever algo tão interessante quanto ``O Rei da Vela'', ``A Morta'' ou ``O Homem e o Cavalo'', acabei criando com o Asdrubal o espetáculo "Trate-me Leão", que faria para nós uma falta imensa se não tivesse existido. No ano seguinte, José Celso Martinez Corrêa voltou do exílio europeu. Era ele, o Cara! Foi assistir o espetáculo do Asdrubal e ficou amigo da gente. Vários anos antes, estávamos na platéia de ``Gracias Se¤or'', quando Regina Casé deu um jeito de o Zé, do palco, olhar pra gente. Atirou um mamão-macho na direção da bunda dele. O semideus hesitou em nos atingir com seus raios. Entre os artistas se deve procurar os caras mais audazes. E Zé, todos sabem, é especial. Se ele não tivesse colocado o texto de Oswald em cena, outro teria? Quem?
A Semana de 22 produziu um autor teatral, Oswald de Andrade. Mas foram necessários 30 anos para ``O Rei da Vela'' encontrar o seu público, a juventude brasileira. A encenação de ``O Rei da Vela'' aconteceu num momento pesado, o Brasil entre 64 e 68. Reza a lenda que Zé Celso tinha nas mãos uma obra considerada não-teatral para os padrões cênicos da época, até que a colocou no palco. ``O Rei da Vela'' passou a existir. Quando isso aconteceu, uma explosão contagiou a produção artística nacional. O teatro, que tinha estado fora dos interesses dos modernistas, agora influenciava a pintura, o cinema, a música e a literatura. A juventude se animou com as interpretações políticas dos anos 30. Se o Oficina não tivesse trazido o texto à luz, sentiríamos uma falta imensa de um espetáculo assim. O Oficina teve a ambição de apresentar o Brasil de Oswald aos brasileiros e seu chamado teve resposta. Marcou presença na vida da gente e merece a fama adquirida por seus feitos extraordinários. Poucas produções têm tal ambição.
Décadas depois, pego ``O Rei da Vela'' na estante. Nunca mais li Oswald de Andrade. Houve um tempo em que procurava saber tudo a respeito da Semana de 22, dos seus protagonistas e suas obras verde-amarelas. Folheio trechos da peça. Grana e sexo. Todos os personagens da peça estão nessa. ``Herdo um tostão de cada morto nacional'', diz Abelardo 1º. ``Eu sou uma fracassada'', diz Totó Fruta de Conde, irmão de Joana, ou melhor, João dos Divãs, chamada também de ``a garota da crise''. Noutra página, o industrial da vela diz: ``A família e a propriedade são garotas que frequentam a mesma `garçonnière'!''. Grana e sexo. Me vêm à lembrança detalhes dos cenários, dos figurinos, objetos e maquiagem que inauguram uma nova estética na cena brasileira e inspiram, até hoje, um certo jeito de viver o Brasil, de fazê-lo existir. O responsável pela plasticidade do espetáculo é outro que tem sua vida inscrita nas estréias. Sou obrigado a usar óculos ao me aproximar de Hélio Eichbauer, tal é a luz que emana.
Depois de reunir recordações e agir como arqueólogo de mim mesmo, lembro do espetáculo. Tinha a ferocidade e o grotesco do circo, a comicidade canalha da revista e o ``gran finale'' da ópera; tinha discursos políticos, a história do cachorrinho Jujuba, um telão com a Baía de Guanabara; tinha teatro dentro do teatro, conversas de sociedade, referências a personagens vivos, piadas sobre gays e objetos fálicos. Sim! Tinha Renato Borghi. Animado, tesudo, divertido. Era grande, era pequeno, o nosso rei. Renato dominava a cena com o dom do alegre deboche e assim acabava com nosso medo de viver. Renato! Renato!
Mas é incerto escrever sobre um espetáculo acontecido há 30 anos. Ainda mais com tanta testemunha ocular, tanto espectador mais qualificado, não é? No entanto, vocês sabem que ao redor dos especialistas circulam amadores e excêntricos. Questões sobre Homero, as Sagradas Escrituras, as peças de Shakespeare ou a potência de ``O Rei da Vela'' sempre são consideradas pelo leigo como papo de domingo. Cada leitor tem uma opinião, uma lembrança dessa fagulha riscada há 30 anos. Não é à toa que ela brilha ainda hoje. É incerto, mas ajuda a lembrar da minha curiosidade de viver, de um espetáculo que fez o Brasil viver com mais intensidade. Então, me esforço e comunico. Para alguns não basta viver a vida. Ela tem que ser cantada, e a canção, ouvida pelas pessoas. Isso fortalece quem canta e dança.
Se o Oficina do Zé resolvesse retomar ``O Rei da Vela'', o que aconteceria? Criaria um novo espetáculo com o texto de Oswald? Ou faria uma remontagem, tipo museu, igualzinha àquela acontecida em 67? Nesse caso, qual seria a reação do público? Como toparia com o Brasil do começo de século encenado durante uma barra pesadérrima? O texto falaria aos contemporâneos, ainda hoje? De 33 a 67 parece não ter havido tanta mudança assim na realidade brasileira. Mas, de 67 pra cá, a realidade brasileira segue estagnada e carregando sua vela? A potência criadora de ``O Rei da Vela'' continua iluminando a posteridade e o pessoal que veio depois? Vejamos o que está em cartaz nesse começo de temporada. Tudo que vive parece condenado a respirar um ar pesado, a atuar no sufoco. Que espetáculo será comentado no próximo século? Um dia, ``O Rei da Vela'' não terá mais interesse para nós? Questões dominicais.
Um dia, a vida neste planeta será tão diferente, estará tão distante dos pesados nevoeiros que nos envolvem, que alguém batizará de novo a nave-mãe e o próximo nome da Terra será -A Leve. Mas, por enquanto, o espetáculo belo e forte que alguma vez existiu para perpetuar o conceito de ``teatro'' está eternamente presente. Pois as grandes cenas formam uma corrente que conecta a humanidade através dos milênios. A grandeza do teatro de ontem é grande também hoje. O espetáculo que fez bem pra sua platéia tem a ver comigo, com aqui e agora. Somos seus herdeiros. Ninguém me contou, eu vi. Foi um instante da mais alta perfeição teatral. Foi isso que o jovem Vaz Pê avistou da platéia do Teatro João Caetano: uma fagulha com posteridade e com herdeiros. Se o teatro era isso, pois bem, outra vez!


Hamilton Vaz Pereira é ator e diretor de teatro.

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