UOL


São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

As três vidas de Ulisses

Juan José Saer

Numa tarde de 1967, o autor deste artigo presenciou a seguinte cena: Borges, que tinha viajado a Santa Fé para falar sobre Joyce, estava conversando animadamente em um café, antes da conferência, com um grupinho de jovens escritores que ia entrevistá-lo, quando, de repente, ele se lembrou de que, nos anos 40, fora convidado para integrar uma comissão que se propunha a traduzir coletivamente o "Ulisses". Borges contou que a comissão se reunia uma vez por semana para discutir as preliminares da gigantesca tarefa que os melhores anglicistas de Buenos Aires pretendiam realizar. Até que um dia, depois de quase um ano de discussões semanais, um dos membros da comissão apareceu brandindo um livro enorme e gritando: "Acabou de sair uma tradução do "Ulisses'!". Borges, rindo da história às gargalhadas, e mesmo sem nunca ter lido a tradução (nem o original, provavelmente), concluiu dizendo: "E a tradução era muito ruim". Ao que um dos jovens que o escutavam respondeu: "Pode ser. Mas, nesse caso, o senhor Salas Subirat seria o maior escritor de língua espanhola". A resposta dá uma idéia do lugar que essa tradução ocupava na cultura literária dos jovens escritores argentinos durante os anos 50 e 60. O livro de 815 páginas saiu em 1945 pela editora Santiago Rueda, de Buenos Aires, que publicou também o "Retrato do Artista Quando Jovem", na tradução de Alfonso Donado (leia-se Dámaso Alonso). No catálogo dessa editora constavam muitos outros nomes excepcionais, como Faulkner, Dos Passos, Svevo, Proust, Nietzsche, sem falar das obras completas de Freud em dezoito volumes, com apresentação de Ortega y Gasset. Em fins dos anos 50, esses livros circulavam copiosamente entre todos os que se interessavam pelos problemas literários, filosóficos e culturais do século 20. Eram parte daqueles livros realmente indispensáveis em qualquer boa biblioteca. O "Ulisses" de J. Salas Subirat (a inicial imprecisa dava ao nome uma conotação misteriosa) tinha presença constante nas conversas, e seus inesgotáveis achados verbais eram intercalados sem necessidade de esclarecimentos: qualquer pessoa com veleidades de narrador que tivesse entre 18 e 30 anos, em Santa Fé, Paraná, Rosário e Buenos Aires, os citava de cor. Muitos escritores da geração de 50 ou 60 aprenderam boa parte de seus recursos e de suas técnicas narrativas nessa tradução. A razão é muito simples: o rio turbulento da prosa joyciana, ao ser traduzido para o castelhano por um homem de Buenos Aires, arrastava consigo a matéria viva da fala que nenhum outro autor -exceto, talvez, Roberto Arlt- conseguira utilizar com tanta criatividade, exatidão e liberdade. A lição desse trabalho é muito clara: a língua do dia-a-dia era a fonte de energia que fecundava a mais universal das literaturas. Embora o fato de ser o primeiro em alguma coisa não deva conferir à façanha mais mérito do que ela possui intrinsecamente, o certo é que quem a realiza se expõe a dois riscos que costumam ser duas faces da mesma moeda: a crítica preconceituosa e a pilhagem. Foi esse o destino -que alguns, deve-se reconhecer, vêm tentando corrigir há um certo tempo- do extraordinário trabalho de Salas Subirat. Seria inadmissível que quem realizasse uma segunda tradução do "Ulisses" ao castelhano ignorasse a existência da primeira, mas essa parece ter sido a atitude do professor Valverde, que, nas 46 páginas de seu prefácio, faz um elogio (justificado) à versão do "Retrato" de Dámaso Alonso, mas não diz uma única palavra sobre a tradução de Salas Subirat. O que é ainda mais grave quando se comparam as duas versões e se verifica que, com frequência, as opções de Valverde têm como única justificativa a obsessão de não se parecer com a tradução anterior.

Um ar de justiceiro
Nenhum tradutor sério do "Ulisses" pode ignorar que existem a primeira e a segunda traduções (esse é o honesto princípio adotado pelos autores da terceira, Francisco García Tortosa e María Luisa Venegas), e tal reconhecimento implica considerar essas traduções referências inescapáveis. Quando apareceu a de Valverde, ao contrário, um ar de justiceiro desdém dava a entender que a segunda tradução afinal chegava para reparar a inqualificável inépcia da primeira.


A língua do dia-a-dia era a fonte de energia que fecundava a mais universal das literaturas


Na internet, que é a pátria natural do disparate, entre várias aberrações referentes à primeira versão do "Ulisses", encontra-se o cúmulo na matéria, produto de uma vulgar operação comercial: o massacre que um tal de Chamorro cometeu em 1996 ao corrigir "cerca de 50%" da versão de Salas Subirat, a quem acusa, entre outras coisas, de incorrer "em localismos próprios da fala portenha", como se um inglês de Londres pretendesse traduzir à fala de Oxford os localismos populares de Dublin que o original de Joyce contém a granel. Sobre esse ato de pirataria cometido 51 anos depois da aparição do livro em Buenos Aires, até quem o comenta favoravelmente não pode deixar de reconhecer que "se trata, de certo modo, de uma reedição da tradução de Salas".
Em um trabalho recente, o escritor mexicano Eduardo Lago compara as três verdadeiras traduções (o ato de vandalismo de Chamorro é judiciosamente descartado), sem conferir a nenhuma das três a etiqueta de perfeita e definitiva, título que, de resto, seria temerário atribuir a qualquer tradução, por excelente que parecesse. Com imparcialidade e minúcia, comparando diversas passagens do texto, Lago verifica nos três trabalhos o que já se podia observar nos dois primeiros, isto é, que seus autores resolveram com menor ou maior acerto as dificuldades que se apresentavam.
O objetivo de uma tradução não é ostentar a erudição de seu autor nem seu conhecimento do idioma de origem, que são condições necessárias, sem dúvida, mas não suficientes para empreender o trabalho, e sim incorporar um texto vivo à língua-alvo. É evidente que cada época, assim como cada região linguística, requer novas traduções de textos clássicos, mas isso não implica que se deva denegrir as anteriores.
José Salas Subirat não era nem catalão nem chileno, como um certo jornalismo literário, na sua costumeira inconsistência, pretendeu revelar em várias ocasiões. Ele nasceu em Buenos Aires em 23 de novembro de 1900 e morreu em Florida, uma localidade da Grande Buenos Aires, em 29 de maio de 1975. Está enterrado no cemitério do Olivos. Foi autodidata e trabalhou, entre outras coisas, como corretor de seguros, atividade sobre a qual escreveu um manual, "El Seguro de Vida, Teoría y Práctica - Análisis de la Venta", publicado em 1944, ou seja, um ano antes de sua tradução do "Ulisses" vir à luz. Nos anos 50, publicou livros de auto-ajuda, como "La Lucha por el Éxito" e "El Secreto de la Concentración", além de uma "Carta Abierta sobre el Existencialismo", que Santiago Roda incluiu em seu catálogo. Mas antes, nos anos 30, havia escrito romances sociais e artigos para a imprensa anarquista e socialista dos anos 30, além de um livro de poemas, "Señalero".
De sua obra literária, a tradução do "Ulisses" é provavelmente a realização mais perdurável. Mas seus livros de auto-ajuda e seu tratado sobre a venda de seguros não são risíveis nem indiferentes para quem leu Joyce: poderiam ser obra de Leopold Bloom. O primeiro tradutor do "Ulisses" deve ter sentido o que sente todo leitor de verdadeira literatura: que o livro que está lendo fala sobretudo dele, do leitor, e não de um mundo estranho e distante. Essa intensa revelação deve ter sido o motor de seu trabalho, que lhe permitiu expressar sua própria vida por intermédio de um texto alheio. Porque uma coisa é certa: deixando de lado as discussões teóricas e técnicas sobre a tradução, é impossível não reconhecer que o mundo do "Ulisses" se parece mais com o de J. Salas Subirat que com o de seus sucessores acadêmicos.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.


Texto Anterior: +livros: O corpo mutante
Próximo Texto: Ponto de fuga: A dança dos ovos
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.