UOL


São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

Exposição em Nova York com 120 desenhos do artista italiano recupera o lado grotesco e a obsessão pela incompletude em sua obra

LEONARDO FRENTE E VERSO

por Robert Hughes

Ao longo de sua vida, Leonardo da Vinci foi amaldiçoado por uma noção de falha, incompletude e tempo perdido. Sua frase favorita, inconscientemente repetida em sua totalidade ou parcialmente sempre que ele escrevia algo para ver se uma nova pena estava funcionando, era "diga-me, diga-me se algo foi terminado". E de fato muito pouco havia sido. Seus grandes projetos para esculturas nunca eram completados -o gigantesco modelo de argila para um deles, que deveria celebrar seu patrono Ludovico Sforza, duque de Milão, terminou como um morro disforme, destruído por arqueiros franceses que ocupavam aquelas terras. Seu grande mural comemorando a vitória florentina, a batalha de Anghiari, se tornou uma ruína cheia de bolhas e terminou sendo pintado por cima. Pouco sobrevive de sua "A Última Ceia" em Milão. E por aí vai seu melancólico catálogo de ruínas e perdas. Ele nunca encontrou tempo para editar a intrigante, mas amorfa, massa de seus escritos em tratados coerentes. Seus projetos de engenharia e hidráulica ou falharam ou não foram iniciados. Poucas de suas máquinas teriam funcionado também e, é claro, os famosos "ornitópteros", helicópteros e planadores que fizeram dele, aos olhos de uma geração mais velha, uma espécie de Orville Wright do Quattrocento, nunca se elevaram um centímetro no ar.

Engenhosidade
Provavelmente nem mesmo os tanques movidos a manivela que ele esperava que se arrastassem como letais caracóis pelos campos do norte da Itália teriam machucado qualquer pessoa, isso assumindo que seus ocupantes cansados e suados conseguissem fazer com que suas rodas girassem, o que está além do provável. Nós nos lembramos de Leonardo como pintor, desenhista, escultor, arquiteto e cientista. Mesmo assim, a julgar pela carta que ele enviou para Sforza se autopromovendo em 1481, ele não via suas habilidades dessa forma. Antes de mais nada, ele listou sua engenhosidade estratégica: ele podia projetar pontes móveis, drenar fossos, bombardear fortalezas, projetar e construir canhões de cerco, fazer barcos à prova de fogo e assim por diante. Apenas lá pelo décimo item, o último de sua lista, ele chega a dizer que também na pintura ele podia "fazer de tudo tão bem quanto qualquer outra pessoa". Deve ter havido uma razão para isso, já que ser um engenheiro militar devia ser provavelmente mais lucrativo do que ser um pintor, mas ainda assim essa imagem é muitíssimo diferente da do esteta que nós vemos hoje em Leonardo. Três coisas, no entanto, podem ser ditas sem hesitação sobre Leonardo. A primeira é que ele não é um "homem da Renascença". Ele não era típico de seu tempo. Muitos artistas renascentistas trabalhavam, como Leonardo, em uma ampla variedade de meios: desenho, pintura, escultura, arquitetura e assim por diante. Nenhum, entretanto, nem mesmo o grande Leon Battista Alberti, tinha a impressionante e insaciável curiosidade de Leonardo sobre a composição e as leis que regem o mundo físico ou despendia tanto tempo e energia especulando a respeito delas. A segunda coisa é, obviamente, que ele era capaz de desenhar como um anjo. A idéia de que ele era "o maior" desenhista italiano de seu tempo (nascido em 1452, ele morreu com uma idade considerável, no exílio na França, em 1519) é essencialmente sem sentido, porque o final do século 15 e o começo do 16 foram cheios de espetaculares rabiscadores de papel. Mas nem mesmo contemporâneos como Michelangelo foram capazes de ultrapassá-lo, ou mesmo de rivalizar em base regular com ele, como mestre de um tipo de linha expressivo e descritivo que se vê em seus desenhos de estudos para uma escultura equestre ou em suas impressionantes análises anatômicas da estrutura de ossos e músculos humanos -embora alguns deles fossem, é claro, artistas com objetivos bem diferentes.

Olhos inquisitivos
Isso é simplesmente um fato, e qualquer um afortunado o bastante para estar na vizinhança do Museu Metropolitano de Arte de Nova York [www.metmuseum.org] até 30/3 poderá averiguar prontamente. "Leonardo da Vinci - Desenhista Mestre" abriu no dia 22 de janeiro, com quase 120 desenhos e uma pintura praticamente inacabada, a angustiosa "São Jerônimo Rezando no Deserto", do Vaticano.
Montada a partir de coleções vindas de toda a Europa, Reino Unido e EUA, é uma prodigiosa conquista em termos de curadoria por parte de Carmen Bambach e George Goldner, curadora e presidente, respectivamente, do departamento de desenhos e gravuras do museu (não se pode esperar nem do próprio Hércules que percorra a mostra a pé carregando seu gigantesco catálogo de quatro quilos, mas não importa: é uma grande adição à massa de literatura a respeito de Leonardo, como não poderia deixar de ser, com um peso desses).


Ele vivia o caos e o colapso social com um deleite mórbido: o fim do mundo era o seu filme de horror privado


A terceira coisa é que Leonardo foi um dos artistas menos transparentes que já viveu e, dadas as enormes perdas e lacunas naquilo que a respeito dele sabemos, é fútil esperar que qualquer exibição possa representar a sua totalidade. Ele era conflituoso, contraditório, incrivelmente difícil de alcançar, de compreender. Não é verdade, no entanto, que sua famosa escrita de trás para a frente fosse uma tentativa de defender os segredos de suas pesquisas de olhos inquisitivos. Esse aspecto do "mistério" de Leonardo não é de forma alguma um mistério, porque ele era canhoto, e era natural para ele escrever de tal modo. Mesmo assim, será que já houve outro artista cuja obsessão por destruição e apocalipse -e se tratava de uma real obsessão, não só de uma curiosidade do tipo "e se?"- coexistiu tão vividamente com um amor por uma extrema delicadeza, por uma beleza evanescente e febril, por efeitos de elegância reconfortante? Não até o aparecimento de Leonardo -e não após ele, somos tentados a acrescentar. Ele vivia o caos e o colapso social com um deleite mórbido: o fim do mundo era o seu filme de horror privado, ou o teria sido se houvesse filmes no século 15. Em suas descrições de catástrofes imaginadas lê-se Leonardo amontoando efeitos especiais para tornar concreto o que nem ele nem ninguém havia visto, sua linguagem lutando para se libertar dos limites da realidade: choros, urros, canibalismo, a fúria dos elementos, o fim do mundo. A prosa não podia emoldurar tudo isso, então Leonardo teve de se contentar com seus desenhos do dilúvio, pequenas visões de destruição infinita, matéria arremessada e distendida em seus componentes através de vórtices, que eram os símbolos dele para a energia primordial. Por toda a mostra vê-se um domínio absoluto dos processos de desenho: do fazer o traçado mas também do fazer os instrumentos de traço. No século 15 não se ia a uma loja comprar um lápis. Era preciso fazer o lápis de ponta de prata ou o pedaço de carvão. Era preciso cortar a pena e fazer a sua ponta. Tudo isso estava ligado com a técnica de desenho e ajudava a determinar a intensidade do mesmo. Esse é um dos motivos pelos quais os desenhos pequenos (e a maioria dos desenhos de Leonardo era de tamanho pequeno, em alguns casos pouco maiores do que um rascunho do tamanho de uma unha) podem ser tão involuntariamente reveladores, como uma caligrafia.

"Evite a negação"
Há alguns temas espetacularmente feios, como o imaginário "Busto de Homem Grotesco Voltado para a Direita". Leonardo se deliciava com esses temas. O prazer que ele tinha na feiúra humana era quase tão intenso quanto o deleite que lhe rendia o espetáculo da beleza.
Certo, considerações cosméticas eram menos importantes na Europa do século 16 do que viriam a ser quatro séculos depois. Certo, as atitudes sociais com relação aos aspectos repelentes da velhice eram diferentes. E mesmo assim é difícil olhar para os seus numerosos desenhos de velhos horríveis e monstruosos -que seriam assiduamente copiados por outros artistas (como alegoria cômica? Como homenagem? Quem sabe?) e que fariam uma aparição final durante a era vitoriana na triunfante imagem da rainha vermelha de "Alice no País das Maravilhas"- sem ter a impressão de que a imaginação peculiar e sádica de Leonardo está bem distante da nossa.
Ele diz "idealize o quanto quiser, mas evite a negação". O outro lado obrigatório para a beleza ideal da Mona Lisa ou da Cecilia Gallerani de Leonardo era a feiúra de seus grotescos -uma feiúra que desintegra toda possibilidade de desejo e que tem algo de zombeteiramente demoníaco, e não apenas clínico, a seu respeito. Ver seus desenhos grotescos como a mera brincadeira de uma mente manchada pelo sadismo é não entendê-los. Eles são uma parte essencial do impulso que levou Leonardo a uma ligação com a beleza como uma espécie de princípio salvador.

Robert Hughes é crítico de arte e autor de, entre outros, "Um Bobo em Cada Ponta" (ed. Rocco), "A Cultura da Reclamação" e "Barcelona" (ambos pela Companhia das Letras). Este texto foi originalmente publicado na revista "Time".
Tradução de Victor Aiello Tsu.


Texto Anterior: O sortilégio de um destino anônimo
Próximo Texto: +livros: O corpo mutante
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.