São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997.

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Além da comiseração

TÂNIA MARQUES
especial para a Folha

Não é à toa que os quatro personagens de "Last Orders" ("Último Pedido", em uma tradução livre) sairão em um tipo de peregrinação e, dos três desvios que farão de seu caminho, um os conduzirá à Catedral de Cantuária. O início da empreitada de Graham Swift nos remete diretamente aos "Contos da Cantuária", de Geoffey Chaucer (1343-1400).
Mas o objetivo desses peregrinos contemporâneos não é propriamente religioso. Para atender ao último pedido do açougueiro Jack Dodds, recém-morto, seus amigos Ray, Vic e Lenny e o filho adotivo, Vince, partem para jogar suas cinzas ao mar. Suas histórias, sem moral, ainda que não isentas de escolhas morais, são tecidas com o fio da memória, em fluxos de consciência que se alternam.
As diversas narrativas, sempre em dialeto ``cockney'', típico das classes trabalhadoras de Londres, amalgamam-se na do amigo Ray, que Jack apelidara de "Lucky" (Sortudo) -e em suas próprias palavras "homem de probabilidades". Ao narrar, os personagens compõem não um retrato de Jack, mas a recuperação das diversas tramas que urdiram a existência de cada um deles, os ditos e os não-ditos. É a si mesmos que eles se mostram.
Mas não se pense que "Last Orders" concede ao sentimentalismo. Alternadamente oniscientes e mal-informados, fazendo-se sujeitos do próprio luto pela via da memória e da ação presente, os personagens revelam-se humanos a um ponto muito além da comiseração. Tematizando a perecibilidade da espécie, o livro aponta a riqueza de cada uma das experiências individuais.
Tecnicamente brilhante e conteudisticamente rico, ``Last Orders'' é uma grande homenagem à vida na forma de hino ao possível.


Tânia Marques é jornalista e tradutora.

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