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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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+ sociedade

Protestos contra a guerra deixam de lado as conquistas dos movimentos antiglobalização, muito mais avançados em termos teóricos e práticos

O VELHO JOGO DOS EUA CONTRA A EUROPA

por Michael Hardt

Há um novo antieuropeísmo em Washington. Os EUA, é claro, possuem uma longa tradição de conflito ideológico com a Europa. O antigo antieuropeísmo geralmente protestava contra o poder avassalador dos Estados europeus, sua arrogância e seus esforços imperialistas. Hoje, entretanto, a relação se inverteu. O novo antieuropeísmo é baseado na posição de poder dos EUA e protesta contra os Estados europeus que se recusam a ceder a esse poder e seus projetos. O problema mais imediato para Washington é a falta de apoio europeu para os planos norte-americanos de guerra no Iraque. E a estratégia primordial de Washington nas últimas semanas tem sido dividir e conquistar. De um lado, o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, com sua característica condescendência audaz, chama as nações européias que questionam o projeto norte-americano, primariamente França e Alemanha, de "velha Europa", desconsiderando-as. Por outro lado, a recente carta de apoio pelos esforços de guerra dos EUA ao "Wall Street Journal", assinada por Blair, Berlusconi e Aznar, posa como o outro lado da questão. Em uma estrutura mais ampla, todo o projeto de unilateralismo dos Estados Unidos, que se estende para bem além dessa guerra com o Iraque que se aproxima, é em si mesmo necessariamente antieuropeu. Os unilateralistas em Washington se sentem ameaçados pela idéia de que a Europa ou qualquer outro agregado de Estados possa competir com o seu poder em termos iguais (o valor ascendente do euro em relação ao dólar contribui, é claro, para a percepção de dois blocos de poder potencialmente iguais e competitivos). Bush, Rumsfeld e sua laia não aceitarão a possibilidade de um mundo bipolar. Eles a deixaram para trás com a Guerra Fria. Toda ameaça à ordem unipolar deve ser rejeitada ou destruída. O novo antieuropeísmo de Washington é, na verdade, uma expressão de seu projeto unilateralista.

Antiamericanismo
Correspondendo em parte ao novo antieuropeísmo norte-americano, há hoje na Europa e por todo o mundo um crescente antiamericanismo (ou, mais especificamente, um antiEUAísmo). Em particular, os protestos coordenados contra a guerra no dia 15 de fevereiro foram movidos por diversos tipos de antiamericanismo -e isso é inevitável. O governo dos EUA não deixou dúvida de que é o autor dessa guerra e, portanto, o protesto contra a guerra deve inevitavelmente ser também um protesto contra os EUA. Este antiamericanismo, embora certamente justificável, é, no entanto, uma armadilha. O problema não é apenas o fato de que ele tende a criar uma visão excessivamente unificada e homogênea dos Estados Unidos, obscurecendo as largas margens de dissenso na nação. O verdadeiro problema é que, espelhando o novo antieuropeísmo dos EUA, ele tende a reforçar a noção de que nossas alternativas políticas se assentam sobre as maiores nações e blocos de poder. Ele contribui para a impressão, por exemplo, de que os líderes da Europa representam nossa via política primordial -a alternativa moral, multilateralista, aos americanos unilateralistas e belicosos. Esse antiamericanismo dos movimentos contrários à guerra tende a fechar os horizontes de nossa imaginação política e a nos limitar a uma visão bipolar (ou pior, nacionalista) do mundo.

Forças plurais e complexas
Os movimentos de protesto contra a globalização foram muito superiores aos que protestam contra a guerra, nesse aspecto. Eles não apenas reconheceram a complexa e plural natureza das forças que dominam a globalização capitalista hoje -os Estados-nação dominantes, certamente, bem como o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC), as principais corporações e assim por diante-, mas também imaginaram uma globalização alternativa, democrática, que consiste em trocas plurais através de fronteiras nacionais e regionais baseadas em igualdade e liberdade.
Uma das grandes conquistas dos movimentos de protesto contra a globalização, em outras palavras, foi acabar com esse modo de pensar a política como uma competição entre nações ou blocos de nações. O internacionalismo foi reinventado como uma política de conexões em uma rede global com uma visão global de possíveis futuros. Nesse contexto, antieuropeísmo e antiamericanismo não fazem mais sentido.
É um azar, mas é inevitável que muitas das energias que estiveram ativas nos protestos contra a globalização estejam agora, ao menos temporariamente, redirecionadas contra a guerra. Nós precisamos nos opor a essa guerra, mas devemos também olhar além dela e evitar sermos tragados pela armadilha de sua estreita lógica política. Enquanto nos opusermos à guerra devemos também manter a expansiva visão política e os horizontes abertos que os movimentos contra a globalização conquistaram. Nós podemos deixar para Bush, Chirac, Blair e Schroeder o velho jogo de antieuropeísmo e antiamericanismo.


Michael Hardt é professor de filosofia na Universidade Duke (EUA) e co-autor, com Antonio Negri, de "Império" (editora Record).
Tradução de Victor Aiello Tsu.


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